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Estética da resistência: A autonomia da arte no jovem Lukács
Estética da resistência: A autonomia da arte no jovem Lukács
Estética da resistência: A autonomia da arte no jovem Lukács
E-book654 páginas9 horas

Estética da resistência: A autonomia da arte no jovem Lukács

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Sobre este e-book

Arlenice Almeida da Silva, professora de estética e filosofia da arte na Unifesp, examina nesta obra os primeiros escritos estéticos de György Lukács. Com base em ensaios, cartas, diários e manuscritos inacabados de Lukács, escritos entre 1908 e 1918, a autora demonstra a atualidade e a relevância da primeira estética do filósofo húngaro, buscando preencher uma lacuna nos estudos sobre essa fase do pensamento lukacsiano no Brasil.

A primeira parte do livro aproxima esses escritos do contexto das vanguardas europeias, em especial a húngara e a alemã, detalhando a análise de Lukács sobre o fenômeno da cultura na modernidade. Em diálogo com o romantismo, destaca-se a originalidade de sua crítica estética, baseada na reflexão histórica e filosófica dos gêneros literários e de autores particulares, como Theodor Storm, Stefan George, Paul Ernst, Novalis, Laurence Sterne, Charles-Louis Philippe, Richard Beer-Hofmann e Søren Kierkegaard.

Na segunda parte, a obra demonstra como o jovem Lukács, em diálogo com várias correntes do pensamento pós-kantiano, estruturou uma estética centrada na autonomia da obra de arte. Emerge da leitura, ao fim, um Lukács ainda jovem e sempre vivo, interessado em buscar novas formas para expressar os impasses de nossas antigas encruzilhadas.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento30 de ago. de 2021
ISBN9786557170823
Estética da resistência: A autonomia da arte no jovem Lukács

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    Estética da resistência - Arlenice Almeida da Silva

    A capa é vermelha e no centro há uma reprodução da pintura Retrato feminino duplo (1909), óleo sobre tela, de Dezsö Czigány. A pintura apresenta o retrato uma mulher com o rosto virado para o canto direito da capa e vestindo uma blusa de gola redonda. Acima da imagem, está o nome da autora, Arlenice Almeida da Silva, em letras brancas sobre o fundo vermelho, e, abaixo, o título do livro Estética da resistência. O subtítulo do livro, A autonomia da arte no jovem Lukács, aparece na margem esquerda da pintura em letras pretas e o logo da editora aparece no canto inferior direito.

    Estética da

    resistência

    Sobre Estética da resistência

    Ricardo Musse

    Em Estética da resistência, Arlenice Almeida da Silva debruça-se sobre a teoria da autonomia da arte desenvolvida por György Lukács em seus escritos de juventude. Esse tema – divisor de águas na discussão estética desde o fim do século XVIII, palavra de ordem da vertente autodeclarada modernista – tem um de seus pontos altos na obra de Lukács do período 1908-1918. A originalidade dessa reflexão, derivada em larga medida de uma crítica certeira das premissas do Romantismo e do Idealismo alemão, tornou-a um ponto de partida incontornável na meditação sobre esse tópico desdobrada nos últimos cem anos por artistas, estetas e filósofos das mais diversas tendências e escolas.

    A questão da autonomia da arte constitui, no entanto, apenas o estopim do livro. O detalhamento do tema exige uma exposição abrangente, à qual Arlenice não se furta, da integralidade da produção de Lukács no período. O leitor é conduzido, com clareza e didatismo, por conteúdos e contextos de obras de difícil compreensão: a crítica filosófico-teatral que ordena a Evolução histórica do drama moderno; os ensaios reunidos em A alma e as formas e a Carta a Leo Popper, que justifica a composição desta obra; as reflexões sobre os diferentes tipos de narrativa – dos gregos aos russos do fim do século XIX – presentes em A teoria do romance e o esforço de síntese detectável nos fragmentos do manuscrito da Estética de Heidelberg.

    Este livro pode ser descrito assim como uma reconstrução da primeira estética de György Lukács. Nessa direção, a autora destaca os pontos de continuidade e de ruptura do teórico húngaro com o racionalismo kantiano, a metafísica dos românticos e a filosofia especulativa de Hegel. O eixo dessa comparação consiste na identificação dos fundamentos do método histórico-filosófico de Lukács, inventariados a partir de uma competente perquirição da crítica imanente desse autor a um conjunto de obras de arte particulares cuja amplitude não deixa de impressionar.

    Ainda mais. Atenta a uma sugestão de Lucien Goldmann (pouco desenvolvida por ele), Arlenice destaca o papel dessa primeira estética na inflexão filosófica do início do século XX na direção do existencialismo alemão e da filosofia da vida (e da duração) francesa. Salienta-se assim a aproximação entre ética e estética, mostrando como a percepção do mal-estar cristalizado na arte desencadeia no jovem Lukács um processo de consciência política, o qual exige uma atitude prática que o leva a aderir ao marxismo durante a Revolução Húngara de 1919.

    Sobre Estética da resistência

    O que impressiona nos primeiros escritos estéticos de György Lukács é a clareza da necessidade das perguntas e a originalidade das respostas. Seja no período ensaístico (1908-1911), seja quando de sua filosofia da arte (1912-1918) – balizas temporais dentro das quais este livro se insere –, o autor dedica-se ao tema da interioridade (Innerlichkeit) e, particularmente, da profunda interioridade. Nesses percursos, a alma oscila desmesuradamente, ora atraída por abismos, ora impelida a alturas ínvias. No jovem Lukács, chama a atenção o fato de que a descida é por vezes abrupta, uma queda, rumo ao abismo. O mesmo argumento pode ser dito das elevações que irrompem ao acaso e, lá de cima, prometem instaurar algo novo. O que a alma não consegue é permanecer em repouso.

    Sobre a autora

    Neta de húngaros que imigraram para o Brasil após a Primeira Guerra Mundial, Arlenice Almeida da Silva nasceu em Arapongas, Paraná. Estabelecendo-se em São Paulo, graduou-se em história na Universidade de São Paulo (USP), onde também concluiu o doutorado em filosofia, com tese defendida sobre O romance histórico, de György Lukács, em cuja edição brasileira (Boitempo, 2011) contribuiu com a apresentação. De 2005 a 2009, foi professora de estética no departamento de filosofia da Universidade Estadual Paulista (Unesp), campus de Marília. Desde 2010 é professora de estética e filosofia da arte no departamento de filosofia da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

    Arlenice Almeida da Silva

    Estética da resistência

    a autonomia da arte no jovem Lukács

    Logo da Boitempo

    © Boitempo, 2021

    © Arlenice Almeida Silva, 2021

    Direção-geral

    Ivana Jinkings

    Edição e preparação

    Carolina Mercês

    Coordenação de produção

    Livia Campos

    Assistência editorial

    Pedro Davoglio

    Revisão

    Sílvia Balderama Nara

    Capa

    Leticia Quintilhano

    sobre Retrato feminino duplo (1909), óleo sobre tela, de Dezsö Czigány

    Diagramação

    Antonio Kehl

    Equipe de apoio:

    Artur Renzo, Camila Nakazone, Débora Rodrigues, Elaine Ramos, Frederico Indiani, Heleni Andrade, Higor Alves, Ivam Oliveira, Jéssica Soares, Kim Doria, Luciana Capelli, Marina Valeriano, Marcos Duarte, Marissol Robles, Marlene Baptista, Maurício Barbosa, Raí Alves, Thais Rimkus, Tulio Candiotto

    Versão eletrônica

    Produção

    Livia Campos

    Diagramação

    Schäffer Editorial

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    S578e

    Silva, Arlenice Almeida da

    Estética da resistência [recurso eletrônico] : a autonomia da arte no jovem Lukács / Arlenice Almeida da Silva ; [prefácio de Jorge de Almeida]. - 1. ed. - São Paulo : Boitempo, 2021.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital edition

    Modo de acesso: world wide web

    Inclui bibliografia e índice

    ISBN 978-65-5717-082-3 (recurso eletrônico)

    1. Lukács, György, 1885-1971. 2. Arte - Filosofia. 3. Estética. 4. Livros eletrônicos. I. Almeida, Jorge de. II. Título.

    Meri Gleice Rodrigues de Souza - Bibliotecária - CRB-7/6439

    É vedada a reprodução de qualquer parte deste livro sem a expressa autorização da editora.

    A publicação deste livro recebeu o apoio da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), processo n. 2019/14653-2.

    As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade dos autores e não necessariamente refletem a visão da Fapesp.

    1ª edição: agosto de 2021

    BOITEMPO

    Jinkings Editores Associados Ltda.

    Rua Pereira Leite, 373

    05442-000 São Paulo SP

    Tel.: (11) 3875-7250 / 3875-7285

    editor@boitempoeditorial.com.br

    www.boitempoeditorial.com.br

    www.blogdaboitempo.com.br

    www.facebook.com/boitempo

    www.twitter.com/editoraboitempo

    www.youtube.com/tvboitempo

    www.instagram.com/boitempo

    Para Ricardo Fabbrini, com amor.

    À minha irmã, Marcia Almeida Keppk,

    in memoriam.

    SUMÁRIO

    Apresentação

    Prefácio – Jovens caminhos e velhas encruzilhadas – por Jorge de Almeida

    Introdução

    Parte I: Primeiros ensaios estéticos

    1. Wanderung: peregrinação e errância

    1.1. O ensaio: o caminho em direção à forma

    1.2. A filosofia: o caminho para regressar à vida

    1.2.1. Novalis

    1.2.2. Kierkegaard

    2. O caminho épico: criar formas objetivas

    2.1. Theodor Storm: o trabalho e a novela

    2.2. Charles-Louis Philippe: Sehnsucht e o idílio

    2.3. Laurence Sterne: romance e ironia

    3. O caminho lírico: Stefan George e a solidão

    4. O drama: a escalada para o salto

    4.1. Richard Beer-Hofmann

    5. Romance: a peregrinação (Iniciado o caminho, consumada está a viagem)

    5.1. Filosofia da história

    5.2. Dialética interna

    5.3. A peregrinação da subjetividade

    Excurso sobre a Stimmung

    Parte II: A autonomia da arte

    1. Filosofia da arte

    1.1. O duplo mal-entendido

    1.2. A fenomenologia estética

    1.3. Fenomenologia do receptor

    1.4. Fenomenologia do criador

    Conclusão

    2. Estética de Heidelberg: o valor da obra de arte

    2.1. A relação sujeito-objeto

    2.2. Dialética transcendental da ideia de beleza

    2.3. O desenvolvimento filosófico-especulativo da ideia de beleza

    3. Historicidade da obra: a novidade atemporal

    Referências bibliográficas

    Índice onomástico

    APRESENTAÇÃO

    Este livro debruça-se sobre o começo de uma trajetória intelectual: os escritos estéticos de 1908 a 1918 do jovem Lukács. Com isso, não se visa a uma declaração de princípios, por meio da qual se afirme a preferência pelo jovem em detrimento do velho; pretende-se, sobretudo, preencher uma lacuna nos estudos estéticos, demasiado escassos no Brasil sobre essa fase, demonstrando a atualidade da primeira estética de György Lukács. O que havia nessa produção intelectual, nos anos 1910, de escandaloso, levando-a a ser considerada por alguns inatual ou, ainda, reativa? Que lugar a obra vastíssima e por vezes incômoda do jovem Lukács reivindica no interior do pensamento dos séculos XX e XXI? Certamente o autor intenta abrir um diálogo no campo da filosofia, uma vez que inicia seu percurso intelectual refletindo sobre a formação dos conceitos e o modo de interrogá-los; no interior da filosofia, Lukács elege, contudo, um domínio específico, o da estética – a qual reivindicava, desde o fim do século XVIII, um campo autônomo. Lukács aproxima-se dessa tendência e em seu interior problematiza radicalmente o tema da autonomia da obra de arte. Como resultado, temos uma estética que não é prescritiva nem puramente especulativa: de um lado, como Hegel, o jovem Lukács opera com um modo histórico-filosófico de abordagem; de outro, dialoga com a metafísica para exacerbar ao máximo suas aporias. Grosso modo, o debate com o idealismo alemão e com o romantismo visa a uma crítica original ao racionalismo de matriz kantiana, no sentido do enfrentamento da crise da subjetividade, reduzida, na sua opinião, ao subjetivismo, isto é, a uma subjetividade formal e vazia. Em carta a Leo Popper, de 21 de outubro de 1909, Lukács esclarece a particularidade da sua crítica ao romantismo, cujo pensamento era insuficiente, para ele, por abrigar um racionalismo que projetava as formas no mundo, assemelhando formas, mundo e coisa-em-si, embaralhamento do qual a arte saía enfraquecida, pois decorria apenas do pressuposto de uma unidade já dada metafisicamente. Valorizando de forma radical a especificidade da arte, Lukács acentua que é fundamental não elidir as distâncias entre esses elementos, incitando a filosofia a transpor a pergunta Como a unidade pode nascer da multiplicidade? para Como podemos ver, experimentar, viver como unidade a incomensurabilidade, a multiplicidade, a heterogeneidade qualitativa?[1].

    Partimos, assim, da sugestão de Lucien Goldmann, em um artigo publicado na revista Les Temps Modernes em 1962, de que o jovem Lukács, nos anos 1910, com A alma e as formas, teria inaugurado o renascimento filosófico europeu – que, após a Primeira Guerra, viria a receber vários rótulos, entre eles o de existencialismo. Renascimento que, de um lado, reata com a grande tradição da filosofia clássica ao dedicar-se precisamente às relações entre a vida humana e os valores absolutos; e, de outro, busca recuperar o sentido autêntico do pensamento kantiano, a favor e contra as várias correntes neokantianas; e que, por fim, com o ensaio, renova a escrita filosófica ao romper com a tendência em curso que havia substituído o filósofo pelos professores de filosofia[2]. Esse ponto de partida estimulou, então, esta obra a aproximar os escritos ensaísticos dos manuscritos especulativos, publicados postumamente, com o intuito de verificar se, de fato, Lukács, com sua visão trágica, em permanente tensão com a história, inaugurou um novo pensamento, cujo eixo norteou a exposição de sua primeira estética.

    Este livro deve muito aos trabalhos já clássicos dedicados ao jovem Lukács, como os de Lucien Goldmann, Ernst Keller, Nicolas Tertulian, György Márkus, Ferenc Fehér, Ágnes Heller, Rainer Rochlitz, entre muitos outros. É igualmente devedor de diálogos mais recentes com Miguel Vedda, Niklas Hebing, Werner Jung, Rüdiger Dannemann, Carlos Eduardo Jordão Machado, Celso Frederico, Ester Vaisman, Rainer Patriota, Ricardo Musse, Jorge de Almeida, Leopoldo Waizbort, Carlos Berriel, Luciano Gatti, entre outros.

    Entre os interlocutores, presto especial homenagem a Carlos Eduardo Jordão Machado, nosso querido Cadu, cujo desaparecimento em 2018 deixou uma grande lacuna. Por anos foi um generoso companheiro nos estudos sobre o jovem Lukács; um leitor atento, sempre disposto a ouvir e debater ideias, sempre amante das artes e da vida. Agradeço igualmente a meus alunos, orientandos e pesquisadores com os quais tive a oportunidade de continuar estudando a obra de Lukács, a saber, Willian Mendes, Douglas Barros, João Gilberto Silva, Fernando Aun, Márcio Oliveira, Anuche Kurkdjian e Bruno Moretti. Sem eles, essa caminhada não se teria completado.

    Agradeço, por fim, à Fapesp pelo auxílio para a publicação do livro.

    Principais textos de Lukács examinados e siglas adotadas:

    AeF: A alma e as formas: ensaios. Tradução de Rainer Patriota.

    AK: Cultura estética. Tradução (para o espanhol) de Miguel Vedda.

    TdR: A teoria do romance. Tradução de José Marcos Mariani de Macedo.

    PhK: Heidelberger Philosophie der Kunst[a].

    HÄ: Heidelberger Ästhetik[a].

    Bri: Briefwechsel (1902-1917)[a].


    [1] Carta de Lukács a Leo Popper, de 20 de dezembro de 1910, citada em Éva Karádi e Éva Fekete, La Correspondance de jeunesse de György Lukács, L’Homme et la Société, n. 43-44, 1977, p. 39.

    [2] Lucien Goldmann, Introduction aux premiers écrits de Georges Lukács, em György Lukács, La Théorie du roman (Paris, Denoël, 1989), p. 159-60.

    [a] Obras que não possuem edição brasileira. Os trechos dessas obras citados neste livro foram traduzidos pela autora. (N. E.)

    PREFÁCIO

    Jovens caminhos e velhas encruzilhadas

    Jorge de Almeida

    A visão retrospectiva proporcionada pela suposta maturidade da velhice é muitas vezes injusta com os desejos e feitos da juventude. O leitor que se aproxima de Lukács pela leitura de sua obra A teoria do romance, publicada em 1916, não pode deixar de se surpreender com a dureza do julgamento contido no prefácio escrito pelo próprio autor, em 1962, para a reedição da obra: "Se hoje, portanto, alguém lê A teoria do romance para conhecer mais de perto a pré-história das ideologias relevantes nos anos vinte e trinta, pode tirar proveito de tal leitura crítica. Mas se tomar o livro na mão para orientar-se, o resultado só poderá ser uma desorientação ainda maior"[1].

    O estudo das obras de juventude de Lukács demonstra que a desorientação pode ser um bom primeiro passo para a busca de novos caminhos. A historiadora e filósofa Arlenice Almeida da Silva, na interpretação profunda e original que o leitor tem agora em mãos, nos convida a pensar que o tema da errância, do caminhar sem rumo, era visto pelo jovem Lukács como um passo essencial e produtivo para o pensamento crítico. Se a certeza da via inexorável que levaria à redenção futura, despertada no filósofo húngaro após a Revolução Russa, mostrou-se historicamente um beco sem saída, cabe então rever as trilhas deixadas em aberto pelo jovem filósofo, antes de sua conversão ao marxismo e seu engajamento na política revolucionária.

    Arlenice não apenas nos convence da importância histórica desses desprezados escritos de juventude – até mesmo para a reavaliação das obras posteriores de Lukács –, como também, diante do novo contexto de crise em que estamos vivendo, ressalta a atualidade de um pensamento crítico que, aproximando ética e estética, consegue superar os limites da filosofia acadêmica tradicional. Buscando resgatar o interesse e o espanto com que os primeiros leitores receberam essas obras, este livro apresenta e contextualiza os escritos estéticos redigidos entre 1908 e 1918: a abundante crítica teatral; os ensaios publicados em A alma e as formas; os manuscritos da chamada Estética de Heidelberg; e sua monumental, embora inconclusa, A teoria do romance.

    Uma questão serve como fio condutor: o papel da autonomia da obra de arte em uma modernidade marcada pela crise. Nos vários capítulos deste belo estudo, Arlenice segue as pistas deixadas por Lukács: não se concentra nas possíveis respostas oferecidas pelo filósofo, mas sim nas questões fundamentais levantadas por ele a partir do contato vivo e tenso com a literatura da época. Ao elucidar e contextualizar essas perguntas, a autora não pretende extrair de seus objetos um suposto método histórico-filosófico, mas sim instilar novamente nas obras o espírito – para não dizer a alma – da verdadeira prática ensaística. É possível recuperar a substancialidade que o sujeito perdeu?, pergunta o atormentado Lukács. Suas obras de juventude respondem, nas entrelinhas: somente se esse sujeito perdido acolhe seu destino histórico e respeita a resistência oferecida pelos objetos e pelo mundo que o cerca. A expressão dessa interioridade (base da ação do sujeito burguês no interior da cultura) jamais pode deixar de ser um problema, pois é a consciência de sua impossibilidade que garante a possível autonomia de suas obras.

    Como o problema não é epistemológico, e sim estético, Arlenice persegue o bom princípio da leitura atenta das obras analisadas e interpretadas por Lukács. Esse talvez seja um dos pontos altos deste livro: as obras de arte não aparecem aqui como meros exemplos ou ilustrações de supostas teses filosóficas, mas como objetos instigantes e complexos, justamente por serem capazes de gerar renovados questionamentos sobre si mesmos e sobre o mundo. Dando voz a peças, poemas, novelas e romances interpretados por Lukács – um conjunto de obras muito variado, devido à curiosidade erudita e poliglota do jovem intelectual –, Arlenice insufla vida, pela prática da leitura sensível e inteligente, no tão abusado conceito de crítica imanente.

    Pois a verdadeira crítica, como lembra o jovem Lukács, deve ser um questionamento essencial à Vida, nada menos que isso. Qualquer professor que tenha indicado aos alunos a leitura dessas obras sabe que, ao lado do fascínio despertado pelo uso constante de termos como alma, forma, fogo, morada, desterro, demônio, céu estrelado, sobrevém o desconforto acadêmico com a dificuldade de compreensão do significado exato desses conceitos. Trata-se de filosofia, afinal? Dialogando com a vasta fortuna crítica do autor, Arlenice não foge do problema e busca desvendar os sentidos dessa terminologia aparentemente datada – considerada obscura até mesmo por seus primeiros leitores, contemporâneos de Lukács – ao lembrar seus vínculos com o Romantismo e a Lebensphilosophie alemã. Assim, a questão deixa de ser simplesmente estilística e passa a ser histórica, já que esses termos aparentemente poéticos e descompromissados refletem problemas gerados por uma cultura paradoxal: aquela que, da periferia em ebulição (Hungria, Alemanha), no auge do processo de modernização burguesa, toma consciência pela arte dos motivos para seu mal-estar.

    No melhor espírito lukacsiano, a autora ressalta o sentido político mais profundo dessas questões, quando trazidas para o chão histórico: como pode a alma se expressar na modernidade? É a cultura (Kultur) hoje possível? Pode a vida esfacelar a forma, dissolvê-la? E o que está assim disforme pode se transformar em nova forma? Reconhecendo o sentido social dessa crise, este estudo defende que Lukács não é, de modo algum, um mero nostálgico da substancialização perdida[2]. Enquanto a filosofia vitalista almejava uma harmonia futura, baseada na recuperação da antiga harmonia perdida, Lukács está justamente interessado no potencial expressivo da crise. É por isso que suas obras de juventude ressaltam a dissonância, não uma eventual e forçada reconciliação. Ao discutir a importância da nostalgia nas obras que estuda, o filósofo húngaro não se aproxima do ideal reacionário, mas sim, como frisa Arlenice, busca por uma saída, passagem ou ainda um modo de seguir em frente[3].

    Esse ponto é muito importante, pois identifica na obra de Lukács, mesmo antes da guinada marxista, uma afiada crítica política ao mundo contemporâneo. Embora terminologia e paradigma teórico tenham mudado, existiria uma continuidade de questões entre as duas fases. Nesse sentido, segundo Arlenice, não é possível despolitizar o jovem Lukács, porque a questão da forma já é política, mesmo que a referência social ainda não seja explícita. Adorno dirá o mesmo, defendendo o jovem crítico contra o velho marxista avesso às vanguardas. Caberia então perceber, na obra juvenil de Lukács, os elementos que viriam a permitir, anos mais tarde, o desenvolvimento de uma crítica materialista ao idealismo da filosofia e da literatura na Alemanha.

    Tendo isso em mente, este livro apresenta uma interessante contextualização dos anseios e das tensões do jovem filósofo na acanhada cultura húngara da virada do século. O anticapitalismo húngaro, marcado pela nostalgia e pelo escapismo, parece ter criado uma visão aguçada para a compreensão das contradições entre o atraso e o progresso. Lembro, sem cometer nenhuma indiscrição, que, apesar dos nomes de família portugueses, Arlenice é descendente de húngaros e conhece muito bem a língua e a cultura daquele país. O que poderia constituir mera curiosidade torna-se essencial para o desenvolvimento de sua pesquisa. A visão estrangeira que Lukács desenvolve sobre o Romantismo alemão abandona a tradicional visão ufanista nacional e escolhe ressaltar não os momentos de afirmação, mas os sintomas de crise. Uma crise que, Arlenice insiste, é ao mesmo tempo estética e ética: apesar de todos os constrangimentos, a alma deve escolher o caminho diante de cada encruzilhada.

    A forma mais adequada para expressar essa escolha é justamente a do ensaio. Extremamente atacado e desacreditado no sistema acadêmico e intelectual alemão, no qual o jovem Lukács tentava em vão se inserir, o ensaio como forma é apresentado, na célebre carta a Popper que abre o coletânea A alma e as formas, como uma forma artística que não é arte, uma nova ordenação conceitual da vida[4]. Pois o que aproxima a alma e as formas é justamente a vida: vida da alma, vida das formas. Seguindo os passos de seu mestre, Max Weber, os ensaios de Lukács investigam a perda do sentido da vida diante dos processos de racionalização do mundo moderno. Resumindo: para configurar algum sentido, a vida precisa de uma subjetividade ativa, algo historicamente cada vez mais raro, em que pese a autoglorificação do indivíduo burguês. O ensaio não é, portanto, uma opção formal, mas uma escolha ética: a busca de uma forma de expressão verdadeira, que não tem mais lugar no mundo racionalmente organizado ao modo capitalista, ainda no sentido weberiano do termo.

    Se o ensaio encontra o caminho para desvendar as formas, ele próprio torna-se aventura. Diante das encruzilhadas modernas, como nos mostra Arlenice, Lukács vai recuperar o sentido crítico da filosofia do Romantismo alemão, dialogando com os autores que, seguindo os passos de Goethe (presença constante, mas não explícita nesses escritos), buscaram estabelecer uma nova morfologia da vida das obras. No primeiro Romantismo, as obras também aproximam ética, estética e política, mediadas por questões fundamentais, tais quais: como buscar a vida autêntica no mundo das convenções? É possível escapar do mundo pela via da interioridade? E se essa interioridade já estiver contaminada ou inacessível? Como dar forma à sua expressão original e genuína, tarefa de todo artista? O tema da autonomia (não apenas da obra, mas do pensamento como um todo) transborda da vida privada (que era pública) para a pública (que era privada). Na difícil dialética de um país avesso a revoluções, a arte ganha o primeiro plano para a expressão de posições políticas censuradas ou inconfessadas.

    Recuperando as crises do Romantismo, Lukács nota que, se a obra é a objetivação da interioridade subjetiva, organização do caos interno e do mundo, a própria conquista da forma já é um desafio, quando as formas antigas foram reduzidas a invólucros convencionais ou vazios. Em todo esse debate, brilhantemente recuperado por Arlenice em seu estudo, ecoam algumas passagens de Lukács sobre o sentido contraditório da forma artística: A forma é o paradoxo encarnado, a realidade vivida. […] A forma não é uma reconciliação, mas a guerra eterna dos princípios antagônicos[5].

    Examinando as raízes desse paradoxo, a autora deste livro mostra como Lukács retorna ao tema da tensa dualidade entre sujeito e objeto na filosofia romântica. A forma, para ser configurada, às vezes pende para o lado do Eu perdido a ser reconquistado e reafirmado (Fichte); outras vezes, para um Eu fraturado, que encontra na arte a promessa da unidade perdida (Schiller); ou ainda mergulha na aventura nostálgica do retorno a uma pátria filosófica segura, mesmo que esta se confunda com a morte (Novalis). Todos esses caminhos se cruzam com o de Goethe, no qual a crítica é vista como a possibilidade de uma unidade viva.

    Mas essa é uma unidade possível, na modernidade? Não, responde Lukács: as condições históricas, jamais explicitadas, não mais a permitem. O artista moderno, indivíduo burguês, está condenado à vida comum. Somente tendo consciência dessa tragédia sua obra pode superar, no âmbito da cultura, o paradoxo de sua existência. Daí a importância da ironia, tão tematizada pelos românticos como a forma filosófica do paradoxo. Ao pensar a ironia como paradoxo histórico, não meramente ideal, o jovem Lukács mostra-se bem mais dialético do que se pensa, talvez do que ele próprio tenha pensado em sua maturidade.

    No ensaios que compõem o volume A alma e as formas, escritos entre 1909 e 1910, quando o jovem tinha apenas 25 anos, a estética baseada na autonomia da obra problematiza a si mesma ao colocar a questão ética no centro das perguntas, diante do esteticismo da arte pela arte dominante na época. Evitando a mera paráfrase dos ensaios, Arlenice recupera a tensão viva entre a crítica e as obras que lhe servem de objeto. Theodor Storm, Stefan George, Paul Ernst, Novalis, Laurence Sterne, Charles-Louis Philippe, Richard Beer-Hofmann, Søren Kierkegaard: cada autor ganha vida no esmiuçar dos argumentos de Lukács, cada obra ganha seus contornos como lugar da dissonância produtiva. Lukács reencontra aqui os românticos: qual caminho tomar nas encruzilhadas da modernidade? Novos caminhos, novos gêneros de expressão.

    Esses novos caminhos são analisados e criticados por Lukács, em um movimento acompanhado de perto por Arlenice. O novo drama é incapaz de vincular o indivíduo ao todo, não há lugar para a tragédia no mundo burguês. A poesia de Stefan George ganha importância não pelo hermetismo aristocrático, mas por exaltar o grito de desespero como saída para a banalidade do mundo; é o mergulho na interioridade cindida que lhe garante autenticidade e beleza. As novelas de Storm são lidas como uma reação alemã à modernidade industrial: a defesa da ordem e do trabalho pacato cotidiano no contexto da cisão entre comunidade e sociedade, um dos principais temas da sociologia alemã na virada do século.

    Chegamos, enfim, a A teoria do romance, até hoje uma obra incontornável da crítica literária moderna. Pensado como estudo preparatório para uma interpretação da ética na obra de Dostoiévski, o livro foi publicado durante a Grande Guerra, em 1916. Sem entrar nos detalhes dessa obra tão complexa, chamo aqui atenção para quatro pontos originais levantados pela leitura de Arlenice. O primeiro é o argumento de que não há oposição nem superação, mas sim continuidade entre A alma e as formas e A teoria do romance. Como diz a autora, retomando a metáfora do caminhar aventuroso presente nas duas obras, não há um desvio de rota, e sim um aprofundamento das posições. O segundo achado é a presença de Schlegel e Schiller como fontes românticas que embasam a visão do mundo clássico elaborada por Lukács. A questão da unidade rompida, comenta Arlenice, pode ser lida como uma resposta a Schiller. Sem a unidade pressuposta nos sonhos de uma educação estética da humanidade, resta o caminhar perdido do herói do romance. O terceiro ponto é a importância do diálogo com Kierkegaard: se a carência de vínculos sociais leva à impossibilidade de representação, como configurar a forma do romance, objetiva por natureza? A consciência dos limites do indivíduo problemático assume então feição demoníaca, diante da ausência de fundamento e certeza do todo. Por isso o romance seria a forma irônica por excelência. Finalmente, se o novo gênero do romance resolve na totalidade da forma as fraturas históricas da vida, Arlenice demonstra como Lukács repensa a historicidade dos gêneros proposta pela estética hegeliana. Mantendo aberta a trama dialética, a teoria do romance parte de Hegel para se voltar contra Hegel, deixando os caminhos abertos e sem resolução. Dostoiévski, nos lembra a autora, aparece não como coroamento, mas sim como superação do romance, epopeia da vida burguesa. A revolução social está no horizonte; como despolitizar esse livro escrito durante a Grande Guerra?

    Esses e outros temas serão revistos na segunda parte da pesquisa, acompanhando agora a tensão entre autonomia das obras e resistência do mundo nos manuscritos sobre filosofia da arte e na estética desenvolvida por Lukács durante seus estudos na Alemanha. Novamente, a leitura atenta de Arlenice chama atenção para ideias cruciais: o conceito de mal-entendido; a não comu­nicabilidade da experiência estética genuína; a obra como imediaticidade normativa universal; os problemas da fenomenologia da criação artística; a simbolização da experiência de alteridade; a dialética entre matéria e forma, entre tantas outras.

    Da leitura deste estudo brilhante de Arlenice Almeida da Silva emerge um Lukács ainda jovem e sempre vivo, capaz de indicar ao leitor de nosso tempo não o caminho a ser trilhado (como talvez quisesse o Lukács maduro), mas o interesse em buscar novas formas para expressar os dilemas de nossas antigas encruzilhadas, com a confiança de que o ato corajoso de ensaiar a configuração artística da crise já é um passo para podermos, juntos, superá-la.


    [1] György Lukács, Prefácio, em A teoria do romance: um ensaio histórico-filosófico sobre as formas da grande épica (trad. José Marcos Mariani de Macedo, São Paulo, Duas Cidades/Editora 34, 2000), p. 19.

    [2] Ver, neste volume, p. 24.

    [3] Ver, neste volume, p. 26.

    [4] György Lukács, Sobre a forma e a essência do ensaio: carta a Leo Popper, em A alma e as formas: ensaios (trad. Rainer Patriota, Belo Horizonte, Autêntica, 2015), p. 31.

    [5] Carta de Lukács a Friedlaender, de julho de 1911, citada em Éva Karádi e Éva Fekete, La Correspondance de jeunesse de György Lukács, L’Homme et la Société, n. 43-44, 1977, p. 43.

    INTRODUÇÃO

    E sempre esta ânsia para o desmedido. Muita coisa, porém, deve

    Ser preservada. E é necessária a lealdade.

    Mas nós nem para diante nem para trás

    Queremos olhar.

    Friedrich Hölderlin, Mnemosine (Mnemosyne)[1]

    Nem tudo os do céu podem. De fato, são os mortais

    Quem primeiro desce ao abismo. É esse

    O seu destino. Longo é

    O tempo, mas vem à luz sempre

    O verdadeiro.

    Friedrich Hölderlin, A ninfa (die Nymphe)[2]

    Aceitando como ponto de partida a sugestão do poeta de que o homem anseia pela desmedida, iniciaremos a investigação com a descida ao abismo da interioridade. Em Friedrich Hölderlin, o que significa pensar a intimidade (Innigkeit) da interioridade (Innerlichkeit) mais profunda? Um acerto de contas com os deuses, quando os homens voltam a se medir pelo divino, em uma mística negativa? Ou, inversamente, significa radicalizar a ruptura com o divino, em uma experiência de liberdade transgressiva? O tema da descida do sujeito moderno ao abismo exige, entre outras tarefas, que o pensamento, neste começo de século, volte a colocar ao contexto pós-kantiano a seguinte pergunta: de que maneira tratar o sujeito transcendental – como inevitável ou como uma figura do passado que pode ser superada? É possível recuperar a substancialidade que o sujeito perdeu, após ser reduzido a forma vazia ou forma pura, a uma função de síntese[3]?

    O que impressiona nos primeiros escritos estéticos de György Lukács é a clareza da necessidade dessas perguntas e a originalidade das respostas. Seja no período ensaístico (1908-1911), seja quando de sua filosofia da arte (1912-1918) – balizas temporais dentro das quais este livro se insere –, o autor dedica-se ao tema da interioridade (Innerlichkeit) e, particularmente, da profunda interioridade. Uma interioridade apresentada em crise e que, portanto, se põe a si mesma constantemente como um problema. Uma interioridade que, contudo, não se assemelha a um espírito, pois é ainda alma (Seele), uma realidade anímica que resiste a ser reduzida a uma subjetividade formal ou a um Eu (Selbst), e que, por isso mesmo, imersa no tempo e na contingência, está sempre em perigo, já que neles sofre terríveis tormentos, deixando-se revelar apenas parcialmente diante dessas encruzilhadas e dúvidas, na exigência de se equilibrar entre as tensões em jogo. Nesses percursos, a alma oscila desmesuradamente, ora atraída por abismos, ora impelida a alturas ínvias. No jovem Lukács, chama a atenção o fato de que a descida é por vezes abrupta, uma queda, rumo ao abismo. O mesmo argumento pode ser dito das elevações que irrompem ao acaso e, lá de cima, prometem instaurar algo novo. O que a alma não consegue é permanecer em repouso.

    Ao falar em alma, Lukács poderia indiciar relações místicas, justificando a pecha da fragilidade de pensamento por aqueles que o acusam de exibir uma produção oscilante do ponto de vista da fundamentação filosófica[4]. De fato, o vocabulário indicia recuo, como se o autor situasse filosoficamente a alma na disputa medieval entre os universais e a singularidade, entre Platão e Aristóteles, combate a partir do qual Lukács apresentaria uma alma marcada pela dualidade, pelos extremos, ou ainda, pelo predomínio de tendências díspares. Essa seria a razão de Lukács falar inúmeras vezes em dois tipos de rea­lidade da alma – a vida imediata, com a alegria da existência, e a verdadeira vida da alma, que seria a esfera da arte –, apontando como delas decorrem formas diferentes de escrita. No entanto, mais do que oposições entre corpo e alma, sensível e inteligível ou perecível e imortal, a dualidade circunscrita pelo jovem filósofo húngaro se refere a uma questão estética moderna, isto é, à forma de exibição da alma e, mais especificamente, à sua relação com as formas de apresentação da vida: a contraposição entre aquilo que tem figura, contorno, homogeneidade e aquilo que é, no geral, inapreensível, sem cor e sem figura, manifestando-se apenas como transparência.

    É por essa razão que Lukács, penetrando no tempo como um Fausto, historicizando o problema da alma – a força de conhecer e querer, como em Johann Gottfried von Herder –, parte da crítica kantiana, de seus mapas geográficos e da reflexão estética romântica, procurando por meio de outro fio condutor, de outra Lustreise, esboçar caminhos possíveis. Lukács aproxima as polêmicas estéticas do fim do século XVIII da Lebensphilosophie e do neokantismo, da segunda metade do século XIX, circunscrevendo um campo teórico que lhe permite capturar uma alma que é ainda capaz de introduzir perguntas substanciais no tempo; por essa razão, tais perguntas são nomeadas de vivências (Erlebnisse) ou modos de sensibilidade (Art des Empfindens) e dirigidas para as questões últimas da vida. Em A alma e as formas, o campo da investigação é apresentado com clareza: "Trata-se da vivência (Erlebnis) intelectual, da vivência conceitual – as questões intelectuais vividas sentimentalmente, como realidade imediata, como princípio espontâneo da existência; a concepção de mundo em sua pura nudez, como acontecimento anímico, como força motora da vida"[5]. Se, para o sujeito moderno, a dualidade entre arte e vida não pode ser completamente eliminada, ao menos ela pode ser apreendida como tensão, como problema estético, uma vez que a poesia é a voz com a qual a alma dirige suas perguntas à vida[6], vinculando-se, assim, à vida vivente (lebendige Leben).

    Como entender, no entanto, as inquietações e os sofrimentos que brotam da leitura de cada ensaio do jovem húngaro? Seriam ocasionados por aquilo que a alma perdeu ou por medo daquilo que conquistou, uma liberdade até então nunca alcançada? Em A teoria do romance, esse paradoxo do sofrimento é assumido já em chave meta-histórica: ele é o sofrimento lúcido do sujeito moderno que busca a adequação das ações às exigências intrínsecas da alma: grandeza, desdobramento, plenitude, embora saiba que aquilo de que fogem (as belas almas) para buscar abrigo junto aos gregos é a sua própria profundidade e grandeza[7].

    É por isso que o jovem Lukács, leitor também de Hegel, não é, de modo algum, um mero nostálgico da substancialização perdida. Certamente subscreve a crítica hegeliana à figura literária da bela alma, ensimesmada e prisioneira das tramas morais e religiosas. Figura marcante da produção alemã da época de Goethe, por sua enganosa magnificência do ânimo e impostura autoenganadora da própria virtude e excelência que decorrem justamente de uma grandeza e divindade da alma que, sob todos os aspectos, entra numa relação enviesada com a efetividade e esconde para si mesma, por meio da nobreza, a fraqueza de não poder suportar e trabalhar o autêntico conteúdo do mundo existente, em cuja nobreza ela afasta tudo de si como não sendo digno dela[8]. Nesse sentido, o que Lukács almeja é reconfigurar a crítica à bela alma, fechada ao efetivo e que permanece apenas em si mesma, como sintoma de uma crise que não é só do artista ou da arte do fim do século XVIII, mas que se prolonga como crise cultural até o século XX, e que deve ser entendida para além de Hegel ou dos temas da dissolução da arte romântica, ou até mesmo do fim da arte. Uma crítica que não visa deslocar a arte para outra esfera, mas compreendê-la como necessária e vital.

    De fato, estamos diante de um pensamento incomum, que busca inserir-se no debate intelectual estético dos anos 1910, fundamentando-o filosoficamente; apartando-se, não obstante, do estilo dos tratados universitários ou, segundo Lucien Goldmann, das deformações universitárias, em busca de um formato de exibição no qual o caráter pessoal e a experiência de vida não se anulem na obra. É o que testemunha um dos principais alunos de Lukács, György Márkus, ao afirmar que a cultura, como problema histórico e crítico, foi o único pensamento de toda a vida de Lukács. Uma trajetória que despontou com a seguinte pergunta: "É a cultura (Kultur) hoje possível?"[9] [a]. De um lado, a questão indicia um olhar crítico que hierarquiza as obras de arte, separando o que chama de alta cultura das demais; de outro, nota-se na pergunta a preocupação com o efeito da arte no presente, ou seja, com a cultura em geral. Para Márkus, não há nenhum rastro aristocrático no procedimento, haja vista que a pergunta pela cultura é uma pergunta pela vida, como unidade de vida ou, ainda, como produção simbólica. Nicolas Tertulian observa, nessa direção, que os artigos de A alma e as formas exibem uma subestrutura ético-intelectual: a crise do artista diante da realidade sempre mais amorfa e banal era apenas mais um aspecto de uma crise espiritual mais geral[10].

    As últimas linhas da resenha de 1921 de Siegfried Kracauer sobre A teoria do romance também indicam, de modo sugestivo, as tensões em torno das quais operam o pensamento do jovem Lukács e – por que não dizer? – boa parte da própria filosofia no começo do século XX. Isso porque, com um modesto título, diz Kracauer, Lukács vislumbra a situação histórico-filosófica de decomposição da época e dela infere a tarefa da filosofia, qual seja, a de manter viva a chama da nostalgia até que surjam as ações ou obras que possam desfazer a maldição da carência de sentido[11]. Se a avaliação de Kracauer estiver correta, poder-se-ia concluir, então, que só restaria à filosofia regressar a uma idade de ouro perdida e nutrir-se da esperança de felicidade de outrora? De modo algum: desde Kant, Fichte, Novalis, Hegel, Kierkegaard e outros, com os quais o jovem Lukács dialoga, sabe-se que só é possível pensar no tempo; pensar fora do tempo é uma quimera[12]. Certamente o tempo é dito de formas variadas por esses autores. Mesmo assim, podemos inferir que, para Lukács, a chama da nostalgia não é retorno, mas busca por uma saída, passagem ou ainda um modo de seguir em frente; é o impulso para trilhar um caminho que começa com a consciência do problema vital da época e avança com a percepção e a intensificação dos limites, numa certa lógica dos extremos[13], na esperança de, assim, salvar o pensamento e a si mesmo daquilo que é relativo e inessencial.

    ***

    Eb ura fakó. Ugocsa non coronat.

    Endre Ady[14]

    Lá fora, o mundo está repleto de exércitos, porém não morreremos disso.

    Béla Balázs[15]

    Lukács e a Hungria. O filósofo faz parte de uma tendência assumida por grupos de intelectuais e artistas que queriam interferir e renovar a cultura e a política do país. Béla Balázs, Endre Ady, Oszkár Jászi, Anna Lesznai, Mihály Babits, Jozséf Kiss, Frigyes Karinthy, Lajos Fülep, entre tantos outros, participaram da efervescência cultural que ocorreu na Hungria, a qual autoriza nomear esses primeiros anos derenascimento literário[16]. A crítica internacional e nacional tem repetido de modo quase consensual a afirmação de que Lukács pertenceu à geração dos intelectuais húngaros que se articulavam em torno da tendência crítica nomeada de anticapitalismo romântico, cujo vetor principal seria a combinação de certo aristocratismo[17] com nostalgia e escapismo. Michael Löwy, só para citar um exemplo, sustenta, em seus inúmeros estudos sobre o tema, que a cultura romântica anticapitalista encerrava uma visão de mundo ambivalente, daí ser a matriz comum tanto de ideologias reacionárias como de revolucionárias[18]. Ferenc Fehér, discípulo de Lukács, não vê nesse movimento nenhum aristocratismo nem qualquer nostalgia de uma Kultur aristocrática pré-capitalista. Para ele, no anticapitalismo húngaro, o discurso aristocrático está fora de questão; ao contrário, ele é a recusa do nacionalismo húngaro e exprime uma profunda hostilidade tanto à aristocracia húngara, brutal e inculta, como à sua visão de mundo[19].

    Para o jovem Lukács, educado no ambiente burguês e aristocrático de Lipótváros, bairro judeu rico de Budapeste, a literatura moderna estrangeira, de Ibsen a Baudelaire, representava uma libertação da escravidão espiritual da Hungria oficial[20]. É com base nessa Bildung que Lukács começa sua atividade crítica em revistas culturais. Mas é no teatro que, de fato, desenvolve sua atividade de intervenção e crítica pessoal. A Thália Társaság [Companhia Thália], fundada em 1904 por Lukács, Benedek, Bánóczi e Hevesi, pretendia ser um laboratório experimental como o Théâtre-Libre d’Antoine, de Paris, ou o Freie Bühne, de Berlim. Nos debates internos à Thália, vemos como esses anos foram, para Lukács, de estudos rigorosos sobre estética teatral, o que lhe possibilitou ver os limites da dramaturgia naturalista húngara, como as peças de Sandor Brody, afastando-se também das exigências artísticas da comunidade judaica húngara[21].

    Fehér defende, assim, que havia na Hungria, nos anos 1910, a confluência de um campo de força que aglutinava teóricos, artistas e escritores contra o conservadorismo local. A Nyugat [Ocidente][22] era o exemplo mais nítido dessa orientação: fundada em 1908 por Hugó Ignotus, Miksa Fenyő e Ernő Osvát, a revista mensal, depois bimensal, canalizou a produção modernista húngara, aliada a uma forte atividade de tradução de escritores estrangeiros. Os principais poemas de Endre Ady e de Béla Balázs foram ali publicados, assim como os quatro ensaios de Lukács que depois integrariam o livro A alma e as formas. Juntos, até pelo menos 1911, apesar das diferenças, os editores da revista articularam uma reação artística por meio da qual se defendia uma nova arte, considerada como vanguarda, mas que se opunha aos rumos trilhados tanto pelo impressionismo como pelo simbolismo, os quais desembocaram, após a crítica à tradição, numa indiferença estética, na aceitação de qualquer procedimento, no irrelevante, na trivialidade. Não foi por acaso que Lukács, como crítico, pronunciou em 1909 o discurso de abertura da exposição de arte construtiva do grupo A Nyolcak, dissidência considerada a vanguarda húngara na pintura. Esses pintores se insurgiram contra o impressionismo e o pós-impressionismo que vigoravam na Nagybánya, principal escola de pintura da Hungria, à qual Irma Seidler também pertencia, defendendo princípios construtivos para a arte[23]. Nesse discurso, intitulado Os caminhos se dividiram (Az utak elválnak), Lukács já deixa sua marca ao lançar mão do termo encruzilhada – que será utilizado a vida inteira pelo húngaro – para circunscrever o impasse contemporâneo da arte, o qual apontava para um dilema ético. Falando do ponto de vista da renovação e não da reação – aliás, como todo o pós-impressionismo, desde os anos 1880[24] –, Lukács reconhece dois caminhos que se abrem para a arte moderna. Um deles é o do impressionismo, e o outro, o dos pintores húngaros, liderados por Károly Kernstok e seus amigos, que propõem uma nova arte ainda difusa, não consciente, mas que, superando a volatilidade do instante, das sensações fugidias e das superfícies meramente decorativas, apresenta uma forma criadora de totalidade, que pode ser comunicada e que seja durável. Essa forma, que constitui também a velha arte da ordem, dos valores, é uma arte do construído, mas é nova, vem chegando de toda parte e em muitos lugares ela já encontrou um meio de se expressar: em versos e construções, pinturas e tragédias, na escultura e na filosofia. A despeito do caráter embrionário da tendência, Lukács insiste que o que a aglutina não são preferências ou possibilidades artísticas, mas escolhas éticas: em suas palavras, pois existem alvos que vale a pena buscar e na direção dos quais é preciso seguir. E nessa direção os caminhos não são mais indiferentes[25].

    Nesses primeiros anos, Lukács dedica-se à elaboração de uma crítica rigorosa, não se afastando do corpo a corpo com a obra de arte, seja no teatro, seja na poesia. Inserindo-se na produção cultural húngara, principalmente por meio de contribuições nas revistas culturais, está atento às novas tendências, a ponto de assinalar, em 1907, o surgimento da nova lírica húngara com Endre Ady, Dezsö Kosztolányi e Mihály Babits. Para Lukács, com Ady, o único poeta apto a criar uma nova mitologia, abalando a envelhecida e selvagem lírica do passado[26], a lírica húngara experimenta uma ruptura radical. A poesia de Ady lhe revelara, ademais, a presença do irreconciliável na arte, haja vista que ela era radicalmente rebelde, porque jamais se reconciliava com a realidade húngara. Embora usando um vocabulário romântico, a crítica de Lukács não seguia modelos – liberdade, aliás, que fazia das obras analisadas pontos de partida para sua estética teórica. Crítica e teoria nasciam, assim, juntas: é em torno de Ady, por exemplo, que Lukács pensa pela primeira vez a oposição entre os conceitos de trágico e de místico. Curiosamente, Ady é exemplo do místico, aquele para quem o problema da distância não está posto: em seus poemas, diz Lukács, "não há nenhuma diferença entre o próximo e o distante, o concreto e o abstrato, eu e o mundo, Erlebnis e Símbolo[27]. O vocabulário do poeta é moderno não só por romper com a tradição nacional e renovar a lírica húngara, mas por aspirar a uma forma adequada ou pura, a qual, sem modelos, não está mais à disposição, pelo menos desde a Idade Média, o que impele o artista a criar uma forma por seus próprios meios. Nessa direção, anos depois, em 1910, Lukács igualmente elege Béla Balázs como exemplo para seu pensamento estético. Dessa feita, o poeta é o grande trágico, que encontrou a pura forma[28], revivendo a forma dramática entre os húngaros, mesmo sem ter em seus pressupostos nada especificamente húngaro"[29]; revitalizando o drama, como teriam feito Paul Ernst, na Alemanha, e Paul Claudel, na França. Reencontraremos essa oposição entre vivência trágica e vivência mística especialmente no último ensaio de A alma e as formas, intitulado Metafísica da tragédia: Paul Ernst, de 1910. Em todo caso, Lukács contribuiu para a caracterização e a delimitação dessa geração moderna húngara, seja na poesia, seja no teatro; mesmo que, depois de 1910, ele tenha dedicado a ela pouca atenção, segundo Bognár, substituindo o exame da particularidade da obra pela axiologia ou filosofia histórica da obra[30].

    De todo modo, é por meio dos debates estético-críticos que Lukács se posiciona cada vez mais no movimento mais amplo húngaro, no qual alguns jovens rejeitam tanto o passado quanto o capitalismo emergente como perspectiva para o futuro, embora não apresentem um caminho claro ou uma solução aos dilemas, que ficam ainda em suspenso. Assim, diz Fehér, esses críticos começam a recusar tanto a visão conservadora aristocrática, predominantemente rural, quanto, especialmente após o começo da Primeira Guerra Mundial, a tradição liberal urbana, cujos veículos de divulgação eram a sociologia e seus dois órgãos oficiais, as revistas liberais Nyugat e Huszadik Század. Mesmo sem uma perspectiva clara de futuro, esses jovens apoiam tendências como a do poeta Endre Ady, um lírico moderno, abertamente socialista, partidário da revolução, chamado de jacobino húngaro[31].

    É desse lugar que este livro parte, isto é, da inserção singular de Lukács na crítica de arte da vanguarda húngara e do caráter ético e

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