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Outras histórias: Ensaios em História Social
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Outras histórias: Ensaios em História Social
E-book288 páginas4 horas

Outras histórias: Ensaios em História Social

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Sobre este e-book

Essa coletânea pretende comemorar a longevidade do Programa de Pós-Graduação em História Social da UFRJ, que em 2012 completou 30 anos de existência, e destacar seu papel na constante renovação e diversificação dos campos temáticos da pesquisa em História Social. Os artigos aqui apresentados abarcam uma grande diversidade de temas. Eles contemplam diferentes períodos, bem como o uso diversificado de fontes, indo desde o estudo de imagens da Antiguidade até depoimentos de história oral. O elemento comum entre eles é que expressam de alguma forma balanços sobre as trajetórias de pesquisa dos autores.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de jan. de 2014
ISBN9788564116399
Outras histórias: Ensaios em História Social

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    Outras histórias - Andréa Casa Nova Maia

    2008.

    Os espaços funerários, cotidiano e a política na cidade grega antiga: um estudo possível?

    Marta Mega de Andrade¹

    Há cerca de dez anos, venho desenvolvendo uma pesquisa que busca explorar os aspectos públicos e políticos envolvidos nos elogios femininos em contextos funerários na cidade grega antiga, tendo como foco os espaços de sepultamento do território da Ática no período clássico (sécs. VI a IV a.C.). Como premissa, trabalhava com a ideia de que tais contextos, diferentemente do que imaginamos a partir de nossa experiência moderna do cemitério e da morte, seriam, de fato, lugares importantes do ponto de vista das interações cotidianas entre os habitantes da cidade, não apenas por conta de sua localização pública ao longo de vias de acesso ao espaço urbano, mas também — e não a despeito — pelo fato de tratar-se de espaços constituídos pelos ritos funerários, com toda a margem que esses ritos podiam dar tanto a manifestações de status de famílias abastadas como a expressões da comunidade política. Necrópoles, portanto, deveriam ser estudadas como parte de um sistema de alocações para atividades públicas de exposição e reconhecimento, tanto quanto a ágora ou a acrópole, pensando aqui diretamente no caso ateniense.

    Acredito que tal imagem não suscite muitas dificuldades ou dúvidas. A questão é que, talvez por preconcepções nossas ou por questões de epistemologia das disciplinas que tratam do problema, a ideia de mobilizar o espaço funerário num sistema de exposição pública e de requisições coletivas para compreender a política nas comunidades políades da Grécia clássica não é de todo explorada per se nos estudos sobre ou a partir do tema mais amplo da morte. Talvez isso se deva à fragmentação do objeto: o sítio arqueológico, como fonte de documentação material, pode ser perfeitamente estudado em si ou em relação a contextos culturais como o dos ritos funerários, assim como contextos sociais em que se enfoque as famílias, em estudos de prosopografia, etc; os objetos ligados ao rito, por seu turno, sendo por exemplo as estelas funerárias, ganham um outro contexto, duplo: epigrafia, para epigrafistas e história literária; iconografia para a história da arte e da escultura funeráriaou religiosa greco-romana. Então, nosso problema será o de passar da constatação inicial — os espaços utilizados para os ritos funerários finais, para o sepultamento e a exposição de um memorial são funcionalmente públicos — para a aplicação dessa constatação em estudos que tenham em vista implicações dessa funcionalidade pública em pedaços cotidianos da vida das comunidades. Pedaços cotidianos, como por exemplo aqueles em que podemos inserir os discursos elogiosos às mulheres.

    E o cotidiano, de que se trata? Fico com a noção de Michel de Certeau², que certamente não o define, mas busca nele um canteiro onde possa por mãos à obra a partir de seu desejo de voltar aos rés-do-chão, à vida comum das pessoas. Daí a percepção do fragmentário, de pedaços que movimentam uma poética antes de cristalizarem conceitos — como religioso ou rito— de coisas que são ditas e feitas e, apesar de parecerem perdidas no efêmero, de fato são as forças, as linhas que constroem, destroem, ressignificam nos relacionamentos humanos. Eu costumo brincar com isso, dizendo, por exemplo, que ninguém vê a igreja católica andando na rua; mas eu posso interagir com um padre, assim como posso entrar num templo; nenhum desses encontros, contudo, poderia ser dimensionado àquela totalidade que denomino igreja católica. O que não quer dizer que tal totalidade ou uma instituição ou uma função não incidam naquilo que chamei de vida comum das pessoas. Quer dizer apenas que, se mudarmos o foco, como faz Ginzburg em O Queijo e os Vermes,³ dando voz a Menochio e seus inquisidores, talvez sejamos capazes de escrever histórias menos monumentais e mais vivas (onde haja vida também nas estratégias da instituição).

    Nessa vida cotidiana, os espaços funerários são aqueles em que as pessoas sepultavam seus mortos ou seus restos mortais, ocupando-se, aí, muitas vezes mas não sempre, com a disposição de sêmata comemorativos desses mortos e sinalizadores de um recinto familiar.⁴ Nesse sentido, a escolha do local de sepultamento tinha como principal diretriz as necessidades do rito, mas não como espécie de piedade religiosa individual ou coletiva; necessidades de visibilidade da performance ritual, da qual o taphos, o conjunto funerário vinculado a um grupo familiar, era sinal distintivo.⁵

    O curioso é que esse sinal distintivo só poderia fazer sentido diante da promessa de uma visibilidade cotidiana. Por isso, o elemento mais recorrente dentre aqueles que podem ser arrolados como responsáveis pela escolha do sítio de enterramento — e falo aqui de Atenas e da Ática, apenas — parece ter sido a contiguidade, mais do que isso, o alinhamento com as vias de passagem mais utilizadas pelos habitantes e pelos forasteiros no território da Ática. Dito de outro modo, não era preciso desviar do caminho entre a asty e o Pireu para ver os monumentos das famílias, embora fosse necessário um pequeno desvio para ler os possíveis epitáfios que algumas estelas traziam inscritos.

    Em se tratando das necrópoles contíguas à asty ateniense, essa observação pode ser feita para as áreas em redor de todas as portas de saída. A principal dessas necrópoles, situada no kerameikos (NW), foi utilizada ao longo de pelo menos dois milênios, sendo que nos séculos V e IV a.C, existia ali um banho público e, além de se tratar da via de circulação mais importante entre Atenas e seus portos, periodicamente os festivais religiosos e outras ocasiões de encontro público atraíam para a área centenas de espectadores; penso aí em ocasiões como a dos funerais públicos aos mortos em guerra, para o qual o testemunho de Tucídides revela a presença de diversos grupos sociais distintos, desde mulheres a estrangeiros; as inscrições revelam, também, que metecos e escravos eram homenageados nessas ocasiões junto com os cidadãos; procissões cívicas como a das Panatenéias e festivais religiosos que envolviam o deslocamento em direção a Eleusis também aconteciam, mesmo que de passagem, por essas vias de circulação por entre as quais a necrópole se aglutinava. Festas, eventos cívicos, circulação cotidiana são elementos importantes, portanto, a considerar quando se coloca a questão dos usos do espaço.

    Uma necrópole ateniense como esta não é, então, um lugar estritamente demarcado para o sepultamento dos mortos da comunidade, embora a tendência a aglutinação dos sepultamentos nas imediações da asty tenha sido marcante pelo menos a partir do séc. VIII a.C. em diante; mas isto não significa que todos os mortos eram dispostos (sepultados, cremados ou simplesmente lembrados) forçosamente nesses espaços.⁸ A aglutinação dos sêmata, dos taphoi, contribuía para gerar a expectativa de uma consagração daquele solo, mas não no sentido em que compreendemos hoje o campo santo e sua especificidade. A consagração aos deuses infernais e forças ctônias trazia para a coletividade uma espécie de escudo, um refúgio contra forças inimigas ou hostis; além de que as sepulturas ancestrais também contribuíam para fixar a imagem de uma comunidade arraigada em seu território, ligada ao solo natal, comunidade-pátria. Mas o espaço funerário nunca foi, apesar disso, reservado aos cidadãos ou famílias cidadãs. Assim como nunca foi obrigatório — e por isso mesmo, não será para nós, estudiosos da cidade antiga, gerador de dados demográficos confiáveis.⁹

    Deixando de lado questões pertinentes sobre quem tinha acesso a esses espaços e por que — como se comprava um peribolos, quem geria a ocupação; por que alguns membros da família recebiam estelas e outros não, etc — fato é que a presença de imagens femininas e de epigramas dedicados a mulheres na ática entre os séculos V e IV a.C. constitui-se como um fenômeno digno de nota.¹⁰ Mas é muito raro que possamos observar a amplitude do fenômeno diretamente nos sítios funerários, já que a maioria das estelas e epigramas encontra-se, hoje, nos recintos de museus ou mesmo em coleções privadas. Circulando pela necrópole do Kerameikos, podemos apenas supor que tais estelas estivessem espalhadas quer por periboloi quer por túmulos individuais; ainda faltam estudos (talvez porque o problema não possa mais ter solução) sobre a localização espacial das estelas dedicadas a mulheres e sua relação ou não com o status das mesmas. Em princípio, o que vemos in loco não nos sugere que essas estelas estivessem restritas a pontos específicos ou a recintos familiares. Assim sendo, em termos da visualidade proposta pelos espaços funerários, imagens femininas são uma constante, e epigramas escritos para mulheres, embora nunca tenham sido uma maioria, estavam presentes e podiam ser lidos com as mesmas dificuldades relativas a dedicações masculinas. Sem distinção de classe, sexo ou estatuto, para ler as dedicações funerárias nas estelas o provável leitor deveria parar, circular por entre as mesmas e até mesmo entrar nos recintos e aproximar-se; além, é claro, de saber ler. Grande parte das estelas dedicadas pressupõe essa atitude do passante anônimo; mas, de fato, a não ser que possamos comprovar que a leitura de estelas era um hábito, espécie de passatempo dos transeuntes, fica difícil imaginar como esse desejo de exposição e leitura expressado pelo memorial poderia efetivamente corresponder à prática.

    Talvez um indício de que essa prática existia possa ser encontrado em um outro contexto. Monumentos inscritos não são privilégio das necrópoles. O hábito de grafitar ou escrever na pedra coisas importantes — versos, decretos, dedicações votivas, etc — caracteriza diversas sociedades antigas da bacia do Mediterrâneo. De fato, a sua utilização nas necrópoles demonstra haver uma relação entre a matéria — guardar para a posteridade, monumentalizar um texto dedicado a um deus, etc — e o espaço cuja visibilidade (acesso público em geral) é garantida.¹¹ Dedicações deixadas do lado de fora dos templos; estátuas inscritas deixadas na Acrópole; decretos e textos gravados na pedra e dispostos na ágora; horoi hipotecários e/ou delimitadores de fronteiras entre propriedades, todos são elementos de uma cultura não formalmente letrada, para a qual as inscrições e imagens na pedra podiam suscitar, através da inferência, a expectativa de uma importância pública, do interesse público da matéria vinculada ao sêma.¹² Podia-se ler as inscrições, mas na maioria das vezes, acredito que elas funcionassem por emulação, sinalizando importância, independentemente da compreensão letrada dos epigramas. Dessa maneira, ler ou não ler, não representam o cerne da prática. Reconhecer um documento no monumento, talvez isto represente melhor o que um transeunte qualquer — letrado ou não — fazia com o conjunto das estelas por que passava.

    Ao afirmar isso, não deixo de concordar com aqueles autores que defendem o caráter cívico dos memoriais familiares do séc IV a.C. S. Humphreys, por exemplo, mostra como os monumentos surgidos após 420 a.C. apropriam-se do estilo dos monumentos e inscrições públicas; com isso, ela sugere que o modelo cívico também se re-produz através desses monumentos privados, alguns deles sequer dedicados para ou por cidadãos.¹³ O que quer que tenha determinado esse movimento em direção ao modelo cívico na esfera privada, o fato vem se somar aos argumentos em defesa do caráter público, coletivo e dirigido a coletividade, das necrópoles. Penso aqui na definição de A. Zaccaria-Ruggiu: o espaço é ‘público’ em duplo sentido: enquanto nele se manifesta aquilo que é comum, e também enquanto a ele é confiado o papel (social e político) daquilo que deve ‘tornar comum’, isto é exprimir e respaldar os vínculos comunitários¹⁴

    A questão seria como o espaço funerário poderia vetorizar práticas no sentido de tornar comum. Os novos símbolos cívicos da família constituem nesse âmbito um signo, um sintoma e não propriamente um fator auto-explicativo. Eles nos mostram que o espaço funerário era lugar importante para um discurso à coletividade, mas não nos sugerem uma explicação. Isto porque qualquer tentativa de explicar essa prática que se desenrola tendo o espaço como sua instância depende de uma abordagem do cotidiano e não tanto da historiografia da arte ou das crenças religiosas. Uma abordagem do cotidiano pode nos conduzir a uma visão mais dinâmica do que podemos denominar a transumância da política na polis ateniense clássica, no sentido de pluralizar os lugares da atividade propriamente política na cidade grega antiga.¹⁵

    A transumância da política na polis ateniense clássica

    Ao longo de muitos anos, perpassando os séculos XIX e XX, os ocidentais europeus se acostumaram a refletir sobre a polis como sendo uma entidade política acima de tudo. Os autores não desconheciam a cidade como sociedade, mas pensavam na vida política como ordenadora dessa sociedade, sem que se impusesse uma descontinuidade entre a vida pública, a vida política e a comunidade.

    A polis construiu-se, então, como cidade-estado. Isso teve conseqüências muito amplas, que extrapolaram os estudos clássicos e contaminaram as percepções de senso comum sobre esse momento, que seria um momento propriamente europeu, um início de história em que a sociedade, organizada politicamente e constituída em torno de uma forma de militância (para usar a comparação de Veyne em um artigo sobre As Leis de Platão).¹⁶ A instituição política, que compreenderemos aqui como os dispositivos de governança no sentido de administrar, legislar, manter relações de amizade com outras poleis ou ir à guerra, acabou por se confundir com a sociedade políade e os membros dessa sociedade, sub-repticiamente, passaram a ser os cidadãos.

    Na virada do século XXI, outras questões que perturbam os historiadores levam-nos à exigência de um paradigma mais acurado, que nos proporcione uma visão melhor daquilo que os gregos antigos faziam quando faziam política e do que era a tal cidade-estado. Antes de tudo, e mesmo antes no sentido cronológico do termo, a polis era uma cidade, empiricamente constituída por espaços cuja articulação permanece obscura para nós que nos acostumamos a enxergar apenas um espaço cívico ou político, separado, no máximo, de um espaço privado ou domestico. Já lidei com essa questão anteriormente, por isso permitam-me citar um trecho do livro A Vida Comum: espaço, cotidiano e cidade na Atenas Clássica:

    Oîkos e Pólis, opostos, complementares, mediatizados, somente poderiam estruturar uma experiência do espaço social para aqueles que tinham o privilégio de circular entre a casa e a cidade — e estes eram os cidadãos e não quaisquer habitantes ou qualquer indivíduo, pois essa correlação só tinha sentido levando-se em conta as expectativas de ação política dos chefes de família. As esferas pública e privada só ganhavam pleno sentido, na literatura, acompanhadas da referência unívoca ao cidadão e homem livre, já que o público não era como a nossa concepção de estar em público e não concernia ao coletivo genérico dos habitantes, mas preferencialmente dizia respeito àquela comunidade de interesses da politeía em sua esfera de atuação política.¹⁷

    Vida política, cidade e cidadania: a preeminência do espaço cívico na nossa visão da polis precisava ser criticada e desconstruída, para que as tais novas perturbações, inquietações dos historiadores, pudessem ganhar corpo e objetivar-se no discurso historiográfico.

    Nesse movimento, não é possível mais colocar a problemática do espaço cívico sem partir da sua materialidade. Pois é nessa materialidade, na empiria do cotidiano e das práticas, que veremos os cidadãos sem o fato domingueiro,¹⁸ sem a pose sisuda do homem universal. Certamente, participar da governança fazia parte das práticas cotidianas desse cidadão, mas é não nos serve atualmente continuar a imaginar que o caráter hegemônico dessas práticas tinha como corolário a cegueira do cidadão com relação ao convívio, muito vasto diga-se de passagem, com diversas pessoas, grupos, etc, que não tinham acesso às atividades da política institucional: não podiam ser sorteados para cargos públicos nem apresentar-se aos tribunais sem um mediador; muitos tinham que pagar impostos para manter a liberdade pessoal; e outros eram membros da família, da oikías, e assim contavam para o espaço cívico sem participar do governo da polis. Então, do que se trata?

    Falamos de materialidade e realçamos nessa materialidade os encontros cotidianos entre os cidadãos e diversos outros grupos, para os quais essa cidadania tinha significados diferentes. As filhas e esposas de cidadãos, por exemplo, podiam ser consideradas cidadãs em Atenas, mas sem predomínio ou sendo akuron, como dizia Aristóteles na Política.¹⁹ Os estrangeiros que, apesar da definição jurídica de meteco constituíam um grupo muito heterogêneo, incluindo desde um comerciante fenício recém-chegado até um isotelos e um exímio orador como Lísias, nascido em Atenas. Escravos, mulheres estrangeiras, libertos, comerciantes, prostitutas, sofistas, diversos tipos de trabalhadores qualificados itinerantes, e por aí vai. Ora, o espaço cívico era também vivido, percorrido, representado por esses grupos multifacetados, que tinham lojas na ágora ou subiam à Acrópole por curiosidade... assistiam às apresentações teatrais e quando morriam, mandavam erigir frequentemente estelas similares aos monumentos públicos da cidade (ao menos no século IV a.C.).

    Por alguns fragmentos de comentários dos autores clássicos, aqui e ali, sabemos que esses muitos habitantes tinham interesse no modo como os cidadãos atuavam nas práticas de governança: mulheres que perguntavam sobre decisões tomadas em tribunais ou sobre votações da assembléia são mencionadas pelos oradores e pelo teatro de Aristófanes. Mas as inquietações contemporâneas vão além disso, vão além dessa questão do interesse dos não-cidadãos pelo espaço da política institucional. Porque temos lidado cada vez mais com uma noção de política e uma percepção de poder que ultrapassam o âmbito do estado, o âmbito em todo caso da sociedade política, no qual a teoria política clássica preferencialmente o observa. Vemos que a sociedade é perpassada por relações de poder que são constituintes, e por isso não nos é mesmo possível continuar a pensar na polis como comunidade de cidadãos e como estado, mas antes é preciso resgatar o que apagamos da visão mas que está lá: que a polis é uma cidade e que a comunidade política é aquela que estabelece relações mutuas dentro dessa cidade. E que, portanto, o convívio é primário para se compreender o que há de constituinte no poder, constituinte ou condição de possibilidade da existência e da hegemonia de um espaço político restrito aos cidadãos. A nova política diz respeito ao urbano, ao espaço e às interações entre grupos no espaço: relações de gênero, amizade, etc.

    Inspirado num pensador liberal como John Rawls, J. Ober propõe o resgate da noção de geopolis para dar conta dessas interações e do modo como constituem o campo político.²⁰ A geopolis complementa a político-polis ou a cidade- instituição, não como o lugar ou território que comportaria uma nação mas, mais precisamente, como geopolítica da cidade, ou o desdobramento do espaço político no espaço social. A perspectiva precisaria ser melhor aprofundada, mas tem a vantagem de proporcionar uma visão mais ampla das possibilidades da ação política no espaço da cidade. Retirando o acento no espaço cívico, libera, por exemplo, a agora para continuar desdobrando um papel antigo na articulação dos acertos, das clientelas, das opiniões capazes de transformar um voto ou produzir votos e perfis de atuação no campo institucional. Mesmo que a maioria dos agentes nesse espaço não pertença ao grupo dos cidadãos, basta um bom amigo ou um bom orador para que uma minoria de cidadãos atue em consonância com interesses bem mais difusos do que aqueles que concerniriam apenas aos cidadãos (homens livres, filhos de pai e mãe atenienses) ou às famílias de cidadãos.

    Um outro estudioso atualmente muito importante no campo dos estudos clássicos, Kostas Vlassopoulos, propõe uma segunda opção que confere certa definição aos espaços prováveis da política na tal geopolis. Trata-se dos free spaces, espaços livres.²¹ Neste estudo, Vlassopoulos considera a agora um espaço livre: seria como freqüentar um bar ou uma barbearia na qual um grupo opina, conversa e, eventualmente, parte para a ação política. Vemos a história dos protestos e das revoluções plena desses exemplos de redutos que funcionam como espaços livres, onde as pessoas circulam e fazem outras coisas, mas que são, potencialmente, lugares de subversão da ordem.

    Nem com a noção de geopolis, nem com a noção de espaços livres, conseguimos tranqüilizar totalmente a inquietação contemporânea quanto ao exercício político fora da esfera do estado e das instituições. Tanto Vlassopoulos como Ober estão preocupados em mostrar que outros atores participam da vida política ateniense, mesmo sem possuir credenciais do cidadão; em outras palavras, estão preocupados com tornar possível a tematização da dinâmica (cotidiana) da política como lugar de uma dialética entre polis e cidade. Mas a instituição permanece como lugar próprio da política.

    Mas o que é propriamente a política? Recorrer à literalidade da etimologia não nos ajudaria muito, pois ta politika pode significar tanto os assuntos, as coisas que concernem ao cidadão (definição que privilegiamos nos nossos dicionários) quanto, inseparavelmente desse sentido, os negócios da cidade, isto é, da comunidade política. O que para nós parece uma ambigüidade — juntar as certeiras instituições de tipo estatal com essa definição fluida de comunidade — é inerente à noção antiga, assim como polis, governança, lugar, comunidade, também são inseparáveis. Precisamos refletir sobre um conceito de política que não separe essas dimensões da cidade ao privilegiar o kratos, o predomínio do demos tal como encarnado nos procedimentos da governança.

    Talvez seja preciso dar lugar à heterotopia para compreender política de um modo diferente. A noção surge em uma conferência de Foucault, Des Espaces Autres (1967) e não é retomada depois pelo autor. Em princípio, trata-se de descrever espaços desviantes compreendidos como instrumentos comuns a

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