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O rebelde do traço: A vida de Henfil
O rebelde do traço: A vida de Henfil
O rebelde do traço: A vida de Henfil
E-book448 páginas17 horas

O rebelde do traço: A vida de Henfil

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Sobre este e-book

Biografia do genial cartunista, humorista e ativista Henfil. A obra conta a história do artista, que foi crítico ferrenho da ditadura militar e participou do processo de redemocratização do país. Escrito por um dos mais importantes biógrafos brasileiros, este livro mostra como Henfil cresceu e viveu para se tornar um dos maiores artistas de sua geração e como nasceram os personagens criados por ele. Segundo Zuenir Ventura, "O rebelde do traço é também um livro de época — dos melhores que o gênero já produziu sobre os anos 1970 e 1980, quando o país fez a travessia do sufoco para a abertura, vivendo o que um dos ditadores da vez chamou de 'transição lenta, gradual e segura'".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento18 de jan. de 2017
ISBN9788503013024
O rebelde do traço: A vida de Henfil

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    O rebelde do traço - Dênis de Moraes

    3ª edição, revista e ilustrada

    Rio de Janeiro, 2016

    CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO

    SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ

    Moraes, Dênis de, 1954-

    M818r

    O rebelde do traço [recurso eletrônico]: a vida de Henfil / Dênis de Moraes; [prefácio Janio de Freitas]. - 1. ed. - Rio de Janeiro: José Olympio, 2017.

    recurso digital

    Formato: epub

    Requisitos do sistema: adobe digital editions

    Modo de acesso: world wide web

    Inclui índice

    ISBN 978-85-03-01302-4 (recurso eletrônico)

    1. Henfil, 1944-1988. 2 . Cartunistas - Brasil - Biografia - Juventude. 3. Livros eletrônicos. I. Título.

    16-38006

    CDD: 927.415

    CDU: 929:741.5

    Copyright © Dênis de Moraes, 1996, 2016

    Todos os esforços foram feitos para localizar os fotógrafos das imagens. A editora compromete-se a dar os devidos créditos numa próxima edição, caso os autores reconheçam e possam provar sua autoria. Nossa intenção é divulgar o material iconográfico de maneira a ilustrar as ideias aqui publicadas, sem qualquer intuito de violar direitos de terceiros.

    Capa: Ana Bahia

    Fotos de capa: Fernando Seixas/O Cruzeiro/EM/D.A Press

    Este livro foi revisado segundo o novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

    Todos os direitos reservados. Proibida a reprodução, armazenamento ou transmissão de partes deste livro, através de quaisquer meios, sem prévia autorização por escrito.

    EDITORA JOSÉ OLYMPIO LTDA.

    Rua Argentina, 171 – 3º andar – São Cristóvão

    20921-380 – Rio de Janeiro, RJ

    Tel.: (21) 2585-2060

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    ISBN 978-85-03-01302-4

    Produzido no Brasil

    2017

    Sumário

    Apresentação à Nova Edição — Dênis de Moraes

    Prefácio — Janio de Freitas

    O moleque na raiz

    A militância na veia

    No meio do caminho, o traço

    O estilo na agulha

    O voo do urubu

    A patota indomável

    Os mortos-vivos

    A trupe do barulho

    A sombra solidária

    Delírios na corte

    Uma liberdade sick

    De volta ao cheiro da terra

    Tropelias no paraíso

    O escriba de mao

    O amor cai de quatro

    A catarse na ribalta

    O barbudo do abc

    O bunker

    O sultão e seu harém

    O segredo de Luc-luc

    Caretas e odaras

    O fiel e a carteirinha

    O azougue global

    O mago

    O menestrel

    A câmera de Kubanin

    A queda do palanque

    O inimigo no radar

    A guerra dos 56 dias

    O tufão na gaiola

    Epílogo

    Agradecimentos

    Cronologia

    Fontes consultadas

    Índice onomástico

    Em memória de Herbert de Souza,

    Betinho, e Moacy Cirne

    Apresentação à Nova Edição

    Dênis de Moraes

    Esta nova edição, revista, atualizada e ampliada, de O rebelde do traço: a vida de Henfil chega aos leitores vinte anos depois da versão original, publicada pela Editora José Olympio e recebida calorosamente pela crítica. Meu propósito ao lançá-la é contribuir para que as novas gerações conheçam melhor a fascinante trajetória do cartunista Henfil (Ribeirão das Neves, 5/2/1944 — Rio de Janeiro, 4/1/1988), expoente do humor político e um dos mais criativos e combativos artistas brasileiros de seu tempo. Esgotado há vários anos, o livro volta a ficar também ao alcance dos que acompanharam o seu trabalho na imprensa, na televisão, no teatro e no cinema durante as décadas de 1960, 1970 e 1980. Trata-se de oportunidade singular de reavivar a sua inserção naquele rico período histórico e comprovar a atualidade persistente de sua obra. Em pleno século XXI, ela segue sendo uma referência crítica vigorosa diante de realidades socioeconômicas, políticas e culturais que continuam a reproduzir desigualdades e exclusões.

    A palavra que parecia dar sentido e justificar a caminhada de Henrique de Souza Filho, nas múltiplas dimensões em que se desdobrou, compunha-se de seis letras: missão. A consciência do que deveria cumprir, com as expectativas implícitas, as suas e as dos outros, foi explicitada por Henfil em carta a seu irmão Herbert de Souza, o Betinho, de 23 de junho de 1978: Eu realmente me sinto (não sentia não, ainda me sinto!) responsável por todos e por tudo, e tenho que dar resposta a tudo. Você só se esqueceu de dizer a palavra-chave que a gente aprendeu na Ação Católica: MISSÃO!¹ Para dar vazão à índole missionária, ele enfrentou inquietudes, provas e riscos, principalmente os derivados de sua condição de hemofílico e pelos sofrimentos daí decorrentes, o que simultaneamente lhe realçava a urgência de vida.

    O amigo e escritor Frei Betto atribui esse sentimento visceral à formação política recebida por eles, militantes da esquerda católica, na passagem dos anos 1950 aos 1960: Nós fomos educados para salvar o mundo, como se tivéssemos sido escolhidos ou convocados por Deus para essa missão. Movia-nos a ideia de consertar o Brasil. Somos messiânicos; Henfil totalmente. O messianismo impregnou-se em nós, felizmente na vertente positiva do humanismo e da luta por igualdade social. Nunca fomos colonizadores ou impostores.²

    Henfil interveio na batalha das ideias com sentido deliberadamente questionador — das concepções, mentalidades e condutas hegemônicas. Não camuflava o alvo: queria transformar o mundo para livrá-lo de injustiças. Leandro Konder sintetizou com precisão o seu legado no jornalismo de resistência ao regime repressivo instalado com o golpe militar de 1964: Henfil fustigou a violência da repressão política na ditadura. E investiu contra a generalização da hipocrisia e da desonestidade, contra as deformações éticas e o cinismo. Havia em seu humor um constante apelo à revolta, à indignação. A convicção de que ninguém tem o direito de ficar parado, sem tentar fazer algo para mudar o que tem que ser mudado.³

    Como poucos de sua geração, Henfil ocupou as tribunas e brechas possíveis na mídia com a permanente preocupação de contestar as engrenagens de dominação e defender alternativas socializantes. Ele percebeu que, num país onde até hoje prevalece a concentração oligopólica dos meios de comunicação nas mãos de poucos grupos privados e dinastias familiares, devem ser explorados todos os espaços disponíveis para reverberar reivindicações da cidadania e favorecer ao máximo a conscientização popular.

    Quando o termômetro opressivo da ditadura recomendava prudência, Henfil não hesitou em afirmar que o engajamento é necessário, argumentando: Você não pode ficar falando de esquis, jogos de tênis ou problemas pessoais quando tem gente literalmente morrendo de fome. [...] Hoje estou com todas as antenas ligadas para um trabalho de transformação, de busca de uma estrutura social mais humana.⁴ Ele não se intimidou diante das censuras policial e empresarial que vetavam pilhas de cartuns e charges com o intuito de tentar neutralizá-lo ou silenciá-lo. Reagia produzindo outros tantos, para que alguns sobrevivessem ao pesadelo das proibições. Não temeu incompreensões por defender posições que o situavam, em geral, na contramão do senso comum estabelecido ou dos consensos de ocasião. E, sobretudo, jamais abriu mão de dizer verdades ao poder e aos poderosos, denunciando as lógicas antissociais: O verdadeiro humorista é o que faz rir contra o poder e sem a sua licença.

    Ao reexaminar o estilo contundente de seus desenhos e escritos, podemos perceber o quanto o humor político na imprensa perdeu em potência crítica e imaginação insubordinada. Henfil nunca fez graça dócil, nem se contentou com espetadelas superficiais. Obviamente tenho o prazer da criação, mas a massa de trabalho que faço só se justifica pelo fato de estar inserido numa atitude de denúncia, de solidariedade, servindo para reforçar o pensamento das pessoas, informar e buscar uma saída.⁶ Foi capaz de expor as mazelas cotidianas mesclando ironia cortante e deboche provocativo, sem deixar de ser hilariante.

    Numa época como a nossa, em que promover o riso inofensivo se tornou uma mercadoria lucrativa e uma extensão do entretenimento apaziguador, é providencial resgatar o seu espírito humanista, a sua coerência ético-política e o seu compromisso com a emancipação social. As páginas seguintes desejam sintonizar-se com o signo da esperança no devir que mobilizou Henfil a lutar, no extremo de suas forças e com a rebeldia de um traço inconfundível, por um destino de luz para o Brasil.

    Notas

    ¹ A carta, até aqui inédita, consta do arquivo de Herbert de Souza, doado ao Centro de Pesquisa e Documentação de História Contemporânea (CPDOC) da Fundação Getulio Vargas.

    ² Entrevista de Frei Betto ao Autor, setembro de 1995.

    ³ Leandro Konder, Henfil, 50 anos, O Globo, 5 de fevereiro de 1994.

    ⁴ Entrevista de Henfil a Tânia Carvalho, Desenhar, para mim, é como mastigar pedra, Status Humor, n. 41, 1979.

    ⁵ Entrevista de Henfil a Wagner Carelli, para Henfil, este é um momento de humor, O Estado de S.Paulo, 3 de setembro de 1978.

    ⁶ Entrevista de Henfil a Maria Carneiro da Cunha, A linguagem crítica e individual do humor, Folha de S.Paulo , 29 de dezembro de 1980.

    Prefácio

    Janio de Freitas

    Henrique de Souza Filho. Henrique Filho. Henfil. Para os familiares, para os mais próximos, às vezes Henrique, mais vezes Henriquinho. Quantas outras maneiras se adotassem para chamá-lo, todas encontrariam nele uma personalidade para encaixar-se bem.

    Não hesito, no caso, em falar de personalidades, em vez de facetas de uma personalidade ou de talentos, também estes existentes em multiplicidade. As diferentes características pessoais nele se mostraram, muitas delas, tão delimitadas e completas que assumiram o aspecto de personalidades individualizadas, a ponto de não raro parecerem inconciliáveis.

    Não pertencem ao campo das meras diversidades de temperamento as diferenças, por exemplo, entre o criador de humor cáustico, cético quando não pessimista, impiedoso sempre, necessariamente ímpio e, em paralelo, a pessoa disponível para crer em poderes não humanos mas utilizados por humanos. Na radicalidade com que se exerceram e se alternaram, essas diferenças fizeram mesmo a figuração de personalidades. Ou assim me pareceu, mais do que em qualquer outra das incontáveis pessoas especiais, multifacéticas, com quem a sorte me fez conviver.

    Dênis de Moraes consegue costurar Henfil, Henrique, Henriquinho e os demais na desenvoltura própria de uma só pessoa. O que, em vez de impedir, creio que mais levará o leitor a usufruir da convivência com toda a riqueza excepcional contida na brevidade com que Henfil, ou Henrique, ou Henriquinho, traçou o seu percurso na vida.

    Para o grande público, até agora, a personalidade é uma só e só um nome: o cartunista Henfil. Na verdade, foi muito mais do que um cartunista em uma fase de proliferação do gênero. Já ao se iniciar como profissional, Henfil trouxe duas contribuições muito importantes ao cartunismo. Uma, de teor do cartum; a outra, formal.

    Por força da época, a política impregnara o cartunismo de tal maneira que as suas outras possibilidades de expressão humorística e crítica se perdiam no esquecimento. E, mesmo como política, o cartum perdia sua natureza: tornava-se um comício-relâmpago. Aos novos em geral, e também a certos veteranos, já bastava desenhar duas figuras quaisquer e dar o recado político no texto embaixo ou nos balões. O desenho não tinha mais função. Se o diálogo fosse publicado sem o desenho, dava no mesmo.

    Henfil começa na contramão. Reconhece, e aplica ao seu cartum, a universalidade temática do humor, a dimensão metafórica que o humor pode ter, não importando se o seu tema imediato é a paternidade ou o consumo, a avareza ou o futebol, ou qualquer outro. Com essa premissa, recheada pelo talento incomum, o sucesso do Urubu já bastaria para consagrá-lo.

    Mas Graúna, Zeferino e Bode Orelana — presenças teimosamente diárias na caatinga institucional a que a ditadura reduzira o Brasil — fizeram o trio fenomenal. E fenômeno não apenas na criatividade. O trio tornou-se um revigorante matinal, oxigenava as mentes oprimidas pelo pesadelo diuturno que era a boçalidade ditatorial.

    A outra contribuição trazida ao cartum por Henfil, a de ordem formal, deu-se também pela recusa do que as novas gerações de cartunistas estavam praticando: assegurado o teor político, o desenho — como forma, como concepção, como elaboração — era secundário. O bom cartum não depende, é verdade, de que o autor seja um grande desenhista. Mas daí a cretinizar o desenho vai uma distância insuportável. E era isso que se ia generalizando. Na melhor das hipóteses, deparava-se com um mau imitador do desenho de Jaguar ou de Ziraldo — os arredondados de traço instável ou os quadrangulosos esquemáticos.

    Henfil já chegou limpando a área do desenho, despojando-o de tudo o que não fosse indispensável. Sobre o território limpo, veio o traço leve e ágil, definido e consciente, dando ao desenho uma leveza que o fazia flutuar no quadrinho, enquanto o quadrinho mesmo flutuava, ele também, no espaço mais amplo da folha impressa. Não há dúvida de que o desenho de Henfil foi fundamental para seu êxito. Tal como o êxito de Henfil foi fundamental para os cartunistas que se seguiram.

    Como uma pessoa chega a essa condição? Eis uma pergunta sempre fascinante. E o que faz dessa condição alcançada, como e com que objetivos a utiliza? No caso de Henfil — tão complexo pela combinação, em altas doses, de talento excepcional, de doença congênita, de dores ao longo da vida, de paixões, de consciência social, de esperança-desesperança —, tenho o prazer de introduzi-lo, leitor, nas respostas: basta passar à próxima página, onde Dênis de Moraes o aguarda com a preciosa exposição de humor, de sofrimento, de coragem, de caráter — de Henfil, em uma palavra.

    O rebelde do traço

    O MOLEQUE NA RAIZ

    Henrique de Souza Filho veio ao mundo em Ribeirão das Neves, Minas Gerais, no dia 5 de fevereiro de 1944, ano em que as expectativas de uma vitória dos Aliados contra o nazifascismo aumentavam a cada telegrama lido pelos locutores de rádio. Os pracinhas brasileiros tinham acabado de embarcar para a Itália.

    Henriquinho tinha 1 ano e 8 meses de idade quando acordou sobressaltado com o foguetório e correu apavorado ao quarto da empregada Maria Leal. Comemorava-se o fim da Segunda Guerra Mundial. A passagem da família Souza por Ribeirão das Neves durou o suficiente para os Aliados triunfarem, Vargas ser deposto e a democracia se restabelecer no Brasil, com anistia aos presos políticos, reorganização partidária, fim das leis de exceção e eleições para a Assembleia Constituinte e a Presidência da República.

    O encontro irreversível com o traço só aconteceu aos 7 anos, em Belo Horizonte. Enchia os cadernos com rabiscos. De tanto observar o altar da igreja nas missas de domingo, Henriquinho transpôs para o papel miúdas figuras de santos, que sua mãe, Maria da Conceição, se orgulhava de mostrar às paroquianas. Esperteza dele. Recorria às figuras mal decalcadas dos ícones para tentar compensar o péssimo desempenho escolar.

    Mas foi o álbum de família que dissipou as dúvidas. Aos 12 anos, Henriquinho aceitou o desafio proposto por sua irmã mais velha, Maria Cândida, a Tanda. Ela queria presentear o marido, Arnaldo, com um álbum que reunisse fotografias dele, do casamento, da lua de mel e dos primeiros filhos do casal. Pediu ao irmão que o ilustrasse.

    Em questão de dias, ele concluiu o serviço. Tanda quase não acreditou no que viu. As ilustrações em nada se assemelhavam às manchas multicoloridas do imaginário infantil; tinham indiscutíveis marcas de preciosismo. Com lápis de cera e aquarela, ele recriou locais percorridos por Arnaldo.

    O álbum correu de mão em mão e Tanda e Arnaldo ouvindo a pergunta:

    — De quem são estes desenhos?

    Apontavam para Henriquinho. Ele levantava as sobrancelhas e amansava o fogo da vaidade com um sorriso de candura.

    Quase trinta anos depois, Henrique de Souza Filho, o Henfil, alisou a barba com fios grisalhos antes de rever o álbum. A ansiedade nostálgica parecia desproporcional naquelas mãos que fabricavam humor caligráfico e corrosivo, como sintetizou o crítico de quadrinhos Moacy Cirne. Ao folheá-lo, nem o estoque cômico que Henfil carregava nas veias o livrou da compulsão de rir. A ingenuidade de outrora repicava no coração de um homem que, calejado pela ironia de ver o mundo se expandir em meio às dores coletivas, desenhava como se estivesse mastigando pedras.

    * * *

    Henriquinho descendia de famílias do norte de Minas, zona árida, de vegetação rasteira, que integra o polígono das secas. O tronco materno provinha de Bocaiuva. Maria da Conceição era filha de Rodrigo Antônio de Araújo Abreu, coletor federal de impostos e depois comerciante, e de Maria Augusta Figueiredo, severa matriarca do clã.

    Seu pai, Henrique de Souza, nasceu em Pirapora, 400 quilômetros ao norte de Belo Horizonte. A inclinação para tropeiro terminou na adolescência, quando se empregou no comércio. Extrovertido e pé de valsa, atravessava de barco o São Francisco para ir a bailes em lugarejos vizinhos.

    Henrique partiu para Montes Claros, atraído pela construção da estrada de ferro que cortaria Minas até a capital. Trabalhou como almoxarife e tesoureiro, o que o obrigava a constantes viagens. Nessas andanças, foi parar em Bocaiuva, incluída no traçado da ferrovia inaugurada em 1926, onde conheceria Maria da Conceição. Amor à primeira vista. Henrique encheu-se de coragem e pediu autorização para cortejá-la. Os dois jamais puderam ficar a sós: se não eram os pais a vigiá-los, havia uma tia de plantão na sala.

    Casaram-se em dezembro de 1923, ele com 28 anos e ela com 17, e tiveram 12 filhos, dos quais oito sobreviveram: Maria Cândida, Zilah, Wanda, Herbert José (Betinho), Maria da Glória, Henrique de Souza Filho, Filomena e Francisco Mário. Maria da Conceição (a primogênita), Carmen e Soledade morreram precocemente; José Maria viveu apenas dois anos e dois meses. Maria da Conceição perdeu outros quatro filhos por problemas na gravidez. E ainda enfrentou a provação de ter quatro filhos hemofílicos: José Maria, Betinho, Henriquinho e Chico Mário.

    Henrique fez fama de mão-aberta. Na padaria que abriu em Bocaiuva, os fregueses penduravam as contas. Um dia, Maria da Conceição comprovou o que suspeitava: o dinheiro disponível no caixa não equivalia à receita. Coincidência ou não, dois ex-empregados não tardaram a ter a sua própria padaria.

    No começo dos anos 1930, Henrique inaugurou o primeiro e único cinema mudo da cidade. As sessões atraíam muita gente, mas eram pouco rentáveis, porque o dono não cobrava entrada dos mais necessitados. Outra tentativa, sem êxito, foi no ramo de tecidos.

    A pedido de correligionários de Bocaiuva, Benedito Valadares, mandachuva em Minas após a Revolução de 1930, nomeou-o, interinamente, interventor municipal. Após o curto mandato, foi juiz de paz. A família levava uma vida modesta, com Maria da Conceição costurando e bordando para vestir os filhos. O orçamento apertou bastante quando ela convenceu o marido a matricular Maria Cândida e Zilah, as filhas mais velhas, no internato do Colégio Santa Maria, em Belo Horizonte. A partir daí, cresceu o desejo de Maria da Conceição de mudar-se para a capital, onde todos os filhos poderiam estudar e haveria recursos para tratamentos de saúde.

    Se a medicina brasileira ainda se aprofundava no estudo da hemofilia, imagine o que acontecia no distante norte de Minas, na primeira metade do século XX. A doença era chamada de mal do sangue, e o único médico da localidade não se arriscava no diagnóstico.⁷ A própria Dona Maria confessaria, muitos anos depois, que, quando jovem, desconhecia o fato de se tratar de uma doença hereditária transmissível pela mulher (na qual é recessiva, enquanto é patente no homem). Foi na dolorosa experiência com os filhos que se apercebeu das sequelas das hemorragias provocadas por traumatismos mínimos. Ela guiava-se pela intuição, impedindo-os de subirem em árvores, andarem a cavalo e até de se debruçarem à janela. Acolchoava com feltro as quinas dos móveis para que não sofressem qualquer espécie de ferimento.

    Atendendo a vontade da mulher, Henrique estabeleceu-se em Belo Horizonte com um pequeno armazém onde vendia fiado a pagadores relapsos. O estoque foi acabando e ele faliu. Graças ao bocaiuvense José Maria Alkmin, político emergente e primo em segundo grau de Maria da Conceição, os Souza saíram do atoleiro. Nomeado diretor da Penitenciária Agrícola de Ribeirão das Neves, então distrito de Contagem, a 35 quilômetros de Belo Horizonte, Alkmin designou Henrique para a chefia do almoxarifado, com direito a morar numa das casas da administração.

    Belo Horizonte experimentara um surto de dinamismo na administração do prefeito Juscelino Kubitschek. As principais ruas do centro foram asfaltadas e iluminadas, praças remodeladas. O novo cartão-postal era o conjunto da Pampulha, marco da arquitetura moderna brasileira, projetado pelo jovem arquiteto Oscar Niemeyer, compreendendo o Iate Clube, o Cassino (atual Museu de Arte), a Casa de Baile e a Igreja de São Francisco. Ao lado de Niemeyer, atuaram outros papas do modernismo, como Roberto Burle Marx, Alfredo Ceschiatti e Candido Portinari.

    Ao assumir, em 1945, o cargo de provedor da Santa Casa de Misericórdia, José Maria Alkmin convidou Henrique para gerenciar o recém-criado Serviço Funerário. Com 2 anos incompletos, Henriquinho foi morar com os pais, os irmãos e a empregada Maria Leal numa casa no bairro Floresta. A família cresceria em Belo Horizonte, com os nascimentos de Filomena e Francisco Mário.

    Betinho e, mais tarde, Henriquinho assimilaram a rotina do Serviço Funerário, a três quadras da imponente sede da Santa Casa. Em momentos distintos, os dois irmãos descobriram o prazer de andar de automóvel — um luxo, já que menos de 5 mil veículos circulavam pela capital. Pouco importava o fato de estarem a bordo de carros fúnebres transportando urnas mortuárias.

    Henriquinho familiarizou-se com o universo funerário a partir de 1949, quando os Souza foram morar a uma quadra dali, na rua Ceará, 198. A casa, de sala e três quartos, tinha cômodos mais amplos do que a anterior, mas era uma proeza abrigar um casal, oito filhos (de idades as mais diversas) e a empregada.

    A filharada odiou quando Seu Henrique comprou a última novidade tecnológica da época: uma vitrola. Odiou porque parou de ir a programas de auditório nas rádios de Belo Horizonte. Em compensação, os ouvidos da família puderam se aprimorar com um repertório eclético que incluía modinhas mineiras, Jacob do Bandolim, Catulo da Paixão Cearense, Ernesto Nazareth, Pixinguinha, Mozart, Beethoven e Chopin. Não foi à toa que Chico Mário muito cedo se afeiçoou aos acordes eruditos que um dia o transformariam em um compositor de mão-cheia.

    Os colegas de primário no Grupo Escolar Pedro II não faziam ideia da doença que obrigou Henriquinho a faltar às aulas por duas semanas, até cessar a hemorragia provocada pela queda de um dente de leite. O amigo e vizinho Paulo César Santos Teixeira, o Paulinho, cansou de ver a sua perna com o triplo da grossura habitual, por causa de derrames no joelho: Ele mal conseguia andar. Reclamava à beça das dores. Tinha medo de cair, pois qualquer corte era um drama horrível.

    Henriquinho, Betinho e Chico Mário contaram com um anjo da guarda, o médico Expedito Rolla Guerra. Recém-formado, ele era residente na Santa Casa de Misericórdia quando, numa noite de 1945, o chamaram para atender Betinho, que havia caído no banheiro e cortado o lábio. Internou-o na Santa Casa e salvou-lhe a vida. Tornou-se amigo da família e dedicou-se a estudar a hemofilia em livros alemães traduzidos para o espanhol. Sendo médico, conseguia sem atropelos os plasmas sanguíneos. Betinho, Henriquinho e Chico Mário submetiam-se às transfusões endovenosas sem reclamar.

    Às escondidas da mãe, Henriquinho andava em carrinhos de rolimã que ele e Paulinho fabricavam utilizando tábuas e cabos de vassoura. Nas brigas das redondezas, cumpria missão estratégica: ia à frente da turma da Santa Efigênia para mexer com os adversários do São Lucas. Todo mundo sabia que era doente e não se podia bater nele. E por isso abusava nas provocações.

    Na experiência comunitária em Santa Efigênia, Henfil absorveu fragmentos essenciais à consciência social que o nortearia sempre. Identifiquei-me com o sofrimento daquele povo carente à porta da Santa Casa e nas favelas. Aprendi a dar valor a um sistema solidário e humano, afirmaria décadas depois.

    Imperava na casa dos Souza o sistema fixado pela religião católica apostólica romana. Como os irmãos, Henriquinho cresceu sob o signo do pecado e da culpa, avisado de que, se mentisse, estaria cravando um espinho no coração de Jesus Cristo. Em dias de tempestade, queimava-se palha benta e as crianças escondiam-se debaixo da mesa, com medo da ira divina. Henriquinho chegou a ser coroinha da paróquia do bairro. A mãe alimentava o inconfesso desejo de vê-lo um dia ordenar-se padre na Catedral Metropolitana.

    Nem na religião Henriquinho encontrou resposta para a adversidade enfrentada pelo irmão mais velho. Dos 15 aos 18 anos, Betinho vivera recluso em um quarto nos fundos do quintal, curando-se de uma tuberculose. O pneumologista reuniu a família para preveni-la do pior: a infecção era seriíssima. Cientificado, o doutor Expedito Rolla Guerra temeu que o menino não escapasse — uma hemoptise provocaria um sangramento fatal nos pulmões.

    Betinho passou três anos de pijama; só punha sapatos para a visita mensal ao médico. Lia compulsivamente e ouvia radionovelas. Se quisesse alguma coisa, apertava a campainha conectada à casa principal. Os tísicos eram segregados em guetos domésticos ou, no caso dos mais abastados, em estações de cura nas montanhas.

    Com pavor de contágio, os pais mandaram construir uma pequena cancela de madeira para impedir o acesso ao quartinho onde ele convalescia. Dali, Henriquinho observava-o. A diferença de nove anos entre os dois encurtou-se, paradoxalmente, na distância física de 10 metros. Era uma espécie de vigilância infantil: do lado de fora, Henfil me espreitava, seguia passo a passo o que acontecia comigo, relembrou Betinho.

    Quando ninguém mais acreditava na cura, Betinho leu, num exemplar antigo da revista O Cruzeiro, o anúncio de um remédio contra a tuberculose chamado Hidrazida. Alertou a mãe. Três meses depois, estava curado.

    * * *

    Henriquinho detestava estudar. Na última série do primário, no Grupo Dom Pedro II, escudou-se na hemofilia para ser aprovado. A rigor, teria sido reprovado por faltas — 60% delas por crises hemorrágicas, 40% por malandragem.

    As coisas se complicaram quando, aos 11 anos, ingressou na primeira série ginasial do tradicional Colégio Arnaldo, administrado por padres e onde haviam estudado Carlos Drummond de Andrade, Fernando Sabino e Rubem Braga. Nas primeiras semanas, assistiu às aulas com a abnegação de um beato. Porém não demorou a se unir ao grupo que esperava o sinal bater para, no momento certo, sair de fininho pelo portão, sem que ninguém notasse.

    Henriquinho repetiu duas vezes a primeira série, três a segunda e duas a terceira. Ou seja: sete bombas! A mãe ficou sabendo que ele faltava sistematicamente às aulas ao ser notificada por escrito pelo colégio. Dona Maria ameaçou interná-lo no temido Educandário Dom Bosco. Exigiu que estudasse ou fosse trabalhar.

    Novamente inscrito na terceira série ginasial, em 1960, Henriquinho encontrou um parceiro ideal nas matanças de aulas: Lucas Mendes. Lucas tinha tomado bomba no Colégio Militar e cursava a terceira série no Arnaldo. Os dois sentavam-se no último banco da sala, onde combinavam as colas nas provas, quando os professores se distraíam. Às vezes, nos intervalos, escapuliam para remar no bucólico lago do Parque Municipal.

    Pelo mau desempenho do filho, os pais de Lucas o transferiram para o internato. Henriquinho, igualmente com notas baixas e excesso de faltas, abandonou o Colégio Arnaldo ao término do ano letivo de 1960.

    Em 1961, foi reprovado na terceira série ginasial no Colégio de Aplicação da Faculdade de Filosofia da Universidade Federal de Minas Gerais. Restou à Dona Maria matriculá-lo, em 1962, no turno da noite do Colégio Lúcio Santos, um verdadeiro paraíso — os alunos que pagavam as mensalidades em dia eram aprovados sem tensões.

    Henriquinho passou no exame de seleção para a quarta série no Colégio Estadual de Minas Gerais, onde concluiu o ginásio em 1963 — aos 19 anos! Seis meses depois, fez as provas do Madureza para recuperar o tempo perdido, sendo aprovado nos exames correspondentes às três séries do curso clássico. Santa Efigênia estremeceu: teria o gazeteiro, afinal, se regenerado?

    Nota

    ⁷ A hemofilia decorre de uma deficiência na coagulação sanguínea, motivada pela ausência ou insuficiência dos fatores 8, 9 ou 11 — proteínas produzidas no fígado que interferem no processo coagulatório. As hemorragias podem ser espontâneas ou decorrentes de ferimentos; para controlá-las, é necessário recorrer a transfusões constantes, a fim de repor o fator coagulante, proporcionando alívio ao paciente. Até 1960, os hemofílicos readquiriam os fatores de coagulação por meio de transfusões de sangue (extraído de pessoas normais) de seis em seis horas. Era o único meio de estancar as hemorragias externas ou internas (as chamadas hemartroses: derrames nas articulações que provocam dores e inchaços terríveis, sobretudo nos joelhos). Depois, foi descoberto o crioprecipitado, obtido do plasma fresco de doadores não hemofílicos e rico em proteínas do fator de coagulação (o fator 8). No início da década de 1990, surgiram os concentrados com origem na engenharia genética, que já não dependem exclusivamente de sangue humano ou animal, o que reduz os riscos de contaminação. Com a evolução das pesquisas científicas, hoje existem três alternativas de tratamento para a hemofilia: a) os produtos extraídos do plasma humano e depois purificados por métodos que garantem o melhor nível de segurança possível; b) produtos recombinantes pela engenharia genética contendo ainda componentes de origem sanguínea (humana ou animal); c) produtos recombinantes de última geração produzidos pela engenharia genética e que já não contêm nenhum vestígio de derivados sanguíneos (humano ou animal).

    A MILITÂNCIA NA VEIA

    Os irmãos Souza abandonaram a religião do medo na década de 1950, quando a Ação Católica sacudiu as bases da Igreja, pregando uma participação consciente dos fiéis nas questões sociais. O movimento baseava-se na L’Action Catholique, idealizada na França pela Ordem dos Dominicanos, com o objetivo de ampliar a evangelização e despertar vocações religiosas. Os dominicanos resgatavam no Evangelho o compromisso dos cristãos com a justiça e a igualdade.

    O mestre da nova geração era o afável e carismático frei Mateus Rocha, provincial dos dominicanos aos 32 anos. Humanista com amplo domínio filosófico e apaixonado por Dostoievski, Mateus cumpriu papel intransferível na consolidação da Ação Católica. Sua obra Jec, o Evangelho no colégio arrebatou milhares de adeptos em todo o país, transformando o método Ver-Julgar-Agir em marca registrada de valores evangélicos permeados por um socialismo utópico. Dividido em quatro troncos — Juventude Estudantil Católica (JEC), Juventude Universitária Católica (JUC), Juventude Independente Católica (JIC), formada por profissionais liberais, e Juventude Operária Católica (JOC), este pouco representativo em Minas —, o movimento conseguiu plantar bases sólidas em um dos redutos mais conservadores do catolicismo brasileiro.

    Zilah e Wanda, irmãs de Henfil, filiaram-se à Ação Católica. Em 1953, ao sarar da tuberculose, Betinho ingressou na JEC, influenciado pela leitura dos católicos franceses trazidos por Zilah e pela rara vocação evangelizadora de frei Mateus. "Na JEC, os assistentes apresentavam Cristo como o cara que veio fazer uma revolução, não em termos políticos,

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