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No calor da hora: A Guerra de Canudos nos jornais
No calor da hora: A Guerra de Canudos nos jornais
No calor da hora: A Guerra de Canudos nos jornais
E-book771 páginas16 horas

No calor da hora: A Guerra de Canudos nos jornais

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Sobre este e-book

A guerra de canudos é um assunto que desperta grande interesse até hoje, aparecendo a todo o momento em revistas, filmes, pesquisas e teses universitárias. Em 1896, período em que ocorreu, foi o tema central de publicação diária em todos os jornais. No calor da hora concentra-se no estudo do que os vários jornais da época em diferentes regiões, diziam a respeito dos episódios e lances de conflagração, o livro também estuda os diferentes tipos de matérias jornalísticas, além de editar integralmente as séries de reportagens feitas no local da guerra.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de jun. de 2019
ISBN9788578587833
No calor da hora: A Guerra de Canudos nos jornais

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    No calor da hora - Walnice Nogueira Galvão

    Nota Editorial

    (4ª Edição)

    Quando, há meio século, comecei a estudar as fontes de Os sertões, não imaginei, nem percebi, que se tratava da primeira tese universitária focalizando Euclides da Cunha e a Guerra de Canudos.

    Mesmo sem ser um lance premeditado, a tese celebrou os exatos 70 anos da publicação de Os sertões. Apresentada em concurso de livre-docência à Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da USP em 1972, até recentemente eu ignorava ter sido essa a primeira tese no campo dos estudos euclidianos — algo que se tornou corriqueiro desde então, contando-se teses às dezenas e logo mais às centenas. Devo a informação à Academia Brasileira de Letras, que publicou a lista da produção universitária sobre Euclides da Cunha (http://www.euclidesdacunha.org.br./producaoacademica/teses/ 11 de agosto de 2003, acessado em 18.6.2017). Pesquisadores independentes corroboram a conclusão (Juan Carlos Pires de Andrade: http://www.euclidesite.wordpress.com/teses / 1º de dezembro de 1998, acessado em 18.6.2017).

    Instigada a estudar tais fontes, dei-me conta de que o material mais imediato à mão de Euclides — o noticiário que saía todo dia — não fora recolhido e permanecia nos jornais. Depois de perquirir os livros e revistas produzidos pelos participantes da guerra, relatórios de governo, ordens-do-dia militares, correspondência pessoal e oficial, romances e outras obras literárias, memórias, biografias e autobiografias, abria-se a lacuna: de onde viera tal ou qual informação, se não estava nas fontes conspícuas?

    Foi assim que pus mãos à obra, nos arquivos e bibliotecas de São Paulo, Rio de Janeiro e Salvador. O material, numeroso e riquíssimo, quase torpedeou o projeto e a pesquisadora. Tendencioso, sem escrúpulos, dado a falsificar fontes, era pólvora pura e do maior interesse.

    Muitas eram as reportagens de enviados especiais, várias delas longas, e todas fascinantes. Foi-se delineando a ideia de estudar o noticiário e editar as reportagens em anexo, que assim passariam a integrar o corpus à disposição dos pesquisadores. E que resultaria neste livro, ora em 4ª. edição. Doravante seria possível ter acesso ampliado às fontes de Euclides.

    O livro foi suscitado pelo momento em que, nos anos 1970, a ditadura militar a serviço dos poderosos era acolitada pela mídia, que se dedicava a operar a lavagem cerebral do corpo social. A conjuntura instigou-me a estudar aquele outro momento de 1897 em que essa confluência de forças aparecia com nitidez. Nos anos 1970, a distorção deliberada dos eventos e a cortina de fumaça montada pela mídia cúmplice seriam fartamente esclarecidas, como é sabido, quando a democracia se restabelecesse, as investigações começassem e os arquivos secretos fossem abertos. Dá o que pensar: se tudo isso estaria enterrado no cemitério da História ou, ao que parece, continuaria fermentando subterraneamente para mais tarde entrar em erupção.

    Depois do livro, o campo continuou a me interrogar. Nunca supus, ao começar esse trabalho, que me prenderia pelo resto da vida e resultaria, até agora, em 12 livros. Entre eles a edição crítica de Os sertões; a reedição do Diário de uma expedição contendo as reportagens de Euclides sobre a Guerra de Canudos; a correspondência; a publicação dos autos do processo sobre sua morte etc. Com tanta imersão, a certa altura vi-me impelida a escrever um livro que efetuasse uma síntese crítica de toda a documentação existente e propusesse uma interpretação própria. Apoiei-me numa fortuna crítica já amadurecida, tanto quanto nos teóricos dos movimentos sociais e da decorrente perpetuação da utopia ao longo da História. Foram eles que analisaram outras Canudos, em outras épocas e outros países, enfatizando os anseios de libertação, bem como o potencial transformador. A exemplo de Engels e as guerras camponesas, Max Weber e o reencantamento do mundo, Ernst Bloch e o princípio esperança, Hobsbawm e a rebeldia pré-política, Mircea Eliade e o terror da História, e assim por diante.

    Ainda havia muito a pesquisar e a retirar do ineditismo. Associaram-se a essa tarefa vários outros estudiosos, de modo que apenas a contribuição deles já constitui hoje uma boa renovação do campo, garantindo a chancela do rigor universitário.

    Walnice Nogueira Galvão

    Professora Emérita da FFLCH-USP

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    Capítulo I

    Apresentando o Jornal de 1897

    Diga-se com Chesterton que jornalista é aquele que escreve no reverso dos anúncios ou com McLuhan que a notícia é um bem de consumo e por isso carrega com ela a publicidade: reconhece-se em qualquer caso no jornal um importante veículo de comunicação.

    Quando se pensa, então, que o jornal era o mais eficiente veículo de comunicação de massa no Brasil do final do século XIX, que é o período em que se concentra este trabalho, percebe-se o relevo extraordinário que pôde ter naquele contexto.

    É assombrosa a quantidade de jornais e revistas que circularam pelo Brasil. Embora os estudos disponíveis sobre o assunto sejam ainda insuficientes, como Hélio Vianna lamenta em seu respeitável trabalho¹, alguns dados esparsos podem dar uma ideia. Gondim da Fonseca arrola, de 1808 até o ano prévio àquele em que a Guerra de Canudos se tornou um caso sério, quase dois mil títulos de periódicos para o Rio, então Capital Federal; e o próprio ano da guerra, 1897, viu surgirem mais 29 naquela cidade². Entre 1811 e 1899 houve cerca de setecentos periódicos no estado da Bahia³; a cidade de Curralinho, minúscula, desimportante e perdida no sertão, teve, ela só, e exclusivamente na última década do século XX, nove deles. Claro que esses dados devem ser lidos corretamente, pois no Brasil sempre foi praxe editar-se, por exemplo, apenas alguns números e deixar desaparecer o periódico, fosse por falta de autonomia financeira, fosse por problemas políticos. Ainda mais, foi costume criar-se e editar-se um único número de jornal, em geral comemorativo de alguma efeméride ou dedicado a uma pessoa de posição, sendo já de antemão sabido e convencionado que aquele seria o único número a aparecer.

    Mas, apesar disso, e mesmo admitindo-se que a maioria dos jornais registrados estava nesses casos, e foi, portanto, de duração efêmera, ainda assim é espantosa a quantidade deles e a insistência com que pessoas ou grupos teimavam em fundar novos jornais.

    Justamente por ser o veículo de comunicação de massa mais eficaz, é igualmente inacreditável o nível dos escritos estampados, particularmente nos jornais mais antigos e nos de pequenas cidades (mas não só). Cartas anônimas ou declarações assinadas, contendo acusações caluniosas da maior gravidade sobre a vida particular das pessoas, vazadas em linguagem não apenas incorreta, mas de calão, e que indicam, no mínimo, uma grande liberdade de imprensa, são corriqueiras. É verdade que os crimes de morte cometidos por essas causas não foram poucos, afora os desforços pessoais. Também se sabe que jornalistas profissionais foram alvos privilegiados de todo tipo de atentado, em especial nas fases mais agitadas da vida do país. Apenas a derrota da Expedição Moreira César em Canudos causou o empastelamento de três jornais no Rio — Apóstolo, Liberdade e Gazeta da Tarde — e um em S. Paulo — O Comércio de São Paulo — bem como o assassínio de Gentil de Castro⁴. Ainda, a publicação de pasquins, jornaizinhos de sátira política e de costumes, é uma velha tradição brasileira, embora quase sempre de repercussão local apenas.

    Centrando a atenção na época que interessa a este trabalho, e que se situa nos primeiros anos da República Velha, o que logo desconcerta e perturba o pesquisador é o fato de que então havia, proporcionalmente à população, se não em termos absolutos, mais jornais do que hoje. E jornais de fato, do tipo clássico, tais como O Estado de S. Paulo, para São Paulo, e o Jornal do Brasil, para o Rio de Janeiro. Em outras palavras, jornais que atendem aos dois requisitos que, no estudo básico de Georges Weill⁵, definem a especificidade do jornal: noticiar, com regularidade.

    No Rio, então Capital Federal, e que não passava de uma acanhada cidade com pouco menos de setecentos mil habitantes⁶, havia, como jornais diários, regulares e permanentes, pelo menos A Notícia, O País, O Jornal do Comércio, A Gazeta de Notícias, o República, o Jornal do Brasil, a Folha da Tarde. Em São Paulo, bem menor e muito mais provinciana ainda, sobressaíam O Estado de S. Paulo, o Correio Paulistano, O Comércio de São Paulo, que eram suficientes para informar seus ralos duzentos milheiros de habitantes. Na capital da Bahia, Salvador, com população aproximada à de São Paulo, apareciam o Jornal de Notícias, o Correio de Notícias, o Diário da Bahia, o Diário de Notícias, A Bahia, dentre os mais importantes. E esses eram os grandes centros urbanos do país.

    Dois elementos ferem de imediato a percepção do leitor: o primeiro é que esses jornais são muito diferentes dos jornais de hoje; e o segundo, que eles são todos muito semelhantes entre si, editem-se na capital do país, para um público presumivelmente mais refinado e mais em dia com as modas europeias, ou na Bahia, mais distante e menos importante.

    A ausência de fotografias é o traço que mais torna a aparência do jornal de então diferente, para o leitor de hoje. Habituados a que o jornal seja um veículo misto, para recepção de imagem e leitura ao mesmo tempo, e tendo a imagem a importância informativa que tem em nossos dias, logo nos espanta termos diante dos olhos um jornal sem fotografias. As ilustrações, que raramente ocorrem, são reservadas para mortos ilustres, mapas de batalhas, anúncios de remédios que mostram o antes e o depois, modas femininas, e expressam-se todas em horrendos desenhos.

    O modelo do jornal é um só. Estreitas colunas (nem sempre, mas via de regra, em número de oito) que obrigam o leitor de um artigo mais longo a iniciar a leitura lá em cima, logo abaixo do cabeçalho, percorrer quase um metro de papel até o pé da coluna, e procurar a continuação na coluna contígua novamente lá em cima. Se o artigo ocupa várias colunas, o movimento da leitura se repete várias vezes; cada artigo, uma vez começado, vai até o fim sem interrupção. O tamanho grande da página, a estreiteza das colunas, os tipos miúdos, realmente dificultam a leitura. E hoje, que os jornais se encontram encadernados nos arquivos e bibliotecas, o pesquisador é obrigado a lê-los de pé, com o volume aberto sobre a mesa, única maneira de se conseguir enxergar a porção superior da página.

    A canhestra paginação admite às vezes alguns recursos. Um ou outro jornal mantém um rodapé permanente, seja ou não para edição de folhetins, o que corta a página e permite que as colunas sejam mais curtas. Alguns traços verticais e horizontais mais espessos, cercando áreas, bem como a utilização esporádica de tipos diferentes, quebram um pouco a monotonia visual.

    Mas a monotonia é apenas visual. A leitura desses jornais é fascinante. Por ser o veículo de comunicação de massa por excelência, o jornal dessa época acolhe em suas páginas material variadíssimo e que hoje se encontra disperso pelos outros veículos. É ao mesmo tempo um jornal mais literário e menos literário. Mais, porque nele são frequentes os contos, os poemas, as crônicas, e porque nele escreveram regularmente grandes nomes da criação literária, como José de Alencar e Machado de Assis, para citar só os maiores⁷; e menos: o estilo jornalístico, ainda muito pouco desenvolvido, peca a todo momento pela incorreção da linguagem.

    Se, como diz McLuhan, o jornal é um mosaico, o jornal de então era um mosaico constituído por fragmentos de natureza vincadamente díspar. Em jornais conspícuos, na primeira página, encontramos um grave soneto ao lado de um anúncio de tratamento de moléstias venéreas, uma crônica literária em francês ao lado de uma lista de livros só para homens, um comentário sobre um processo criminal envolvendo atentado ao pudor ao lado de um discurso do Presidente da República. Publicações a pedido, provocações para briga, cartas abertas, testemunhos sobre remédios milagrosos, bilhetes amorosos: a variedade é enorme e a disparidade também.

    Sendo, como foi, de enorme importância informativa, o jornal desse tempo suscita no leitor de hoje a opinião de que tudo, mas tudo, se passa nas páginas dele. E não só se passa como se cria, sejam incidentes, intrigas ou até mesmo conspirações.

    Não é por coincidência que vários jornais cariocas ficavam na Rua do Ouvidor, então a rua mais importante do país, onde, como relatam cronistas e romancistas, todas as pessoas passavam todos os dias para saber das novidades. As agitações de rua, tão frequentes nesse período, quando não começavam na Rua do Ouvidor, lá iam parar, bem como o Carnaval.

    Extremamente interessante é o exame desse material para a definição do estilo da época. De boa ou má qualidade, a sério ou despretensiosamente, é sempre, para a ótica literária, o mesmo estilo parnasiano-naturalista-positivista-patriótico⁸.

    Para presentificar o exposto e permitir um contato mais direto com os textos, seguem alguns exemplos; poder-se-á, assim, sentir a temperatura da atmosfera jornalística da época.

    Anúncios classificados de cabras com abundância de leite, de roubo de besta de sela, arreada, cor de pinhão, com sinal no quarto, ainda nova e pequena, ou oferecendo à venda lenha em achas — e tudo isso na capital do país — dão conta do estilo de vida que se levava. Mas não devem ser isolados de outros textos que também o fazem, e de que é exemplo a inserção regular, em primeira página, de uma crônica em francês sobre atualidades políticas, sob o título de Lettres d’une créole, na Gazeta de Notícias, do Rio. Entre os anúncios classificados da página especializada, encontram-se, entre os vários que divulgam elixires e poderosos reconstituintes que curam tudo, de clorose a impingens, muitos como os seguintes: Embriaguez habitual ou crônica — Cura-se em poucos dias com o ESPECÍFICO GIFFONI; ou Gonorreias, corrimentos, flores-brancas, hemorroidas e moléstias das vias urinárias curam-se com os Pós Refrigerantes de A. de Carvalho; Rua Primeiro de Março, nº 8. Isso, no mesmo jornal que tem o requinte de manter uma seção em francês.

    Para se ter uma ideia do que se editava e que chegava até a página dos jornais em forma de publicidade, eis Laemmert & Cia. anunciando a saída de "O último amor, de George Ohnet, que é o 18º volume da Coleção econômica — Romances dos melhores autores — em volumes de 240 a 320 páginas — a 1$000 o volume e dando a lista dos livros anteriores da mesma coleção: Nº 1: Aventuras de Tartarin de Tarascon, seguidas de Tartarin nos Alpes, por Daudet. Nº 2: Pedro e João, por Guy de Maupassant. Nº 3: Sérgio Panine, por Ohnet. Nº 4: O sonho, por Emílio Zola. Nº 5: Sóror Filomena, por Edmond e Jules Goncourt. Nº 6: O médico assassino, por Otávio Feré. Nº 7: Os milhões vergonhosos, por Heitor Mallot. Nº 8: O amigo Fritz, por Erckmann Chatrian. Nº 9: Vogando, por Guy de Maupassant. Nº 10: Um romance de mulher, por Pierre Mael. Nº 11: Vontade. por Gcorge Ohnet. Nº 12: O Nababo, por Daudet. Nº 13: Um coração de mulher, por Paul Bourget. Nº 14: Beatriz, por Ridder Haggard. Nº 15: O crime, por Gabriel de Annunzio. Nº 16: Lise Fleuron, por George Ohnet. Nº 17: Os dois rivais, por Armand Lapointe". O gosto é infalível: ou os piores autores, ou os piores livros dos melhores.

    É um tempo em que se anuncia o Cinematógrafo Edison, no Teatro Edison à Rua do Ouvidor, como a maior novidade do dia, e se acrescenta: Entrada com cadeira 1$000. O Animatógrafo Super-Lumière fazia concorrência.

    É o tempo da popularidade cênica de Pepa Ruiz; o anúncio do espetáculo em que ela se apresenta, Tintim por tintim (a idolatrada, a triunfante, a vitoriosa revista de Souza Bastos), fornece uma boa descrição das atrações, que incluem, além de distintos e festejados artistas, mais o seguinte: "Apresentação do esplêndido panorama das províncias de Portugal. A estátua equestre do legendário General Osório. A portuguesa, patriótica marcha de A. Keil cantada pela arquigraciosa atriz Pepa Ruiz e o distinto ator A. Mesquita. Hino Nacional, pela excelente orquestra sob a regência do correto maestro A. Capitani".

    Também é o tempo do êxito da peça A capital federal, de Artur Azevedo, da qual se diz, em trecho de crítica incorporado ao anúncio: "A capital federal, reanimada pela recomposição do pessoal, caminhará agora desassombradamente para o centenário".

    A Gazeta de Notícias, de onde saíram os textos acima, publica sempre enormes anúncios de várias loterias, como a Grande Loteria da Capital Federal, que dá prêmios de 500:000$000, a Companhia de Loterias Nacionais do Brasil, com prêmios de 20:000$000, a Loteria Riograndense, com prêmios de 10:000$000, a Loteria Modelo de Barbacena de Minas, a Loteria de Santa Catarina etc.

    Folhetins publicados nesse ano pelos vários jornais são, entre outros, O rajá do Pendjab, de Henri Lesongeur, A tocadora de órgão, de Xavier de Montepin, Os dois abandonados, de P. Decourcelle, O castigo, de George Maldague, Os bastidores do mundo, de Ponson du Terrail, Confissão de um amante, de Marcel Prévost, O crime de Rochetaille, de Xavier de Montepin.

    Mas a mesma Laemmert publica, a exemplo de seus concorrentes, vários anúncios em jornais diferentes, dentre os quais seleciono este, estampado em A notícia de 7/8 de julho de 1897, por ser uma lista mais diversificada e com preciosos comentários. Trata-se de últimas publicações:

    Dr. Severiano Prestes: Lições de direito criminal, colecionadas e redigidas por Francisco de Castro Júnior, 1 vol. broch. 5$, elegantemente encadernado… 8$000 / Estêvão Lobo: Autoria coletiva e cumplicidade, 1 vol. 8’, nitidamente impresso… 3$000 / Araripe Júnior: Literatura brasileira, movimento de 1893. O crepúsculo dos povos… 3$000 / Visconde Taunay (Sílvio Dinarte): Inocência, mimoso romance de costumes brasileiros, no sertão. 3ª edição, nitidamente impressa …4$000 / Coelho Neto: Sertão, 1º volume da coleção Alva, contendo os seguintes contos: Praga, O enterro, Tapera, Firmo o vaqueiro, Cega, Os velhos… 6$000 / Valentim Magalhães: Flor de sangue, romance brasileiro, 1 grosso vol. com capa ilustrada por Julião Machado… 5$000 / Machado de Assis: Várias histórias, 1 vol. nitidamente impresso… 4$000 / Valentim Magalhães: Vinte contos, 2ª edição corrigida, 1 vol… 3$000 / Marcos Valente: Filosofia de algibeira, para philosophos de bond, 1 vol. in-32… 1$500 / Rodrigo Octavio: Sonhos Funestos, drama de assunto colonial em 3 atos e 4 quadros… 3$000 / Figueiredo Pimentel: Um canalha!, romance original brasileiro, 1 vol. com linda capa colorida… 3$000 / A. de Oliveira: Vida burguesa, contos, 1 vol… 3$000 / Gonçalves Dias: Poesias. Edição completa e expurgada dos erros anteriores, nítida impressão, 2 vols. brochs. 5$, encadernados… 6$000 / Casimiro de Abreu: Obras completas. Novíssima edição, precedida de uma notícia sobre o autor, por M. Said Ali, 1 vol. brochado 2$, encadernado… 3$000 / João Vieira de Araújo (Dr.) Código penal, comentado teórica e praticamente 1º volume, encad. … 15$000 / Fausto A. Cardoso: Concepção monistica do Universo, introdução ao cosmo do direito e da moral, 1 vol. in-8º, brochado 10$, encadernado… 12$000 / Pedro Rabello: A alma alheia, contos, 1 vol. in-16º, nitidamente impresso… 3$000.

    O mesmo jornal que publicou a lista de livros acima, A Notícia, deve ter sido um dos pioneiros da propaganda subliminar. No meio das notícias curtas da primeira página, aparece frequentemente, entre um suelto e outro, impresso em tipo muito menor, o seguinte: Thé de Lipton. Rien de mieux.

    As páginas dos jornais eram os locais escolhidos habitualmente pelas lojas maçônicas para dar a seus associados o santo e a senha de suas ultrassecretas reuniões. Seja nestes termos:

    hoj.·.Cap.·.Esperança

    sess.·.econ.·.hj.·.no

    log.·. e horas do costume. —

    O secret.·., Adriano de Castro

    em que a paciência abreviativa do linotipista ou do redator do original parece ter-se esgotado antes do fim, seja nestes outros:

    Aurora Escocesa

    sess.·. hoje sext.·. na cam.·.

    do meio. — O secret.·., Raphael

    de Agostini

    Como mencionei anteriormente, também segredos amorosos eram veiculados pelo jornal, que assim mostra mais especificamente como serve à comunicação. Veja-se este exemplo, colhido na segunda página do Diário de Notícias da Bahia, edição de 6 de julho de 1897:

    T…

    Recebi, finalmente, tua adorada carta de 26-6-97, já a tanto tempo esperada.

    Não receies que tuas últimas cartas tivessem tomado outro destino, recebi-as e o engano foi meu, perdoe-me.

    Por que julgas-me tão esquecido?

    Não vês que me é impossível esquecer-te?

    Esta tua carta de 26, veio envenenar-me o pensamento; se o que me disseste fosse verdade, quanto seria feliz!

    Não tenhas nenhum receio de tuas cartas serem vistas por outros; queimá-las nunca o farei, porém guardo-as com o meu coração.

    Mil gracias pela perfumosa lembrança.

    Mande-me um retrato teu, e escreva-me com frequência. É impossível ir mais adiante, se pudesse dirigir-te diretamente, então…

    X.

    Fora da esfera privada, a política internacional também irrompia nas páginas dos jornais não apenas como noticiário, mas como prática de grande vitalidade. A guerra de libertação nacional cubana aparece como tema momentoso tanto nas notícias e nos editoriais, quanto nas movimentações de Comitês de solidariedade, cujas prestações de contas eram publicadas como segue:

    PRÓ CUBA

    Demonstração do movimento de fundos da delegação cubana no Brasil.

    Deve

    Subscrição até hoje entre empregados brasileiros

    do comércio.........................................................................177$000

    ’’ ’’ ’’ vários estudantes promovida

    pelo Sr. Elizaldo Goyaz...........................................................72$000

    Recebido da subscrição do jornal O País..................................514$000

    Subscrição promovida entre deputados pelo Dr.

    Martins Júnior.......................................................................260$000

    Idem pelo Dr. Timóteo da Cruz...............................................560$000

    Idem pelo Dr. Rodolfo Miranda...............................................7:150$000

    Idem pelo Dr. Manuel Caetano................................................450$000

    Venda de selos cubanos na redação d’O País............................146$000

    Idem no Jornal do Brasil........................................................31$500

    Venda de distintivos cubanos n’O País.....................................6$800

    Idem no Jornal do Brasil........................................................17$000

    ...........................................................................................9:384$300

    Haver

    Pela compra de um cheque à vista no valor de

    $ 1.321.44 c (dollars) tomado ao London &

    River Plate Bank, a favor do tesoureiro da

    Junta Cubana de New York, Benjamin Guerra..........................8:934$300

    Em caixa a subscrição entre deputados promovida

    pelo Dr. Manuel Caetano, não incluída no

    cheque acima por ter sido entregue depois de

    comprado este......................................................................450$000

    ..........................................................................................9:384$300

    (O País, 21 ago. 1897, 3ª p.)

    Dentre os assuntos que mais renderam nos jornais do ano de 1897, destaca-se o do processo de Basílio de Morais. Este cavalheiro, diretor do Recolhimento de Santa Rita de Cássia, asilo de menores desamparados, estava respondendo a processo sob acusação de seduzir os menores a quem amparava. O tema serviu para tudo: notícias, comentários jocosos ou não, versinhos, polêmicas, afora a transcrição das audiências. O advogado de defesa era o próprio filho do réu, Evaristo de Morais, o qual teve que enfrentar, como advogado da acusação particular, nada menos que o notório Paula Ney.

    Transcrevo, como amostra estilística, apenas um trecho dos longuíssimos debates, extraído da Gazeta de Notícias, de 6 de abril de 1897, segunda página:

    O Sr. Dr. B. Pedreira (promotor público) — Mas então, que era essa mulher, noiva, que consentia em pernoitar com outro homem?

    Interessada em manter a sua posição no asilo, ávida dos $80 mensais que lhe prometera Basílio, sabendo que pelo seu dedicado auxílio para a consumação dos atentados planejados por ele, mais segura teria a sua estada no Recolhimento, não hesitou e foi o braço direito de Basílio. Ela própria aconselhava às crianças que consentissem em ir para o quarto do diretor.

    Pois não é ele quem te dá roupas? — dizia; Pois não é ele quem te dá de comer? Vai; vai coçar o pé do papai! Ela própria incitava assim as crianças, induzindo-as à prática das cenas imorais que já toda a imprensa narrou.

    A cumplicidade de Catarina de Melo está provada nos autos.

    As menores afirmam que ela as mandava para o quarto de Basílio, invocando, para que fossem, o sentimento de gratidão.

    A sua cumplicidade tem os característicos da comparticipação, como define Carrara.

    […]

    Compreende o amor, a paixão sopitando a inteligência, impedindo a reflexão. Mas o que é o estupro senão a negação do sentimento?

    O amor é o orvalho celestial que viceja as plantas e que as faz desabrochar em flores e frutos!

    O estupro é o verme peçonhento que as devora e destrói.

    Pobres, mas honradas, as desventuradas órfãs do asilo poderiam repousar a cabeça no colo amante do seu escolhido. Teriam a existência ditosa das mulheres honestas.

    Pobres e desvirginadas têm o futuro que lhes apontar a sua beleza, enquanto forem moças; têm diante de si uma carreira que leva ao vilipêndio e ao hospital.

    É possível que o ilustre advogado do réu Basílio venha afirmar que ele é um demente, um enfermo do que se denominou satiríase.

    Pois bem; os sátiros atiram-se aos indivíduos do seu sexo, às bestas, aos próprios cadáveres. Basílio que vá rasgar a sepultura da sua ex-amante Leonor, que se sacie nessas carnes putrefatas, que as descole nos transportes da sua bestialidade, nos estos de sua paixão animal.

    No mesmo jornal, no dia seguinte (7 de abril de 1897), ganha primeira página a fala de Paula Ney, que transcrevo tal como está, lamentando apenas que o discurso indireto utilizado pelo repórter prejudique um pouco — mas muito pouco — o estilo do autor:

    O Sr. Paula Ney (advogado da acusação particular) começa declarando que o seu papel na tribuna não é o dos que vêm discutir os textos sagrados da lei. Vem falar pelo coração. É o representante das lágrimas com que foi acolhida a desonrada Judith Martins. Fala em nome do amor, doce e terno, vaga múrmura, orlada de branca espuma osculando a límpida areia da plaga extensa, contra a água fétida do paul, baba que mancha, podridão que repugna e que enoja.

    Ele tem sabido ser o amigo dedicado dos pequenos, dos fracos, das crianças. Formou-se assim uma atmosfera de pureza e de candura, dentro da qual vive e respira, orgulhoso e feliz. Para subir ao seu Calvário, escolheu este madeiro leve — a infância. A ela o seu coração e o seu esforço, o seu braço, a sua inteligência e a sua vida.

    Reclama para o abutre cuja sombra naquele instante pesa sobre o tribunal, reclama para ele a mesma pena que lhe houver dado braço executor que fosse, inspirado só na lei ditada pelo seu espírito, unicamente inspirado pela sua razão.

    Judith Martins era, no firmamento desses, hoje míseros, que a adoravam e que a queriam, era como uma aurora doce e rósea, madrugada perfumosa de abril. Ave implume, pairou, porém, por sobre ela a asa negra, a asa lúgubre do corvo. E o luto que nas asas da ave de morte havia, toda a sua alma cândida cobriu.

    Ah! Pede ao tribunal que se detenha diante dessa misérrima criança, tocada da baba imunda do monstro; ontem rosa mal desabrochada ainda, hoje flor cujas pétalas o tufão da desgraça e do infortúnio colheu. É urgente, é imprescindível, é indeclinável que justiça se faça. Confia no venerando tribunal; desce da tribuna convencido de que justiça rigorosa e exata se há de fazer.

    Não muito diferente em sua retórica naturalista é o conto A coqueluche, assinado por Jacomino Define, que aparece na primeira página do Correio Paulistano de 9 de julho de 1897:

    Fora justamente nesse tempo de trabalho febril, de agitação de causas, que lhe punham na alma as emoções de uma parada comovedora, e uma vaga fermentação de nevrose, que o Dr. Eduardo Campos, dos dois filhos que tinha, Dulce e Mário — Dulce, a mais velha, de seis anos apenas, foi atacada de coqueluche.

    A princípio foi uma tosse comum, forte e seca, sem arrancos; mas foi logo recrudescendo, em acessos contínuos, demorados, cada vez mais intensa, manifestando-se clara a terrível tosse azul.

    Começaram logo as preocupações da família, os cuidados do médico, mas a tosse aumentava, furiosa.

    No estado de espírito em que estava Eduardo, com os nervos sobre-excitados, essa tosse preocupava-o estranhamente, produzia-lhe uma irritação aguda e aflitiva.

    Na rua pensava sempre na sua filhinha, desembaraçava-se rapidamente dos trabalhos, voltava logo, ansioso, perguntando como ia, dando os remédios, querendo estar sempre perto dela, nos acessos. Mas, apesar dos remédios e cuidados, a tosse intensava sempre, desesperando-o.

    Oh! nunca ele amara tanto a sua filhinha, nunca esse serzinho lhe representara o infinito de amor e de ternura que ele agora sentia, ao pensar, a pesar seu, que ela, tão franzina e delicada, com o seu arzinho de pomba doente, nunca resistiria a essa tosse raivosa.

    À noite era pior ainda; a tosse tornava-se mais violenta; não a deixava dormir meia hora, a cada passo prorrompendo furiosamente, como se quisesse espedaçar-lhe o peitinho magro; e ele que dormia no quarto vizinho com o seu filho Mário, para que a tosse o não contagiasse, passava as noites numa aflição intérmina, sem poder dormir, julgando ouvir tosse e levantando-se a todo o momento, correndo em sobressalto, com a morte n’alma, quando o acesso vinha e sentindo, quase fisicamente, a mesma ânsia, a mesma convulsão da tosse que sacudia a criança, até que a crise passava e ela se abandonava inerte sobre os travesseiros, respirando fracamente, como um passarinho que vai morrer.

    Nos intervalos, ficava na mesma angústia, estendendo o ouvido, ora desejando que a crise tardasse mais para a deixar descansar um pouco, ora querendo que viesse logo, para não vir mais forte e livrá-lo, a ele, dessa insuportável angústia da espera.

    Afinal, não pôde continuar mais assim, queria tê-la toda a noite perto de si, levou-a para outro quarto, e aí passava as noites velando-a, amparando-a, limpando-lhe os escarros, com um carinho maternal, intenso, e ungido de mágoa.

    A coqueluche chegara ao seu auge; a criança tornava-se quase irreconhecível: os olhos intumescidos, raiados de sangue, todo o rosto ingurgitado, e os acessos de uma fúria diabólica, prolongando-se muito, convulsionando-a desesperadamente, fazendo-lhe sair sangue pelos olhos, pela boca, num tal paroxismo, que o mal parecia ganhar vontade, querer furiosamente arrebentar-lhe os pulmões, espedaçar-lhe o peito, a garganta, tudo, expelindo a vida que se debatia dentro desse corpinho frágil.

    Eduardo agora sentia uma dor desesperada; os passeios pela manhã, os xaropes, a morfina, nada adiantava.

    Vinham-lhe cóleras impetuosas contra os médicos, a ciência, tudo.

    Ah! se ele pudesse dar-lhe um pouco da sua vida, um pouco do vigor do seu corpo!

    Mas não! Tinha que assistir, impotente, a essas crises que o matavam aos poucos e lhe matavam a filha. Agora, Dulce tinha um terror da tosse e, assim que estava para vir o ataque, agarrava-se a ele, pálida, com as mãozinhas franzinas, procurando amparo, implorando auxílio. E ele, com uma angústia constringente, ciliciante, sem nada poder fazer!

    Tinha ideias loucas de lhe entornar na boca um vidro inteiro de remédio para aplacar essa fera invisível que estava dentro dela, ou ímpetos de sair correndo com a filha nos braços, sempre, sempre, à toa, sem saber por que, para fazer alguma coisa, para se iludir, pensando que assim ela escaparia da morte.

    Ele já não tinha mais esperanças: Dulce cada vez mais fraca, não se querendo alimentar, o mal sempre agudo e terrível.

    Um desânimo de pedra caia-lhe n’alma; e quando os seus olhos se encontravam com os da esposa, diziam-se claramente o infinito desespero, a terrível certeza irremediável.

    Contudo, o sofrimento continuava implacável, dia a dia, mais lancinante; e Eduardo quase temia descobrir, no mais secreto da sua alma, o desejo da morte acabando com essa tortura atroz. Entanto do dia para a noite a tosse piorara ainda, o catarro, o sangue, os acessos, tudo tomava um caráter decisivo, aterrador.

    A coqueluche desencadeava-se em arrancos fortíssimos, subindo, subindo sempre, devorando os pulmões, arquejando em aspirações rasgantes, como o canto de galo, depois apressando-se cada vez mais, a ponto de não se ouvir mais a tosse, num esforço inútil de garganta convulsa, que não tem mais o que expelir, em ânsias, doidas de asfixia.

    Eduardo e a esposa, nessa noite, presos e mudos pelo mesmo terror, agitavam-se sem poder fazer nada, com as lágrimas nos olhos, pálidos, um suor frio na pele, agoniados como se fosse a sua própria agonia.

    Ah! se ele pudesse crer em Deus, esperar alguma salvação, algum milagre!

    Abria-se-lhe um horizonte misterioso, cheio de vaguez e de esperança.

    Quem sabia, tudo era possível, não era preciso desesperar ainda!

    Nesse momento tudo lhe parecia admissível, menos a morte da sua filhinha.

    Queria crer n’alguma providência, apegar-se a alguma esperança: fazia intimamente súplicas desesperadas, sem saber bem a quem, por uma necessidade instintiva de amparo, de socorro. Mas debalde o mal continuava a devorar a menina, e ele caía num desânimo sufocante, insuportável, e do qual saía para esperar, implorar ainda, com uma angústia nova.

    Os ataques redobravam com uma fúria perversa, como que voluntariamente destruidora, e cada um deles, parecia querer arrancar a vida da doentinha, de mistura com os borbotões de muco e sangue.

    Afinal veio um acesso medonho, mais forte do que todos, convulsionando-a toda, espedaçando-a por dentro, com um furor imenso, irresistível; ela foi enegrecendo, arquejando, sem fôlego, numa ânsia atroz: o pai, desvairado numa angústia suprema, queria conter essa existência que se extinguia, soprar-lhe o seu fôlego, a sua alma, mas ela tombou no leito, com a face negra, apoplética, os olhos desorbitados, aos roncos, a boca cheia de baba sangrenta, num rito medonho de agonia…

    Esse conto, sem qualquer mérito, mas evidenciando a diluição de traços estilísticos do naturalismo, ganha primeira página, lado a lado com outro texto, que mostra outra opção estética; na mesma página do Correio Paulistano na edição citada, uma peça típica da retórica finissecular, do melhor parnasianismo verde-amarelista, faz presença. É o

    HINO A CUBA:

    Virente flor embalsamada dos mares, ninho arminhoso das belezas equatoriais e das glórias da tradição, pérola mimosa e refulgente das Antilhas, salve, três vezes salve!

    Não pudeste sofrer por mais tempo, no livre seio da América, as dolorosas ignomínias do teu cativeiro político. Levantaste-te altaneira; e a dor transfigurou-te por tal forma, tanto retemperou-te a alma nas liças da coragem, o espetáculo de teu patriotismo é tão extraordinário, que já passou às legendas da liberdade.

    Teu heroísmo incomparável, a pouco e pouco vai-te levantando um monumento tão alto, que só o poderão defrontar as culminações dos Andes; tão épico, que só o poderão cantar as epopeias da história!

    É tremenda tua luta, mas é inabalável tua convicção de liberdade. A tirania do estrangeiro pretende combalir e derrocar, de canhoneio em canhoneio, de chacina em chacina, a grande obra de tua regeneração política, afogando em ondas de sangue, teu nobre anseio de independência.

    Debalde, porém; mais que o estardalhaço dos petardos retumba em tuas plagas selváticas e umbrosas, teu brado de liberdade; mais que as ondas de teu sangue, que ensopam as areias brancas de tuas praias e o solo fecundo de teus campos, correm e marulham as ondas de teu ideal, que fortalecem o valor de teus filhos e aumentam a nobreza de tua causa.

    Tudo te concita a ser livre, tudo te embala e afaga a aspiração de autonomia.

    O cenário da virgem natureza que te cerca, destacando, à tua retina, a imagem do sublime e do grandioso, igualmente destaca-te a imagem da liberdade. Aqui o mar desdobrando-se numa amplidão de esmeralda e de opala, livremente acairela tuas costas de beijos alvos de espuma, livremente te enlaça os flancos num abraço vaporoso e doce; ali, sereno e livre, o condor perlustra as clareiras do espaço, e, asas espalmas na imensidade, domina as avalanches dos altos cumes e quase roçaga pelo veludo das nuvens.

    Por toda parte a natureza, celebrando seus eternos festivais, como que celebra também a apoteose de tua regeneração; por toda parte a América, feliz e engrandecida, próspera e opulenta, recamada com as glórias de seus governos democráticos e livres, como que te aponta, nas avançadas do futuro, o roteiro luminoso da liberdade.

    E tu, nascida num berço livre e doirado, filha de uma raça altiva e galharda, soubeste responder dignamente à invocação das forças vivas da natureza e das sociedades americanas… Ergueste-te soberana como uma deusa, terrível como uma hecatombe; e, unida num só corpo, robustecida por uma só coragem, guiada por um só pensamento, surgiste heroicamente no campo de batalha, grande e inabalável como as montanhas de teu continente, bela e tremenda como as tempestades de teu litoral!

    Foi então que, no firmamento do teu destino, a estrela de tua reivindicação rebrilhou profundamente, ao tempo em que num arranco de leoa ferida, furtaste o colo de íncola indomável à manopla brutal da estranha dominação; o rumor surdo e trágico dos grilhões que arrastavas tornou-se um hino sonoro de guerra; as chagas deixadas pelas tuas cadeias tornaram-se astros, de tal maneira que teu nome, há pouco encoberto num hemisfério de sombras, que é o cativeiro, rutila agora num zodíaco de glórias, que é a liberdade.

    O ideal nobilíssimo de ser nação livre, em terra livre, superabundou desmarcadamente tuas forças, dando-te proporções de colosso; e, para mostrar ao estrangeiro o caminho da derrota, metamorfoseou-se o panorama de tua vida pacífica e laboriosa: tuas oficinas se fizeram arsenais, tuas cidades acampamentos, tuas aldeias redutos, tuas casas baluartes, teus campos trincheiras, teus cidadãos soldados, teus soldados heróis!

    Cada grupo de operários transmudou-se numa legião de combatentes; cada charrua tornou-se clava, cada campônio um guerreiro, cada batalha um triunfo, cada triunfo uma glória, cada glória uma imortalidade!

    A Europa, como a América, a América como o mundo inteiro, não sabem que mais admirar no prélio titânico que sustentas: se a nobreza de tua causa, se o valor de teus filhos.

    Avante! Tua bandeira há de girar vitoriosa no pandemônio sangrento das pugnas, porque a estrela da liberdade a ilumina e protege, porque o punho da justiça e do direito a sustenta formidavelmente.

    Avante! O futuro te espera para as festas da liberdade, a imortalidade te espera para as apoteoses da história.

    Artur Andrade

    Tais contrastes de estilo são curiosos, e ainda quando não aparecem na mesma página acentuam o caráter de mosaico que o jornal tem, pois os materiais literários vêm de várias fontes e estão em diferentes fases de evolução. É assim, por exemplo, que no Diário de Notícias, da Bahia (12 de agosto de 1897), aparece na primeira página um conto intitulado Cousas velhas e assinado por Carocho, que mostra um regionalismo ainda muito mal digerido e tateante, em que as palavras consideradas típicas aparecem grifadas. Personagens, falas, roupas, objetos, natureza, interiores, são claramente considerados exóticos, como neste trecho:

    O velho Barbosa, de barba hirsuta, melenas esguedelhadas, esquentando o frio da velhice às chamas do brasido crepitante no interior do tijupá, de quando em vez enfiava o olhar pela abertura da porta feita de ripas de pati, amarradas com imbé e de gonzos de couro de caititu, à espreita de meninos, vestidos de camisola de algodãozinho, pés descalços, barrigudos, mas bastante destros nas pontarias do bodoque, alvejando os pobres passarinhos que se aninhavam na ramaria das ingazeiras, na margem oposta de um córrego, de onde todos se proviam de água e de pescado.

    — Venham cá! São horas do girau. A mãe-da-lua já cantou uma vez!

    Compare-se esse trecho com outro do Conto de inverno, estampado na edição de 2 de junho de 1897, no mesmo Diário de Notícias da Bahia, em que a presença de bem-te-vis e bambus é insuficiente para camuflar o estilo parnasiano europeizante, que vai até o galicismo desnecessário — porém quão elegante:

    Mordida dum vivíssimo prurido de folia, Athalia vai lavar os pulmões à beira-mar.

    Quinze anos, vestido claro, delicioso, de dia de sol, cabelo desnastrado.

    No coração livre cantam-lhe vagas esperanças.

    Temulenta da orgia casta da luz, aroma e chilreio, amparando-se com ambas as mãos nos rugosos caules de dicotiledôneos gigânteos, suspendendo-se nas lianas, estalactites das florestas, para salvar moitas de urticáceas, rasgando-se nos acúleos das roseiras bravas, muitas vezes desviada da trilha que comunica com a praia, mas sempre plena de alacridade, Athalia vinga, petulante, o despenhado da encosta.

    Tangida pela celeridade do movimento, chega a moça ao antemural de bambus, em cujas plumas tripudia um bem-te-vi, e espreita por entre os nodosos colmos.

    Deserta a praia, ferida pela reverberação do sol em caminho do zênite.

    Ondas espumantes, de indomáveis, espalmam-se na curva forte da angra, rolando uns sobre os outros seixos escuros e polidos.

    E, perdida na soledade dos alcantis hiulcos, taciturna e triste, uma garça alva como a crista espumarenta das vagas […]⁹.

    Esta joia contém até mesmo uma palavra que passou décadas aguardando sua recuperação por Guimarães Rosa, num dos prefácios de Tutameia, intitulado Nós, os temulentos — temulento significa, apenas, bêbado.

    À mesma classe de gosto duvidoso pertence este soneto publicado na seção Literatura do Diário da Bahia, de 15 de junho de 1897, sem maiores indicações de proveniência, apenas trazendo ao pé o nome do autor:

    A VINGANÇA DA PORTA

    Era um hábito antigo que ele tinha;

    Entrar dando com a porta nos batentes.

    Que te fez esta porta? A mulher vinha

    E interrogava… Ele, cerrando os dentes:

    Nada! Traze o jantar. Mas à noitinha

    Calmava-se. Feliz, os inocentes

    Olhos revê da filha, e a cabecinha

    Lhe afaga, a rir, com ambas as mãos trementes.

    Uma vez, ao tornar à casa, quando

    Erguia a aldraba, o coração lhe fala:

    Entra mais devagar… Pára, hesitando…

    Nisto nos gonzos range a velha porta,

    Ri-se, escancara-se… E ele vê na sala

    A mulher como douda e a filha morta!

    Alberto de Oliveira

    .......................................................................

    É no quadro desse mosaico desordenado e policromo do jornal brasileiro do ano de 1897 que vai entrar, fermentando a desordem e carregando nas cores, a representação escrita e imediata, em cima do fato, da Guerra de Canudos.

    1

    Vianna

    , Hélio. Contribuição à história da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Instituto Nacional do Livro, 1945.

    2

    Fonseca

    , Gondim da. Biografia do jornalismo carioca (1808-1908). Rio de Janeiro: Quaresma Editora, 1941.

    3

    Carvalho

    , Alfredo de. A imprensa baiana de 1811 a 1899. Revista do Instituto Histórico e Geográfico da Bahia, 6 (21-2), ano VI.

    4

    Cunha

    , Euclides da. Os sertões. 27. ed. Rio de Janeiro: Livraria Francisco Alves, 1968, p. 273;

    Bello

    , José Maria. História da república. 3. ed. São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1956, p. 202;

    Sodré

    , Nelson Werneck. A história da imprensa no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, p. 308.

    5

    Weill

    , Georges. El diario historia y función de la prensa periódica. México: Fondo de Cultura, 1941.

    6

    Carone

    , Edgard, em A República velha (Instituições e Classes Sociais). São Paulo: Difusão Europeia do Livro, 1970, p.12, dá, para o ano de 1900, os seguintes dados: Rio — 691.565 habitantes; São Paulo — 239.820 habitantes; Salvador — 205.813 habitantes.

    7 Sodré, 1966, especialmente A Imprensa do Império e A Grande Imprensa.

    8

    Costa

    , João Cruz. Contribuição à história das ideias no Brasil. 2. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1967, especialmente segunda e terceira partes.

    9 Infelizmente, na coleção consultada, o fragmento da página em que se encontra esse texto termina aí, sem que se possa saber nem o prosseguimento nem o autor.

    Capítulo II

    A representação galhofeira

    Por sinistro que pareça, a Guerra de Canudos foi motivo para a produção de farta cópia de material jornalístico no estilo da galhofa.

    Que foi, imediatamente, pretexto para sátira política, é evidente. Seja como menção de passagem, seja como tema central de certos textos, a representação satírica da guerra — de episódios ou personagens dela, ou ainda de incidentes a ela ligados indiretamente —, além de abundante, é extremamente reveladora de algumas tendências de manipulação da opinião.

    Não nos esqueçamos de que então o país vivia com intensidade o processo da consolidação nacional. Afora todo o esforço unificador do Império, ainda há pouco a novíssima República enfrentara, e reprimira a ferro e fogo, pelo menos duas grandes tentativas de rebelião. Foram elas a Revolução Federalista no Rio Grande do Sul que, começando em 1893, durara pouco mais de dois anos, tendo-se iniciado durante o governo Floriano, mas estendendo-se até o governo Prudente de Morais; e a Revolta da Armada, sob as ordens de Custódio de Melo, também a partir de 1893.

    Experiências recentes mostravam que a nação atravessava uma época agitada, em que se repetiam os atentados políticos, eram frequentes os ensaios rebeldes, abortados ou não, de grupos variados, ao que se deve acrescentar o fantasma assustador da possibilidade de uma restauração monárquica.

    A derrota, surpreendente e escandalosa, da Expedição Moreira César, que nada mais era — embora o fosse em ponto maior — do que uma das muitas que praticamente a cada dia partiam para todos os cantos do país a fim de extinguir qualquer suposta ameaça à ordem constituída, foi motivo para que o fantasma viesse à tona e a insegurança do jovem regime da ainda mal unificada nação se manifestasse. Dentre as muitas missas e cerimônias religiosas que aparecem anunciadas nos jornais pelas almas dos soldados mortos nessa expedição, seleciono esta que mostra bem tal fantasma, publicada na página de anúncios da edição de 3 de abril de 1897 da Gazeta de Notícias, do Rio:

    O partido republicano autonomista manda celebrar, às 10 horas de hoje, na matriz desta cidade, uma missa com Libera-me, pelo repouso eterno dos heroicos defensores da República, vítimas dos assalariados monarquistas; para esse ato convida todos os que sabem prezar o amor da Pátria.

    A assimilação é imediatamente feita, do mesmo modo, entre os revoltosos maragatos¹ do Rio Grande do Sul, há pouco pacificado, e os novos inimigos. A 28 de julho de 1897, O País, do Rio, publica esta quadrinha, assinada por Gavroche², que põe em circulação uma palavra que terá longa vida e grande êxito:

    MARAGUNÇO

    Como são termos sinônimos

    O maragato e o jagunço,

    Reúnam-se os dois vocábulos

    E diga-se maragunço.

    Ainda no mesmo mês, começam a surgir na Folha da Tarde, do Rio, uns versinhos políticos (os primeiros saem na edição do dia 30) assinados por Maragunço, nos quais o substantivo comum acima proposto passa já a ser pseudônimo. E data de 1897 o título de um novo jornal O Maragunço, que se encontra nas listas levantadas por Gondim da Fonseca³.

    O recrutamento forçado para a nova e grande expedição que se prepara torna-se notícia corrente, na medida dos abusos que pratica contra a liberdade individual; o tom satírico que aparece na matéria publicada

    pelo República, do Rio, na edição de 18 de julho de 1897, já é dado por seu título construído em paradoxo: Presos para voluntários. Versos zombeteiros surgem, como estes, que vêm à luz na Folha da Tarde, do Rio, a 17 de julho de 1897, na primeira página, assinados por Arco-Íris:

    Eu ando desconfiado,

    Olhar baixo, lábios mudos,

    Com medo de ser pegado

    Para o açougue de Canudos!

    Na mesma edição do mesmo jornal são estampados estes outros, assinados por 30 réis, em que o protesto é mais expresso e melhor articulado. Além de serem dirigidos nominalmente àquele que seria o Ministro da Guerra durante a fase final da campanha, referem-se à recente revolta dos alunos da Escola Militar da Praia Vermelha e à dura e pronta maneira como ela foi reprimida; ser enviado para lutar em Canudos figurou entre os castigos impostos:

    TRIOLET

    Ao Sr. General Bittencourt,

    pelo bem que fez à sociedade,

    confiando às balas dos jagunços

    os desordeiros da Escola de Sargentos.

    É isto. Ou a infância aprende

    Ou vai morrer em Canudos.

    A MORAL já nada rende.

    É isto. Ou a infância aprende

    Ou cala tudo o que ofende

    Prisões, varadas, cascudos…

    É isto. Ou a infância aprende

    Ou vai morrer em Canudos.

    O melhor texto satírico que encontrei sobre as condições em que se fazia o recrutamento para a quarta expedição contra Canudos é uma pequena peça, publicada integralmente no rodapé da primeira página do jornal A Bahia, de Salvador, datado de 12 de setembro de 1897. Nessa peça ocorre uma complicação notável no vocábulo maragunço, previamente referido, que agora aparece como nome de uma personagem, Maragabirigunço, entrando na composição da palavra mais um dissidente político, o biriba⁴, afora os anteriores maragato e jagunço. Maragabirigunço, em sua única intervenção no drama, levanta-se como uma espécie de espantalho que, longe de ser um inconformista, é, ao contrário, o representante do regime vigente que esmaga toda oposição. Ele é o bicho-papão que devora indiferentemente maragatos, biribas, jagunços e desprotegidos da sorte, através do recrutamento forçado.

    A alta qualidade dramática do texto autoriza algum exagero na opinião de que ele pode ser filiado a uma linha evolutiva da dramaturgia brasileira, aquela à qual pertencem Qorpo-Santo, Oswald de Andrade e em parte Plínio Marcos. O impacto da irreverência e da verve, a movimentação cênica paroxística, os quiproquós e jogos verbais, as dramatis personae falando em nome de grupos sociais, dão a um tempo a filiação da peça e sua encenável modernidade.

    A pecinha se passa na Baía de Guanabara, onde encalha a barca do trajeto Rio — Niterói e um rebocador se esforça por desencalhá-la; nesse entretempo, os passageiros dão seus palpites sobre o incidente. Presentes no cenário, os restos do navio Sete de Setembro, lembrança da Revolta da Armada, que tivera seus principais episódios naquela mesma baía. A personagem central é o Popular, que apanha de todos os lados e termina recrutado à força para lutar em Canudos; outra, que com ele dialoga, é o Marinheiro, admirador de Custódio de Melo. Por causa deste último, os dois se empenham numa discussão, que faz o Marinheiro dar ao Popular o epíteto pejorativo de perrefe (alusão ao Partido Republicano Federal, então com maioria no Congresso) e receber de volta o de biriba. Nas cenas coletivas, os passageiros da barca se expressam a respeito do encalhe e desencalhe com referências aos assuntos do momento — a dívida flutuante, os cortes orçamentários, o câmbio sem estabilidade, a política de avanços e recuos do Presidente Prudente de Morais; são todos discordes, só concordam finalmente em depor o comandante da barca e o mestre-arrais do rebocador. Apenas o Popular está, desde o começo, preocupado com a Guerra de Canudos e com medo de ser recrutado; e, de fato, o Maragabirigunço agarra-o e ele para lá vai, sempre protestando.

    O texto é o que segue:

    CANUDOS

    I

    (Cais do Rio de Janeiro. À direita, a ponte das barcas de Niterói.

    Ao fundo veem-se as ruínas do couraçado Sete de Setembro,

    encalhado durante a revolta)

    Popular

    — É um zunzum que ensurdece,

    Um vaivém que nos põe mudos,

    Desde que o dia amanhece

    Até que acaba: — Canudos!

    Batalhões, balas e peças,

    Lanças, obuzes, escudos,

    Moções, discursos, promessas,

    Para arrasarem Canudos.

    O câmbio todo se agacha;

    Sobe o preço: dois testudos!

    Logo uma casa se racha

    Como as casas de Canudos.

    Correspondências que abalam,

    Repórteres mais linguarudos

    Que a tal ave de que falam

    que falava de Canudos⁵.

    (Passando os olhos por um jornal que compra a um garoto)

    — Se qualquer jornal esmiunço

    Em tipos pantafaçudos,

    Só isto: — jegues⁶, jagunços,

    Canets, caatingas, Canudos…

    (Ouvindo o apito na barca de Niterói)

    — Que ideia! Numa me encasco,

    Vou pra terra dos Cascudos…

    Se mos derem também casco,

    Como se casca em Canudos.

    (Entrando na barca)

    — Mas… ai! que vejo! Quem arca

    Com estes tempos bicudos?

    Até nos bancos da barca…

    Um passageiro

    — São salva-vidas…

    Popular

    — Canudos!

    O passageiro

    — É para se houver naufrágio

    Sem perder tempo em estudos

    Todos…

    Popular

    — Todos?! (à parte) — Que presságio!

    O passageiro

    — Se agarrarem…

    Popular (motejando)

    — Nos Canudos?…

    II

    (A barca encalhada na ponte de Niterói)

    Mestre

    — Toca atrás!

    Coro de rapazes

    — Toca adiante!

    Ensemble

    — Toca adiante! Toca atrás!

    Passageiro economista

    — Sem sair da flutuante….

    Todos os passageiros

    Seu arrais!

    Mestre

    — Toca atrás!

    Coro de rapazes

    — Toca adiante!

    Ensemble

    — Toca adiante! Toca atrás!

    Passageiro empregado público

    (ameaçado de corte)

    — A maré está de vazante…

    Todos os passageiros

    — Para o arrais.

    Mestre

    — Toca atrás!

    Coro de rapazes

    — Toca adiante!

    Ensemble

    — Toca adiante! Toca atrás!

    Passageiro negociante

    — Tal qual o câmbio oscilante.

    Todos os passageiros

    — Sem arrais!

    Mestre

    — Toca atrás!

    Coro de rapazes

    — Toca adiante!

    Ensemble

    — Toca adiante! Toca atrás!

    Passageiro jacobino

    — Assim faz mestre prudante.

    Todos os passageiros

    — Oh! que arrais!

    Mestre

    — Toca atrás!

    Coro de rapazes

    — Toca adiante!

    Ensemble

    — Toca adiante! Toca atrás!

    Passageiro politiqueiro

    — Deponha-se o comandante!

    Todos os passageiros

    — Ao arrais!

    Mestre

    — Toca atrás!

    Coro de rapazes

    — Toca adiante!

    Ensemble

    — Nem pra diante! Nem pra trás!

    Popular

    — E os canudos fumegantes…

    Todos os passageiros

    — Fora o arrais!

    III

    (Uma barca aproxima para dar reboque)

    Passageiro monarquista

    — Depois de barulho tanto

    Apre! enfim chega o diabo!

    Passageiro adesista

    — Cada um para seu canto!

    Vozes

    — Livra que lá vem o cabo!

    (Atiram o cabo de reboque que desastradamente laça o Popular que cai de ventas)

    Popular (erguendo-se estonteado, para quem atirou o cabo)

    — Arre! Patife! Se o pego!

    Marinheiro (aparando no ar o cabo que laça na argola da popa)

    — Eu peguei!

    Popular (para o Marinheiro)

    — Ainda moteja!

    Marinheiro

    — Desculpe!

    Popular (indignado)

    — Além de asno, cego…

    Marinheiro

    — Nó cego, não!

    Popular (mais indignado)

    — Quê?

    Marinheiro

    (apontando para a laçada)

    — Pois veja!

    (Altercam, atracam-se, caem no mar)

    IV

    Popular (bracejando na água)

    — Ai!

    Um passageiro (arremessando-lhe um banco salva-vidas, em cheio na cabeça)

    — Toma!

    Marinheiro (nadando para o largo, ao Popular)

    — Livra!

    Outro passageiro (idem como o primeiro)

    — Vai banco!

    Popular

    — Piedade!

    Outro passageiro (idem como o segundo)

    — Foi mesmo no alvo!

    Uma passageira (a desmaiar, para o Popular)

    — Mergulhe!

    Mestre

    — Mais um arranco!

    Popular (ensanguentado, já fora de alcance)

    — Graças!

    Um passageiro inexperiente

    — Vai morrer!

    Um sobrevivente da barca Terceira

    — ’Stá salvo.

    V

    (Ruínas do Sete de Setembro; os náufragos, a nado, aproximam-se)

    Popular

    — Quase que um banco me achata.

    Marinheiro

    — Cala-te! Se ainda nos bispam E lançam mais uma lata…

    Popular

    — Inda as carnes se me crispam…

    (Trepam nas ruínas)

    Popular (apontando-as)

    — Ao menos nisto o Custódio Brilhou…

    Marinheiro (formalizando-se)

    — Como sempre brilha!

    Popular

    — Já não lhe tenho tanto ódio…

    Marinheiro (mais formalizado)

    — Fez muito!

    Popular (com ironia)

    — Fez esta ilha…

    Marinheiro (com o queixo gotejante)

    — Monte!

    Popular (idem)

    — Pois então não foi o chefe da revolta?!

    Marinheiro (despindo-se)

    — Estive a bordo!

    Popular (idem)

    — Pois tanto pior!

    Marinheiro (em fraldas)

    — Perrefe!

    Popular (idem)

    — Biriba!

    Marinheiro (avançando nu)

    — Sempre!

    Popular (nu, recuando)

    — Concordo!

    VI

    (Os dois acocorados, sob umas pranchas, meio carbonizadas)

    Popular (espreitando)

    — Oh! que demora infinita!

    Não vem viva alma!

    Marinheiro (idem)

    — Um navio

    Enfim um vejo! Vá, grita!

    Popular

    — Socorro!

    Marinheiro (acenando com a ceroula)

    — Já sinto frio!

    Eles nos viram, decerto…

    Popular (escondendo-se)

    — Vê que os da barca não vissem!

    Marinheiro (debruçando-se)

    — Um escaler já vem perto!

    Popular (escondendo-se mais)

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