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Homo Poeticus
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E-book328 páginas4 horas

Homo Poeticus

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Sobre este e-book

"Entre todos os escritores de sua geração, franceses e estrangeiros, que nos anos oitenta viviam em Paris, era talvez o maior. Certamente o mais invisível", Milan Kundera escreve sobre Danilo Kiš, em seguida especificando: "A deusa chamada Atualidade não tinha motivos para apontar os refletores para ele… que nunca sacrificou seus romances em nome da política. Desse modo, ele pôde compreender o que havia de mais comovente: os destinos esquecidos desde o nascimento". Palavras que destacam a refratariedade de Kiš a qualquer pertencimento, mesmo em momentos e lugares em que certos rótulos lisonjeiros teriam, de modo automático, garantido grandes simpatias. ("Eu não sou um dissedente", ele escreveu). Porquanto a única pátria de Kiš seja a literatura, sua militância exclusiva é a de um "escritor bastardo do mundo já desaparecido da Europa central". Enquanto coleção de ensaios e entrevistas nas quais Kiš, concentrando sua genialidade a uma gama ampla de temas, insere-se ora na grande literatura europeia e americana - entregando-nos páginas magistrais sobre Borges, Flaubert, Nabokov, Sade -, ora na história do século XX, Homo poeticus oferece um testemunho eloquente dessa liberdade irredutível. Ele reivindica, de modo constante, a riqueza polimórfica e a unidade substancial da tradição europeia, da qual o espírito balcânico é uma parte irreprimível, e contra a redução do homem a um zôon politikón, as razões do homo poeticus, testemunha inexorável de destinos condenados ao esquecimento, de tragédias silenciosas, de tumbas sem nome e, por fim, do delírio de um século.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de jul. de 2021
ISBN9788592649852
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    Homo Poeticus - Danilo Kiš

    Homo poeticus, apesar de tudo26 DAS ANDEREHomo poeticus, apesar de tudo

    DAS ANDERE 26

    Homo Poeticus

    © Danilo Kis Estate

    © Editora Âyiné, 2021

    Todos os direitos reservados

    Tradução

    Aleksandar Jovanović

    Edição

    Danilo Hora

    Preparação

    Érika Nogueira Vieira

    Revisão

    Andrea Stahel

    Ilustração

    Julia Geiser

    Projeto gráfico

    Luísa Rabello

    Conversão para ebook

    Cumbuca Studio

    ISBN 978-85-92649-85-2

    Editora Âyiné

    Belo Horizonte, Veneza

    Direção editorial

    Pedro Fonseca

    Assistência editorial

    Érika Nogueira Vieira, Luísa Rabello

    Produção editorial

    André Bezamat, Rita Davis

    Conselho editorial

    Simone Cristoforetti, Zuane Fabbris, Lucas Mendes

    Praça Carlos Chagas, 49 — 2º andar

    30170-140 Belo Horizonte — MG

    +55 31 3291-4164

    www.ayine.com.br

    info@ayine.com.br

    Homo poeticus, apesar de tudo

    SUMÁRIO

    Parte I Ensaios

    Homo poeticus, apesar de tudo

    O Mediterrâneo e o Velo de ouro

    A testemunha de acusação Karlo Štajner

    Conselhos a um jovem escritor

    Censura/autocensura

    Variações sobre temas da Europa Central

    Duas variações sobre Flaubert

    Nabokov ou a nostalgia

    Sobre o Marquês de Sade

    Parte II Entrevistas

    A borra amarga da experiência

    Clepsidra é uma brecha perfeita

    Tempo de dúvida

    Afinal, os livros servem para alguma coisa

    A banalidade é indestrutível como uma garrafa de plástico

    Um exemplo de leitor bom e devoto

    Busco um lugar ao sol para a dúvida

    Nomear significa criar

    Entre política e poética

    Um exílio joyciano

    Vida, literatura

    A consciência de uma Europa oculta

    Um eterno sentimento de culpa

    Escrevo para unir mundos distantes

    Aquele passado que não se apaga

    Não acredito na fantasia do escritor

    A ironia contra o horror da existência

    Parte I

    ENSAIOS

    HOMO POETICUS, APESAR DE TUDO

    Nós somos o exotismo, somos o escândalo político, somos, na melhor das hipóteses, belas lembranças do Marne e a boa consciência dos velhos poilus d’Orient¹ e dos membros do movimento de resistência. Além disso, somos suaves entardeceres na costa do Adriático, doce lembrança turística de bonitos e tranquilos anoiteceres no Adriático… recordações regadas a šljivovica.² E isso é tudo. Mal somos parte da cultura europeia. Da política, isso sim! Do turismo também! Slivovitz (na grafia alemã) também, e isso obrigatoriamente! Mas, pelos diabos, quem haverá de procurar literatura naquela terra?! E quem estaria em condições de compreender suas porcarias nacionalísticas, essas línguas e dialetos todos, tão próximos e tão distantes (dizem), todas essas religiões e regiões?

    No que diz respeito à literatura, nós, europeus, temos bastante, e não da pior espécie; e eles como se chamam mesmo? srbo-crcr… , eles que escrevam sobre os chamados temas delicados, que zombem de seus políticos e critiquem seus regimes, que descrevam um escândalo político num cenário belo e exótico… e eis aí uma boa literatura. E nós, os europeus, nós, os civilizados, descreveremos de consciência limpa e coração aberto a beleza do pôr do sol, o exotismo da nossa infância e da nossa juventude (como Saint-John Perse), escreveremos poemas de amor e de toda espécie… E eles, meu caro, que cuidem de seus problemas político-exótico-comunistas. Para nós, a verdadeira literatura; para nós, as empregadas, serventes para tudo, doces criadas da nossa infância e da nossa juventude. Porque, se eles começassem a escrever sobre as mesmas coisas que nós (a poesia, a história e o mito, o destino do homem, brinquedo estilhaçado de vaidades sonoras bibelots abolis d’inanité sonore³ — e outras consonâncias), aquilo, em verdade, não nos diria respeito; já se o fizessem à nossa maneira, seria também literatura, seria Andrić, seria Krleža (ah! que nome difícil de pronunciar!), seria Miloš Crnjanski (de novo esse cr-crr!), seria Dragoslav Mihailović,⁴ e outros, muitos outros, sem os quais, todos juntos, pode-se passar muito bem…

    Portanto, para nós, iugoslavos, para nós, homo politicus, para nós, os outros, para todo o resto, todas as outras dimensões desse maravilhoso cristal de cem faces, desse cristal chamado homo poeticus, animal poético que sofre igualmente de amor e devido à sua mortalidade, por metafísica, bem como por política… Será que merecemos esse destino? Sem dúvida. Somos nós os culpados e devemos pagar calados por nossa culpa. Somos nós mesmos os culpados por não termos resistido à tentação de exportar para o mundo os nossos pequenos (ou grandes, tanto se me dá) problemas de nacionalismo e chauvinismo, de anunciar aos quatro ventos que nós, antes de tudo, nem somos iugoslavos, mas, entendam, antes de mais nada, somos sérvios ou croatas, eslovenos ou macedônios, ou sabe lá Deus o quê; e cuidado, isto é muito, muito importante, senhoras e senhores, isto não se pode confundir de modo algum, alguns de nós são católicos, e outros, ortodoxos e muçulmanos, e há ainda um ou outro judeu (não esquecer de modo algum!)... e eis-nos de novo, eis-nos pobres iugoeslovacos, imersos em nossas desavenças familiares, e queríamos de fato falar sobre literatura, e desejávamos citar esse monstre sacré croata que é Miroslav Krleža (cr-crr!), e esse outro monstre sacré que é Ivo Andrić, sérvio ou croata, como preferirem… e eis como se estilhaçou, devido ao nosso próprio desleixo, aquele brinquedo (já) estilhaçado (bibelot aboli) chamado literatura, e eis por que não merecemos ser levados a sério…

    E, além disso — e isto já não é erro nosso, é culpa de Deus —, como, por diabos, situar essa literatura e essa língua, essas línguas? Que essa é uma literatura eslava, concordaremos facilmente, que essa é uma das línguas eslavas, está certo, e se trata, portanto, de uma terra eslava, certo, e de um regime socialista, não exatamente idêntico aos de outros lugares… e isso então lembra algo como os russos! Está bem, traduzamos, pois, os russos! Ao menos eles não criam problemas, e são de toda espécie, mas ao menos se pode enfiá-los no mesmo saco, na mesma rubrica de soviéticos, para eles temos até uma coleção dedicada, onde todos podem caber (azerbaidjanos e russos, bachquires e calmucos). E então? E então nada. Não devemos zangar-nos; precisamos ter consciência do fato de que há, e sempre houve, grandes tradições, grandes literaturas, e que existem, e sempre existiram, línguas pequenas e povos pequenos, assim como também há cédulas de dinheiro com valores pequenos e grandes (dixit Andrić). Sejamos, portanto, modestos, não berremos e não importunemos o mundo inteiro com rixas de família.

    E, sobretudo, não nos apoiemos no mito esgarçado de que nós, iugoeslovacos e os demais húngaros, devemos renunciar à literatura, de que devemos entreter o vasto mundo apenas com os nossos temas político-exótico-comunizantes, de que precisamos a todo custo ser homo politicus, sempre e em todos os lugares, e de que a poesia e a forma, o jogo e o ludismo, as obsessões metafísicas (Quem sou? De onde vim? Aonde vou?), os delírios do amor, aparentemente não são para nós, e os entardeceres tampouco nos dizem respeito, pois pertencem de modo exclusivo aos turistas maravilhados com a literatura e a poesia, que, portanto, têm o direito de contemplar o pôr do sol com deslumbramento e consciência limpa.

    Porque a poesia, a literatura (e aqui coloco um sinal de igualdade entre essas duas palavras, assim como fazia Pasternak), são, para vós e para nós igualmente, os nossos sonhos bárbaros e os vossos sonhos, são os nossos amores e os vossos amores, as nossas lembranças e as vossas, o nosso cotidiano e o vosso, a nossa infância infeliz e a vossa (ela também infeliz, talvez), a nossa obsessão com a morte e a vossa (idêntica, tenho esperança).

    A poesia (= literatura) é também, sei bem disso, e torna-se cada vez mais, a descrição das injustiças sociais e a condenação dessas injustiças por meio do páthos (como já o era no tempo de Dickens), e a descrição e a condenação dos campos de concentração, das clínicas psiquiátricas e de todas as espécies de opressão, de todas as opressões que desejam reduzir o homem a uma única dimensão, a zôon politikón, a animal político, e despojá-lo assim de todas as suas riquezas, do seu pensamento metafísico e da sua sensibilidade poética; que desejam aniquilar nele toda a substância não animal, o seu neocórtex, para limitá-lo à dimensão de animal militante, a homem desnudo engajado, a animal delirante, engajado e cego. Porque esse princípio — que, devemos reconhecer, nós próprios também defendemos —, segundo o qual a literatura deve ser engajada ou então nem é mais literatura, demonstra em que medida a política penetrou todos os poros da vida e do ser, como a tudo encharcou, feito um atoleiro, e a que ponto o homem tornou-se unidimensional e pobre de espírito, a que ponto a poesia foi derrotada e em que medida tornou-se privilégio dos ricos e «decadentes» eles podem se permitir o luxo de versejar, enquanto nós, os outros… Eis o perigo que nos ameaça a todos. Mas devemos estar conscientes de que a literatura, de que a poesia são uma defesa contra a barbárie, e, ainda que a poesia não «enobreça os sentimentos», ela ainda assim serve para algo: confere algum sentido à fatuidade da existência.

    E, ao menos com base nesse fato antropológico, somos parte da mesma família dos povos europeus, e, segundo a nossa tradição, ao mesmo tempo judaico-cristã, bizantina e otomana, temos tanto direito quanto eles, se não mais, de pertencer a essa comunidade cultural.

    E depois disso, mas somente depois disso, vêm os problemas técnicos: a tradução, os comentários, as referências, os paralelismos e coisas similares… Porque todo o resto é... literatura.


    1 Literalmente, «Os peludos do Oriente». Poilu foi o nome dado aos soldados de infantaria franceses na Primeira Guerra Mundial e origina-se de uma expressão antiga — brave à trois poils —, utilizada por Molière. Foram chamados de «poilus d’Orient» os soldados deslocados para os fronts dos Bálcãs e do Levante. [N. T.]

    2 Pronuncia-se «chlívovitza». Aguardente feita à base de suco de ameixa fermentado. [N. T.]

    3 Alusão ao verso «aboli bibelot d'inanité sonore […]», do «Sonnet en X» do poeta francês Stéphane Mallarmé (1842-1898). [N. T.]

    4 Ivo Andrić [pronuncia-se «Ándritch»] (1892-1975), escritor sérvio, Prêmio Nobel de Literatura de 1961; Miroslav Krleža [pronuncia-se «Kerleja»] (1893-1981), escritor croata; Miloš Crnjanski [pronuncia-se «Míloch Tzerniánski»] (1892-1977), poeta e romancista sérvio; Dragoslav Mihailović [pronuncia-se «Mikháílovitch»], romancista, contista e ensaísta sérvio nascido em 1930. [N. T.]

    O MEDITERRÂNEO E O VELO DE OURO

    No amplo espectro de problemas, são dois os que aparecem como palavras-chave da nossa conversa: Mediterrâneo e atlantismo. E, sem dúvida, o que nos faltará é a questão da definição, da determinação. Ousaria acrescentar que uma questão idêntica relativa à determinação falta-nos para o conceito de hegemonia intelectual. Isto é, em respeito a esse último conceito: Onde as intersecções intelectuais podem ser consideradas necessárias e úteis? Onde começa a «hegemonia»? No título da nossa conversa, está destacada a suposição clara de que a identidade dos nossos países — mediterrâneos — está sob o signo da perigosa ameaça de atlantismo. Os títulos — «O mar da paz e a luta contra a poluição» e «O Mediterrâneo, matriz da cultura e da civilização» , no entanto, situam-se no campo da história da civilização, da antropologia, da ecologia etc. De qualquer modo, somente é possível abordar o nosso tema a partir de um conjunto complexo: econômico, político, social e cultural. Não deveríamos evitar essa gama de problemas, porque esses conceitos estão ligados por vínculos indissolúveis. Penso não ter dito com isso nada de novo, mas acredito, ao mesmo tempo, que é preciso indicá-lo para que não nos entusiasmemos, como «pessoas da cultura», com a ideia de que podemos observar as coisas exclusivamente a partir de um aspecto sociocultural. Receio, portanto, que troquemos de tese a propósito do nosso tema e que, sob o nome de atlantismo e hegemonia atlântica, comecemos a criticar e condenar a civilização industrial. Porque o que mais é, no fim das contas, o atlantismo? É, antes de tudo, a hegemonia da civilização industrial, o que não diz respeito só ao atlantismo, mas também à Europa: é a ressaca de um longo processo histórico (já o general De Gaulle, aqui na França, lutava contra os aspectos econômicos do atlantismo, contra os «privilégios» do dólar e dos investimentos na França. Esse aspecto da hegemonia atlântica continua, sem dúvida, em vigor ainda hoje).

    Não devemos aqui, entretanto — apesar de nossas posições políticas e convicções na qualidade de «pessoas da cultura», e exatamente como pessoas da cultura —, esquecer o fato (e não direi «lamentável», porque fatos não são categorias psicológicas) de que o mundo se encontra entre duas superpotências, entre dois blocos, e este nosso infeliz Mediterrâneo, de certo modo, está na encruzilhada desses dois blocos, onde teoricamente essas duas ondas podem se encontrar, e aqui devemos apenas constatar os prenúncios desse confronto possível. Os senhores sabem, e esse é um lugar-comum da história, que o sonho do Mediterrâneo foi de todos os imperadores russos, e que esse sonho do Mediterrâneo como um mar russo não deixou de ser sonhado até os dias de hoje. Num evento semelhante a este na Iugoslávia, em 1973, cujo tema era Les littératures européennes contemporaines et la tradition méditerranéenne, o delegado polonês intitulou a sua apresentação La Pologne est un méditerranéen,¹ e a delegada soviética, ao falar da tradição mediterrânea, declarou que «não se deve esquecer que o Titã Prometeu — deobeligerante — foi acorrentado às rochas do Cáucaso». Essa última afirmação nos leva a algumas constatações muito significativas: primeiro, que a delegada soviética não consegue observar a tradição mediterrânea de fora do seu ponto de vista pessoal, e que ela considera o Mediterrâneo parte de sua própria história, pois «o deobeligerante foi acorrentado às rochas do Cáucaso» e, com isso, Jasão e os argonautas «atravessaram a nado atrás do Velo de ouro exatamente até a Cólquida» (Cólquida é a denominação grega — Κολχίς [Kolchis] — para a Geórgia Ocidental). Nessa afirmação encontra-se toda uma metáfora: primeiro, que o Velo de ouro move o Mediterrâneo — e isso hoje é um fato histórico — na direção da «Geórgia Ocidental», o que tomarei a liberdade de traduzir como: a civilização tecnológica e a tecnologia ocidental movem-se em direção à Rússia. Em segundo lugar, a delegada soviética insiste na expressão deobeligerante — «o deobeligerante foi acorrentado às rochas do Cáucaso».

    A cultura europeia, mediterrânea, as civilizações mediterrâneas, são religiosas, teístas, disso sabemos, e daqui, deste ponto de vista, o antigo mito grego adquire mais significados, dentre os quais o fundamental é o seguinte: à cultura religiosa, mítica e teísta do Mediterrâneo é contraposta uma espécie de guerreiro que combate os deuses, ateu, caracterizado como Titã. Permitam-me citar também o final da breve manifestação da delegada soviética (cujo título foi «A disputa sobre a tradição»): «O Mediterrâneo, apesar da grandeza de sua cultura, não é o mundo inteiro. Não desejo ingressar nas profundezas dos séculos. Mas agora, hoje, o éclatement² cultural nos países da América Latina, o recente e não menos poderoso éclatement nos países da África Negra, assim como a contribuição da Índia e do Vietnã para a cultura mundial, tudo isso nos convoca rumo à infindável expansão do conceito de tradição cultural, dos temas gerais e da dignidade de todos os povos do mundo, daqueles que lutam por sua liberdade e independência, por uma vida humana digna, e também daqueles que já conquistaram a vitória fundamental, que estão criando novas formas, mais perfeitas, de vida social». Aqui, como vimos, o conceito de tradição foi estendido ao mundo inteiro, e a tradição cultural foi reduzida a uma «luta pela liberdade e pela independência». Poderíamos concordar com essa assertiva, se não houvesse aqui mais algumas coisas que precisamos esclarecer: «Fico satisfeita», diz a delegada soviética, «de que nas palavras dos representantes da França, da Bulgária e da Iugoslávia tenha ressurgido a lembrança dos bogomili ³ e albigenses, e que, com eles, no conceito de tradição mediterrânea tenham sido incluídos os processos de libertação e revolução dos povos da Europa». Na análise geral dessa declaração, e creio que os senhores concordarão comigo, a tradição mediterrânea nada mais é que o combate aos deuses, uma revolução, e o próprio conceito de tradição mediterrânea se torna apenas um dos conceitos da cultura mundial, assim como o compreende a delegada soviética.

    O texto que citei contesta, portanto, toda e qualquer identidade própria à cultura e à civilização mediterrâneas, e, em vez de denunciar a poluição com garrafas de Coca-Cola, promove uma poluição ideológica. Uma vez que esta minha exposição curta é apenas um avertissement,⁴ não posso desenvolver aqui uma tese mais ampla a respeito de quanto este nosso Mediterrâneo lírico está realmente poluído, tanto por dejetos industriais, que nele boiam, quanto por dejetos desta espécie, ideológicos, que aparecem no presente texto como sinal de hegemonia ideológica evidente, na qual não há lugar para debate. Desejei apenas chamar a atenção para o perigo da visão unilateral das coisas, deux poids deux mesures,⁵ para esse cômodo jogo intelectual em que a terrível garrafa de Coca-Cola que boia nas águas é proclamada uma mina, ao passo que não se enxerga a mina que flutua sob a superfície, apesar de a água ser azul e límpida. E mais: uma das culturas mediterrâneas, uma das mais antigas, a hebraica, assim como a literatura e a escrita hebraicas (cujos estilhaços deram origem à literatura de Israel), bem como a literatura iídiche, não foi morta pelo atlantismo, pela hegemonia atlântica, mas pela União Soviética, entre as décadas de 1930 e 1940 (mais exatamente entre 1937 e 1952), quando todos que escreviam em hebraico e iídiche foram liquidados, e, com eles, sua rica tradição literária. Entretanto, essa tradição sobreviveria na América e produziria, em primeiro lugar, o grande escritor Isaac Bashevis Singer,⁶ em cujas obras renasceria a Polônia judaica, a «Polônia país mediterrâneo», conforme disse o delegado polonês.

    As minhas palavras, portanto, nada mais são, repito, que um avertissement, uma advertência, para que observemos os fatos da cultura sem parcialidade, para que possamos, como «pessoas da cultura», fazer algo pelo nosso bom e velho Mediterrâneo, «berço da civilização europeia», para que ele não se torne em breve apenas reliquiae reliquiarum.⁷ E, evidentemente, concordarei sem problemas com vocês e com a sua, com a nossa preocupação conjunta quanto a conservarmos a integridade da civilização mediterrânea e das culturas mediterrâneas (ainda que não seja fácil definir esses conceitos) contra todos os tipos de hegemonia, quer ela se chame atlântica ou qualquer outra coisa. Permitam-me, por fim, que encerre esta minha apresentação com uma citação mais longa: «O Ocidente, que já não é capaz de observar a cultura a não ser como um pingente da política, jamais compreendeu o que acontecia na Tchecoslováquia antes do ano de 1968. Como também nunca entendeu nem o ‹massacre da cultura tcheca›, que foi a consequência mais inacreditável da invasão soviética de 1968… Porque ali não foi extinta a cultura da oposição, mas simplesmente a cultura. Tudo o que era significativo e autêntico precisava ser aniquilado… Se pudermos caracterizar a década de 1970 como a ocidentalização gradual do socialismo introduzido via Oriente, a invasão russa de 1968 pode ser considerada a colonização definitiva de um país ocidental. E tudo aquilo que o Ocidente realizou, a começar pelo Renascimento (sim, aquele Renascimento tão desprezado por Soljenítsin), a tolerância, a dúvida metódica, a pluralidade de ideias, o caráter individual da arte (e do homem, por óbvio), nada disso foi apenas medida temporária, mas parte de uma estratégia longa, paciente e consequente que devia transferir um país para a esfera de outra civilização». Eis como o exilado Milan Kundera via esse problema.

    (1980)


    1 Em francês, no original: As literaturas europeias contemporâneas e a tradição mediterrânea; A Polônia é um país mediterrâneo. [N. T.]

    2 Em francês, no original: eclosão, no presente contexto. [N. T.]

    3 Os bogomili foram grupos dualistas, entre os séculos X e XV d.C., surgidos na Bulgária, Sérvia, Bósnia e Dalmácia, que importavam teorias neomaniqueístas da Ásia Menor, rejeitavam a eucaristia, o batismo e toda a estrutura da Igreja Ortodoxa; no século XIII d.C., formaram uma rede com os albigenses e outros povos, do mar Negro ao Atlântico. [N. T.]

    4 Em francês, no original: advertência. [N. T.]

    5 Em francês, no original: dois pesos, duas medidas. [N. T.]

    6 Isaac Bashevis Singer (1902-1991), escritor judeu nascido na Polônia e que escreveu toda a sua obra em iídiche. Emigrou para os Estados Unidos em 1935 e recebeu o Prêmio Nobel de Literatura em 1978. [N. T.]

    7 Em latim, no original: a relíquia das relíquias. [N. T.]

    A TESTEMUNHA DE ACUSAÇÃO KARLO ŠTAJNER

    Almas mortas

    Em junho de 1956, num trem especial que corria de Moscou em direção a Kiev, estavam sentados num vagão-salão os mais altos representantes dos governos soviético e iugoslavo: Khruschóv, Tito e seus chefes de gabinete. Não havia necessidade de tradutor. Uma vez que o programa do protocolo era muito apertado (era preciso atenuar ainda muitos desentendimentos ideológicos acumulados ao longo de oito anos de duração do «cisma» iugoslavo), não havia tempo para outras conversas. Num momento, quando o anfitrião (Khruschóv) estava um pouco mais bem-disposto, Tito entregou-lhe sobre a mesa, assim como se entrega o cardápio ao convidado, uma relação de almas mortas. A cena é digna de Gógol.¹ «Eis aqui a relação de 113 antigos funcionários nossos que estavam na União Soviética. O que houve com eles?» Por um instante Khruschóv examinou a lista de almas mortas, entregou-a ao ordenança e em seguida exclamou: «Direi a você em dois dias». Exatamente em dois dias, depois da parte oficial da conversa, entre bebidas e cigarros, sem intenção alguma, tamborilando com os dedos redondos e avermelhados sobre as folhas, Khruschóv declarou assim, de passagem: «Tôtchno sto niétu».²

    E então, por determinação superior, o monstruoso maquinário da NKVD³ se põe em movimento para encontrar aqueles treze comunistas iugoslavos em algum lugar das enormes extensões da Sibéria. Entre aqueles cadáveres vivos, em alguma parte da distante Krasnoiársk, descobrem Karlo Štajner que, depois de cerca de vinte anos de prisão e campos de trabalho, por decisão do MGB⁴ foi condenado a exílio perpétuo (um exilado assim era chamado de «liberto»).

    Štajner: «A única coisa que sabia era que Tito estava vivo… De algum modo, isso chegou até nós. No exílio, em Maklakôvo, fui ao cinema uma vez. Kruschev já estivera em Belgrado e já havia admitido o que admitira. Na crônica diária, mostraram alguns acontecimentos na Iugoslávia. Tive a impressão de ter visto Djuro Cvijić⁵ numa tribuna, em determinado lugar. Pensava: que função ele poderia ter agora? No mínimo, é membro do Politburo. Conhecíamo-nos bem, e dirigi-me a ele em cartas à embaixada da Iugoslávia em Moscou». (De uma entrevista para a Ideje, 1981.) Nesse mundo gogoliano de almas mortas, ironia e tragédia se cruzam: aquele amigo de juventude, funcionário de outrora do partido, já estava morto havia uns dezoito anos quando Štajner lhe escreveu! Morto em algum campo de trabalho da Sibéria ou nas prisões de Butirka, de morte cruel.

    Sem cicatrizes

    Em 1976, no café do hotel Intercontinental de Zagreb, aguardo o encontro com o famoso exilado, autor do conhecido livro Sete mil dias na Sibéria, que me serviu de precioso guia enquanto escrevia Um túmulo para Boris Davidóvitch e a quem dediquei um dos contos. De repente, aproxima-se de nossa mesa um senhor vigoroso, bem aparentado, de estatura média, cabelos cortados rente (levava o chapéu na mão). Não, este não é ele! Não pode ser ele. «Štajner!» Apesar do fato de terem se passado vinte anos desde seu retorno da Sibéria, tempo suficiente para curar as feridas, onde estão (pergunto-me) as cicatrizes? Assim como, pela experiência de Soljenítsin, aos assassinos inscrevem-se na face os vestígios do assassinato, rastro em forma de traço vertical no canto dos lábios, deve existir semelhante vestígio, cicatriz similar, visível, também nas faces das vítimas, como a cicatriz na palma da mão de Jesus.

    «O senhor escreveu, em algum lugar em Um túmulo para Boris Davidóvitch», diz aquele homem manso, sem raiva, sem aflição, «que o seu personagem passeava naquele tempo em volta do Kremlin! O senhor deveria corrigir isso numa futura edição…

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