Depois da fotografia: Uma literatura fora de si
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Sobre este e-book
Paloma Vidal
Com o surgimento da fotografia, a arte, a literatura e todos os demais meios de expressão nunca mais foram os mesmos. É isso o que mostra a pesquisadora e crítica literária argentina Natalia Brizuela em mais um volume da coleção Entrecríticas, organizada por Paloma Vidal. Os mexicanos Mario Bellatin e Juan Rulfo, o argentino Julio Cortázar e os brasileiros Bernardo Carvalho e Nuno Ramos estão no centro das reflexões propostas com brilhantismo pela autora acerca da relação entre fotografia e literatura.
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Depois da fotografia - Natalia Brizuela
carinho.
1. A escrita assume a categoria de prática artística
Os livros do futuro
Na Escola Dinâmica de Escritores que Mario Bellatin fundou na Cidade do México no ano de 2000, só existe uma proibição
, como ele próprio esclarece, a de escrever
(2006, p. 9). Na antologia publicada em torno do fazer e do método da escola, Bellatin explica que a ideia principal da escola é que ali se examinam assuntos relacionados não somente com a literatura, mas, especialmente, com as maneiras de que se servem as demais artes para estruturar suas narrativas
(ibidem, p. 9). Por isso o projeto da literatura vindoura, do que chamamos literatura contemporânea, se situa, nas palavras de Bellatin, nas fronteiras
entre a literatura e as outras artes, fazendo com que a escrita assuma a categoria de prática artística
. Nessa zona porosa do limite, da fronteira, espaço e momento sempre de contágio, de contaminação e de metamorfose, tanto a literatura se transforma em outras artes como as demais artes são potencialmente transformadas em literatura: na Escola de Bellatin as fronteiras estão abolidas.
A proposta da Escola Dinâmica de Escritores torna regra e projeto as transformações no campo da arte, especificamente o apagamento das fronteiras que separam as artes entre si. Ainda que essas transformações e esses apagamentos já se venham manifestando há vários séculos, é a partir das vanguardas históricas, e de modo ainda mais contundente na segunda metade do século XX, que se tornam visíveis de maneira generalizada, e não somente na produção de artistas considerados radicais. A arte não deixou de redefinir-se nos últimos séculos – aqueles que costumamos agrupar sob a rubrica fácil, mas impossível, de definir de modernidade
– precisamente com relação às e como consequência das intrusões que cada arte sofreu tanto de outras práticas como do mundo, modificando, a cada momento, seus próprios paradigmas. Num mundo onde já não há continuidade entre as coisas, e muito menos entre as coisas e as palavras que as designam, entre o mundo e sua prosa haveria – desde fins do século XVIII e começos do século XIX – a constante ameaça do limbo do naufrágio depois da ruptura dessa relação harmoniosa que Foucault denominou a prosa do mundo
.[1] Ou seja, a Escola de Bellatin torna objeto de estudo – com o perigo da sistematização, poderíamos dizer – as maneiras como as artes se nutrem umas das outras, e deste modo organiza o que se chamou, desde fins do século XVIII, estética
: esse campo do sensível em que já não há artes diferenciadas claramente, mas tão somente arte. Que as transformações apareçam agora, via-o Bellatin, como meta, como princípio, parece assinalar que aqueles cruzamentos, passagens e intermediações que levaram as artes para as desestruturações de si mesmas, e que vêm ocorrendo, como dissemos, no campo do sensível de modo mais ou menos orgânico há mais ou menos dois séculos, se transformam em sistema, em plano, em estrutura. O ditame de Bellatin funciona, então, como sinal de que talvez estejamos, outra vez, num ponto de inflexão desses cruzamentos, agora já tornados dictum.
O que me interessa explorar aqui são as lógicas e mecanismos dessas transformações, desses cruzamentos, e assinalar em particular alguns deslocamentos e metamorfoses nessa atividade da arte que chamamos literatura.
Na busca de características narrativas das outras artes, Bellatin levou sua produção literária para essa fronteira ou limite onde as distinções entre meios e artes se apagam: o cinema, a música, a performance, a fotografia, e também, sempre, a prosa da vida
. De todos eles, a fotografia ocupa um lugar central, diríamos até chave, já que parece ser o meio privilegiado para a passagem ao que não é. Agente ou intermediário, na obra de Bellatin a fotografia é o veículo do deslocamento, é o que permite a produção de uma literatura marcada pela transferência e pela indiferenciação, é o meio que leva a literatura para fora de si, para fora de seu próprio meio. Isto é evidente no mais visível: a inclusão de fotografias em muitos de seus livros, como, por exemplo, em Perros héroes, Los fantasmas del masajista, Shiki Nagaoka: una nariz de ficción e Demerol. Mas também é inquestionável em algo menos evidente, algo que o narrador de um de seus livros deixa muito claro: a obra de Bellatin pode ser lida como a busca, através da fotografia, e também de outros meios, de outro modo de escrita. O narrador de Shiki Nagaoka: una nariz de ficción diz, relatando as opiniões do personagem principal, que no porvir o escritor fará (não escreverá, mas fará) fotografias narrativas: A fotografia narrativa tenta realmente estabelecer um novo tipo de meio, alternativo à palavra escrita, e que talvez aquela seja a forma como serão concebidos os livros no futuro.
(BELLATIN, 2001, pp. 31-32) Um modo alternativo à palavra escrita: uma fotografia escrita.
A fotografia narrativa
Shiki Nagaoka é um personagem de ficção em torno do qual se organiza o livro que leva seu nome no título. Se esclareço que o personagem principal de um livro é ficcional
, é porque o nascimento
de Shiki Nagaoka ocorreu fora da ficção, numa conferência dada por Mario Bellatin sobre Meu escritor preferido
no Círculo de Belas Artes, no México, em 1998. Ali falou sobre Shiki Nagaoka. A partir dessa conferência e do interesse que gerou, ele escreveu o livro Shiki Nagaoka: una nariz de ficción, para inventar, para seu escritor favorito, uma biografia, uma vida. Como veremos mais adiante, o interessante, para além do gesto performático de Bellatin, é pensar como ele construiu um personagem cujas teorias sobre a literatura são, com efeito, as que constituem os textos do próprio Bellatin.
O livro, pseudobiográfico, inclui um dossiê fotográfico com imagens de objetos que supostamente oferecem uma janela para o mundo de Shiki Nagaoka e dois retratos onde não se vê claramente o escritor japonês. O corpo que se vê nas fotografias poderia ser o de qualquer pessoa. Na obra de Bellatin, o dossiê fotográfico como parte da biografia de um personagem de ficção funciona como desestabilizador, e não como prova ou documentação de uma verdade exterior à arte. As fotografias operam ali como desafio à singularidade, como visualização da fratura de qualquer projeto de identidade, impulsionando uma decomposição de unidade. Não representa nada, mas estabelece um regime em que o livro – com seu dossiê fotográfico – é arte. É arte pela convivência de elementos opostos: é arte porque é algo separado, autônomo da realidade e do mundo; e ao mesmo tempo é arte precisamente porque contém marcas, mais ou menos visíveis, de que em seu interior há elementos exteriores a essa autonomia, elementos que consideraríamos, precisamente, como pertencentes ao mundo. Aquilo que se vê na imagem existe (desse exato modo) tão só na imagem. De todos os meios através dos quais a arte adquire presença, a fotografia é o que contém essa heterogeneidade, essa convivência de polos opostos. A fotografia sempre, e ao mesmo, tempo é arte e não é arte. O dispositivo fotográfico permite algo contraditório ou em tensão: aproximar-se e afastar-se da realidade. É um espelho que reflete algo que não existe fora do espelho, algo assim como um espelho autorreferencial, autorreflexivo. É mimético. Mas o é falsamente, ou mentirosamente. Porque toda fotografia é também, antes de tudo, uma operação de montagem – corte, dissecção, reorganização para decompor a realidade – e por isso a produção de uma heterogeneidade que só pode ser entendida como estética e não mimética.
O livro de Bellatin joga com uma vida real
de ficção, que nasceu fora da arte, na realidade – durante a conferência que Bellatin deu em 1998 – que é documentada graças ao dossiê fotográfico, mas que não é realidade, documento nem verdade, mas arte. Esta convivência dentro da mesma obra de pulsões opostas – a separação, a autonomia e a intrusão da vida prosaica – é o que o campo filosófico contemporâneo, do ângulo de posicionamentos diversos, chamou estética.
Se o dossiê fotográfico em Shiki Nagaoka fosse prova de algo, seria uma dupla prova: prova do poder da ficção de inventar até seus próprios referentes no mundo real; prova de que é arte precisamente porque conseguiu acolher dentro de si aquilo que havia estado mais afastado da arte até esse momento – o índice do mundo que toda fotografia constitui.
Segundo o livro de Bellatin, Shiki Nagaoka era um escritor sério obcecado com as relações entre linguagem, fotografia e literatura
e considerava um privilégio contar com imagens visuais inteiras, que de algum modo reproduziam imediatamente o que as palavras e os ideogramas tardavam tanto a representar
(2001, p. 15). A questão é a velocidade, a rapidez, o narrador sublinha o tempo da imagem. Isso é o que interessava a Shiki Nagaoka: a agilidade e ligeireza oferecidas pela imagem. Há uma ambiguidade: aquilo por representar-se poderia ser realidade ou ficção. Esta capacidade da fotografia se resume, em outro fragmento do romance, como a potencialidade narrativa
desse meio. As imagens visuais permitem uma velocidade que a palavra escrita não tem: são, literalmente, instantâneas. É interessante que a capacidade de reproduzir com maior velocidade o que se queria representar deixa fora de jogo o mimetismo supostamente natural do meio fotográfico – ainda que claramente jogue com essa semelhança da imagem. Apesar de seu realismo inato
, a Shiki Nagaoka não interessa a verossimilhança da imagem, sua capacidade representativa e mimética.
A relação de Shiki Nagaoka com a fotografia se desenvolveu, segundo a biografia
de Bellatin, quando ele já era adulto. Depois de viver como monge durante treze anos, Shiki Nagaoka saiu do mosteiro e, ao ingressar na vida laica
, abriu uma loja de venda e revelação de fotos. Era o começo dos anos 30, uma época em que a fotografia se havia popularizado e começado a meter-se em todos os interstícios das vidas privada e pública. Pelo final da Primeira Guerra Mundial, antes de Shiki Nagaoka ingressar no mosteiro, a fotografia havia sido de uso exclusivo dos fotógrafos profissionais em seus estúdios, ainda que já nessa época ela começasse a ser a atividade de todos e elemento ubíquo da vida urbana moderna. Na loja de revelação passam pelas mãos de Shiki Nagaoka milhares e milhares de imagens fotográficas, e é depois de um tempo que ele se dá conta de que o que o estudo minucioso de cada imagem lhe proporciona é uma natureza que antes teria passado pelo olhar de um fotógrafo
(idem, ibidem, p. 25). A fotografia não redime
a realidade, mas inventa realidade. Essa natureza não é a realidade, mas a desnaturalização do natural, a desfamiliarização da realidade, a manipulação da realidade
. Como? A operação fotográfica reside em dissecar um fragmento do real, isolá-lo, e apresentá-lo, sempre, fora de contexto, em outros tempos e outros lugares. Isso sucede na fotografia, diferentemente de outros meios, a partir de sua característica indicial – o ser, literalmente, um vestígio. A operação estrutural da fotografia é a descontinuidade – a imagem está, sempre, fora de lugar, extraída do continuum de onde foi tirada. Mas, além disso, a fotografia não profissional
, ou seja, a fotografia já onipresente e acessível a todos na desordem
da redistribuição da esfera da arte e do sensível, o que Rancière chamou o regime estético da arte
, é uma das atividades-chave através da qual o homem comum faz
ou pratica
arte. Todos esses negativos que Shiki Nagaoka revela em sua loja são a prova de que a arte pertence a todos – é a vida e produção artística do anônimo.
Foi essa experiência cotidiana com a fotografia em sua loja e o forçado desfecho da Segunda Guerra que o levaram a viver em refúgios, isolado de um mundo de que só restariam, eventualmente, ruínas (período durante o qual sua loja foi destruída), o que levou Shiki Nagaoka a escrever seu grande livro, Foto e palavra. O livro, diz-nos o narrador, é escrito como pequenas semelhanças cotidianas, que dão a impressão de descrever de forma inocente uma série de fotos
e de forma fragmentária consegue mostrar quase de uma forma global sua sociedade
(idem, ibidem, p. 29).
Aparentemente, Foto e palavra marcou profundamente gerações de artistas, que viram na proposta de Shiki Nagaoka um novo método narrativo. Entre os seguidores do método Nagaoka estava Yasujiro Ozu, que se baseou no livro quando se preparava para filmar Tarde de outono. Foto e palavra deu a volta ao mundo e ofereceu a muitos uma nova maneira de entender a realidade
. Este novo modo de entender a realidade se dava através da escrita de fotografias narrativas
.
Como se escreve fotograficamente? O que está sugerindo o narrador do livro de Bellatin? A fotografia é uma operação sobre os materiais da vida – é isso o que habita as fotografias pessoais, essas que passariam por uma oficina qualquer de revelação, sem pretensões artísticas – porque provém da prosa do mundo
e ao mesmo tempo é o meio para recusar-se ao mundo, escrever sempre sobre uma já enquadrada e visível realidade que só guarda com o mundo empírico uma relação de fantasmagoria.
Seria então possível pensar que a fotografia narrativa
proposta pelo personagem de ficção de Bellatin é uma dessas passagens da literatura que a Escola Dinâmica de Escritores buscava impulsionar. Shiki Nagaoka: una nariz de ficción foi publicado no ano de 2001, o mesmo ano em que Bellatin funda a Escola Dinâmica de Escritores. É a partir desse ano que começam a aparecer em seus livros, de modo sistemático, fotografias e também experiências que levam a fazer fotografias com palavras. Numa entrevista de 2006, Bellatin diz a seu entrevistador que a câmera fotográfica é fundamental para mim
, dado que lhe permite criar estranhamento
(BELLATIN, 2006b, p. 68). Por que estranhamento? Que a fotografia estranhe
claramente contradiz o que poderíamos chamar os mitos populares sobre a fotografia já massificada do século XX: a fotografia, ao documentar a realidade, com os corpos, objetos e eventos que sucedem no mundo, é prova de que esse mundo, essa realidade, existe, e de que esses corpos e situações são verídicos, postulando assim a fotografia como uma espécie de polícia
da homogeneidade do mundo. Mas, como deixaram claro os surrealistas, que tanto usaram a fotografia e que constituíram Eugène Atget como um de seus precursores, este meio era também um instrumento para a exploração do inconsciente, para a escrita automática
buscada por Breton, para a apresentação (mas não para a representação nem para a reprodução) do mundo desnaturalizado, estranhado, para a desfamiliarização que Chklovsky