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Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana: (Inclui o prefácio de Wittgenstein)
Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana: (Inclui o prefácio de Wittgenstein)
Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana: (Inclui o prefácio de Wittgenstein)
E-book293 páginas3 horas

Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana: (Inclui o prefácio de Wittgenstein)

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Sobre este e-book

Em "Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana" encontramos o prefácio, inédito em língua portuguesa, do filósofo austríaco Wittgenstein para a sua segunda e última obra publicada em vida: Dicionário para escolas primárias, publicado em 1926. A obra de Wittgenstein tem sido fonte de inspiração para diversos campos do conhecimento, não tendo ficado restrita à área da filosofia. Suas reflexões sobre a linguagem e seu método terapêutico têm se mostrado uma potente ferramenta para se repensar as questões educacionais contemporâneas. Esta publicação é destinada a estudantes, pesquisadores, professores, profissionais e interessados pela multiplicidade de usos das palavras da linguagem educacional.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de jun. de 2020
ISBN9786599063411
Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana: (Inclui o prefácio de Wittgenstein)

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    Pré-visualização do livro

    Ensaios filosófico-educacionais de uma perspectiva wittgensteiniana - Cristiane Maria Cornelia Gottschalk

    final

    Apresentação

    Tenho imenso prazer de apresentar ao leitor esta coletânea de ensaios inspirados na filosofia de Wittgenstein (1889-1951), escritos ao longo dos últimos anos pelos integrantes do grupo de pesquisa Filosofia, Educação, Linguagem e Pragmática (Felp), sediado desde 2004 na Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo. Embora o filósofo austríaco seja mais conhecido como o maior representante da virada linguística ocorrida no início do século passado, e nunca tenha escrito sobre educação, suas reflexões sobre o aprendizado da língua materna e sua crítica à concepção referencial da linguagem, entre outros temas, têm se revelado extremamente esclarecedoras de questões fundamentais da filosofia da educação, desde as que remontam aos pré-socráticos até as mais contemporâneas.

    Não é por acaso que a filosofia de Wittgenstein tenha tanto a contribuir para o campo da educação. Após ter redigido sua primeira grande obra, Tractatus Logico-Philosophicus, publicada em 1920, Wittgenstein decide renunciar à filosofia e tornar-se professor de escola primária em regiões extremamente carentes de uma Áustria destruída pela Primeira Grande Guerra, em meio a uma reforma escolar liderada por Otto Glöckel. Ao longo desse período, há vários indícios de que a experiência docente do filósofo tenha contribuído para a retomada de sua atividade filosófica, e mais do que isto, para a mudança de seu pensamento. De fato, poucos anos depois reelabora suas teses sobre as relações entre linguagem, pensamento e mundo, que havia postulado no Tractatus. Convidado a ocupar um cargo na Universidade de Cambridge em 1929, seus novos escritos começam a circular divulgados inicialmente por alguns de seus alunos (a partir de anotações de aula), e após sua morte, a partir de seus diários (na forma de manuscritos e datiloscritos), que serão publicados gradualmente pelos seus herdeiros testamentários, revelando uma mudança bastante significativa em seu pensamento, a ponto de a comunidade filosófica passar a se referir a um segundo Wittgenstein. Nestes escritos configura-se uma nova concepção de linguagem, e novas ferramentas conceituais são criadas por Wittgenstein, como os conceitos de jogo de linguagem, semelhanças de família, formas de vida, seguir regras, entre outros, que irão revolucionar a filosofia contemporânea e influenciar enormemente vários outros campos do conhecimento.

    São muitos os fatores que podem ter contribuído para a nova guinada linguística na filosofia de Wittgenstein, ainda a serem mais explorados pelos historiadores da filosofia. Ao longo do período em que supostamente não estaria desenvolvendo nenhuma atividade filosófica stricto sensu (de 1920 a 1929), além de ter ministrado aulas para o ensino fundamental, ao retornar a Viena em 1926, nosso filósofo também se ocupou de outros afazeres, como, por exemplo, cuidar do jardim de um convento e, sob inspiração do movimento da Bauhaus, auxiliar seu amigo e arquiteto Engelmann a projetar e construir a casa de sua irmã Margareth Wittgenstein, chegando a cogitar se tornar também um arquiteto. Todas essas novas experiências de vida aparecem de algum modo em seus escritos após seu retorno à vida acadêmica, mas uma delas tem chamado a atenção de alguns comentadores da obra de Wittgenstein: ainda como professor de escola primária, tendo em vista alfabetizar seus alunos, Wittgenstein teve a ideia de elaborar manualmente um dicionário ortográfico com eles, e, a cada nova turma, este imenso trabalho era retomado, até que decidiu organizar uma versão final desse dicionário que veio a ser publicada em 1926. Como se verá nos dois primeiros textos desta coletânea, no prefácio que escreveu para esta segunda e última publicação em vida, encontramos reflexões de Wittgenstein que apontam para a mudança ocorrida posteriormente em sua concepção de linguagem, e que podem tê-lo levado a rever suas teses filosóficas mais fundamentais apresentadas na primeira fase de seu pensamento. Esta é uma das razões de termos incluído, nesta coletânea, a tradução para o português do prefácio que Wittgenstein redigiu a este dicionário, e que, pela primeira vez, está sendo publicado em nossa língua.

    Outra razão para publicar o prefácio de Wittgenstein, talvez ainda mais importante, foi constatar o seu esforço para encontrar critérios de seleção das palavras que iriam constar do dicionário, revelando algumas de suas inquietações que, a meu ver, não só o conduziram a uma radical transformação de sua concepção de linguagem, como também são um belo exemplo de educação como práxis, em que as dificuldades enfrentadas pelo professor não são previsíveis a priori, dependendo em boa parte de seu tirocínio e sua criatividade no contexto específico da sala de aula. Uma última razão, digamos, filosófico-educacional, é a de se chamar a atenção da comunidade acadêmica wittgensteiniana para o conteúdo desse prefácio, até hoje praticamente ignorado pelos comentadores da sua obra, como revelador de um período pré-intermediário¹ catalizador de sua reflexão filosófica posterior, instigada pela sua experiência docente.

    Assim, pelas razões acima, optamos por iniciar este livro com o prefácio de Wittgenstein ao seu dicionário ortográfico, acompanhado dos comentários de Paulo Oliveira, pesquisador da teoria da tradução, que, além de ter traduzido este texto de Wittgenstein, traz também uma reflexão em seu comentário introdutório ao prefácio do filósofo, na qual são considerados alguns elementos não apenas da filosofia posterior de Wittgenstein, mas também da discussão contemporânea em pedagogia. Dois dos exemplos que Oliveira nos apresenta são as noções de autonomia do aprendiz e normatividade, como têm sido abordadas, por exemplo, no discurso construtivista ou social-construtivista na pedagogia. Outro ponto que os seus comentários levam em conta é a inventividade de Wittgenstein, como ele introduziu em seu dicionário princípios fundamentais que a lexicologia adotaria de maneira sistemática apenas muitas décadas depois. Por fim, o autor nos adverte contra a tradicional noção essencialista – ou expectativa – de fidelidade na tradução, recorrendo ao teórico da tradução Gideon Toury – segundo o qual todo ato translacional exige um compromisso ad hoc entre os princípios da adequação (ao texto fonte) e uma aceitabilidade (no contexto alvo) – como um guia para a presente tradução.

    Em seguida, esta coletânea reúne alguns ensaios de integrantes do grupo Felp, divididos formalmente em três partes: na primeira parte dois textos mais vinculados ao prefácio de Wittgenstein, derivando dele diferentes reflexões; na segunda parte foram selecionados três textos que são resultados de duas pesquisas de mestrado e uma de doutorado já concluídas, fortemente inspiradas nas ideias do segundo Wittgenstein; e na terceira parte, dois projetos de pesquisa ainda em andamento, mas que já trazem resultados auspiciosos para os seus respectivos campos de investigação. O ineditismo deste conjunto de ensaios deriva do fato de que, com a concepção de linguagem da segunda fase do pensamento deste filósofo, abriram-se novas perspectivas para se pensar não só as tradicionais questões da filosofia, como também para enfrentar os impasses educacionais contemporâneos, frutos de confusões conceituais que se instalam no âmbito da escola e nos currículos escolares, quando se ignora a multiplicidade das funções da linguagem.

    Dentre as questões levantadas especificamente pelos autores desta coletânea, destacamos as seguintes: quais são as condições de possibilidade de transmissão de sentidos entre professores e alunos no contexto da sala de aula? Como saber se o que o professor ensinou foi de fato aprendido pelo aluno? De que modos a concepção de linguagem do professor pode interferir em suas práticas pedagógicas? Qual seria o papel de determinados artefatos pedagógicos, como um dicionário ortográfico, entre outros, na constituição de novos sentidos? Quais são os mecanismos linguísticos que possibilitam a compreensão entre culturas muito diferentes? E, mais recentemente, em que medida a pedagogia das competências, utilizada para fundamentar processos de avaliação de larga escala, como o Enem, pode conduzir a reformas dogmáticas no sistema de ensino do país? A terapia filosófica wittgensteiniana pode contribuir para dissolver os impasses dos múltiplos sentidos da formação do cidadão nos discursos educacionais? E de que modo a concepção de filosofia de Wittgenstein como descrição pode alterar o ensino de filosofia no contexto da escola básica? Em que medida a filosofia do segundo Wittgenstein esclarece problemas de alfabetização? De que forma os paradigmas epistemológicos vigentes estão direcionando a pesquisa educacional na área de ensino em enfermagem?

    A partir de questões como as levantadas acima, cada autor se embrenhou em uma linha específica de investigação, seja a da alfabetização ou a do ensino da cidadania; nas reflexões sobre os fundamentos epistemológicos da avaliação; sobre o ensino de filosofia e o desenvolvimento do pensamento crítico; possibilitando um novo olhar para a polêmica entre pedagogias ativas e o que se considera ensino tradicional, entre outros temas cruciais do campo da filosofia da educação. Como o leitor verá, todos os textos recorrem a conceitos forjados por Wittgenstein, como os de jogo de linguagem, semelhanças de família, formas de vida, entre outros, para pensar o campo da educação, como, também, se ancoram em seu método, mais conhecido por terapia filosófica, para esclarecer confusões conceituais em seus respectivos campos de atuação. Segue-se uma breve síntese de cada um dos textos, pela ordem de apresentação:

    Maria Fernanda de Moura Reis trata, em seu texto "O Dicionário para escolas primárias de Ludwig Wittgenstein", do período em que Wittgenstein foi professor primário em vilarejos extremamente pobres de uma Áustria destruída pela Primeira Guerra Mundial. Neste texto, a autora procura mostrar que não existe uma lacuna entre as fases do pensamento do filósofo, mas uma mudança de perspectiva a partir de algumas possíveis influências, como de Karl Bühler, importante educador alemão, e muito provavelmente, esta mudança também tenha ocorrido gradualmente ao longo de sua experiência docente, em particular, ao elaborar com elas um dicionário ortográfico.

    Cristiane Maria Cornelia Gottschalk retoma aspectos do prefácio do dicionário ortográfico de Wittgenstein em seu texto Um sentido mais abrangente do conceito de tradução – da sala de aula a diferenças culturais para pensar as condições e os limites da transmissão de sentidos. Argumenta que, além da reflexão propiciada pela elaboração do dicionário, a crítica que o filósofo faz a interpretações dogmáticas de antropólogos de sua época (relativas aos rituais de culturas ditas primitivas) possibilitou esclarecer problemas de compreensão entre diferentes culturas como também os de caráter pedagógico, advindos, em sua maior parte, da pressuposição de significados extralinguísticos como fundamentos do sentido.

    Marisa Alves de Souza, em seu texto O que significa ser cidadão? Um exercício de indagação conceitual, faz uma breve descrição dos usos do conceito de cidadania em discursos retirados da internet – aos quais denomina como discursos provenientes do senso comum – com o objetivo de compreender e comparar os jogos de linguagem aí desenvolvidos a partir da noção wittgensteiniana de propriedade de semelhança de família. Pelo cotejamento dos significados do conceito de cidadania verificados nestes discursos comparados com os significados para o mesmo conceito apresentados no verbete cidadania do Dicionário de Filosofia Moral e Política, levanta algumas questões acerca dos usos desse conceito nos discursos especializados veiculados nos principais periódicos da área educacional no Brasil.

    Tânia Gonçalves aborda em seu texto Breves reflexões sobre a filosofia como atividade: as contribuições de Wittgenstein, a concepção terapêutica de filosofia de Wittgenstein, vista não como uma disciplina cognitiva, mas sim como uma atividade que tem como ideal a noção de clareza, não como explicação, mas descrição. A partir dessa perspectiva filosófica, a autora traz para o debate o ensino de Filosofia e aborda as dificuldades que ainda cercam o ensino dessa disciplina no contexto das orientações vigentes.

    Rafael Ferreira de Souza Mendes Pereira examina alguns pressupostos teóricos da chamada pedagogia das competências, em seu texto Pressupostos essencialistas da pedagogia das competências – uma crítica wittgensteiniana, e interroga se este modelo pedagógico, em nome de pretensa renovação do ensino, não encorajaria a reificação de conceitos mentais concernentes ao processo de aprendizagem. Também questiona a reformulação que esta pedagogia oferece de conceitos como aprender, saber, compreender, destacando as ambiguidades daí decorrentes e problematizando as reformas dos sistemas escolares que têm buscado fundamentos naquela pedagogia.

    Marília Flávia de Camargo Borin apresenta uma reflexão sobre a concepção de alfabetização de orientação construtivista, levantando questões preliminares em seu texto Indagações sobre o ensino e a aprendizagem na alfabetização construtivista: Um estudo em diálogo com o pensamento de Wittgenstein. Nesta etapa da investigação, a autora faz uma revisão de alguns aspectos do modelo explicativo de aprendizagem decorrente da teoria da psicogênese da língua escrita, de Emília Ferreiro e Ana Teberosky, constituída a partir de bases conceituais da epistemologia genética de Jean Piaget, bem como da teoria da gramática gerativa elaborada por Noam Chomsky. Inspirada na segunda fase do pensamento de Wittgenstein, recorre a sua terapia filosófica para analisar criticamente a concepção construtivista de aprendizagem do sistema da escrita, ainda dominante no pensamento de muitos alfabetizadores. Contrapondo-se à teoria da psicogênese de construção de hipóteses que pressupõem um padrão evolutivo, a autora defende que alfabetizar caracteriza-se por uma atividade complexa de ensino de técnicas, envolvendo diferentes jogos de linguagem e, fundamentalmente, um treinamento, condição para que a criança seja gradativamente inserida nas práticas de letramento em um ambiente social e cultural.

    Rosely da Silva Matos Liberatori encerra a coletânea de ensaios com o texto Paradigmas epistemológicos e o ensino em enfermagem: uma abordagem da terapia filosófica wittgensteiniana, que tem como objetivo uma crítica aos modelos pedagógicos vigentes na área de ensino de enfermagem. Esta pesquisa, que ainda está em andamento, questiona o discurso dominante de que o aluno precisa aprender a aprender, ir em busca do próprio conhecimento, e que se deve romper com o paradigma do ensino tradicional, como se os saberes docentes até então não fossem mais pertinentes ao contexto contemporâneo. Contrapondo-se a esse discurso, procura elucidar a apropriação dogmática de conceitos em ensino de enfermagem, interiorizados nos modelos apresentados, e propõe a realização de uma terapia filosófica wittgensteiniana sobre as imagens que se formam em decorrência da hierarquização e disputa no campo científico dos referidos modelos de ensino, chamando a atenção para os aspectos éticos, semânticos e culturais capazes de contribuir para uma discussão mais profícua sobre o tema.

    ***

    Finalmente, gostaria de fazer uma singela homenagem ao filósofo Arley Ramos Moreno, que nos deixou recentemente. Além de nos ter legado uma obra própria extremamente original que culminou em uma nova teoria do significado, intitulada por ele de Epistemologia do Uso, possibilitou com a sua sistematização ímpar das ideias de Wittgenstein a abertura de novas linhas de pesquisa em diversas áreas do conhecimento, não deixando imune a área de filosofia da educação. Sem dúvida alguma, suas reflexões filosóficas foram e têm sido um referencial teórico fundamental para as pesquisas concluídas e em andamento dos participantes do grupo Felp na área de filosofia da educação. Convidado assíduo em nossos seminários, deu-nos a honra de sua presença em várias oportunidades, contribuindo para a formação de todos que fizeram parte do grupo nestes últimos 15 anos com sua interlocução precisa, serena, bem-humorada, encorajadora e desafiante.

    Agosto de 2019

    Cristiane Maria Cornelia Gottschalk


    Notas

    1. Estou utilizando o termo pré-intermediário para os anos em que Wittgenstein se dedicou a outras atividades (professor primário, arquitetura, jardinagem), período ao longo do qual, a meu ver, sua atividade filosófica continuou intensa, a despeito da classificação clássica de boa parte dos comentadores de sua obra que considera a atividade filosófica de Wittgenstein restrita a três períodos: um primeiro Wittgenstein, período que vai de 1913 a 1920, referente principalmente à elaboração de sua primeira grande obra, o Tractatus Logico-Philosophicus; um período denominado de intermediário, que se inicia em 1929, cujos textos mais conhecidos são Some Remarks on Logical Form de 1929 e A Lecture on Ethics (conferência proferida em 1930), como também outros escritos nos primeiros anos da década de 1930; e a partir de meados da década de 1930 até sua morte, consagra-se um segundo Wittgenstein, que faz sua autoterapia na obra mais conhecida deste período, Investigações Filosóficas, cuja primeira parte foi terminada em 1945 e publicada pela primeira vez apenas em 1953. Ou seja, como se entre o Tractatus e o texto de 1929 tivesse havido um vazio filosófico em sua vida.

    Prefácio

    Encontramos aqui uma bela coleção de textos sobre educação, de um ponto de vista filosófico, inspirada por Wittgenstein. Cristiane Gottschalk, tal como eu, considera que a Filosofia está presente nas questões educativas, desde o nível elementar das crianças que dão seus primeiros passos na linguagem. O contexto da escola é um lugar fundamental, em que o uso das palavras amplia-se, sob a condução de um professor também capaz de ensinar a aritmética, a geografia, a observação. Diz-se, com frequência, que se começa nas pequenas escolas. Mas, afinal, o que começa na escola primária?

    Ditar um texto é um exemplo discutido nas Investigações Filosóficas. A criança transcreve as palavras ditadas que ela escuta ou copia o que ela vê sobre o papel. A atividade que segue o trilho do ditado e da cópia é um exemplo de seguimento de regras. Neste sentido, é bem provável que a composição do pequeno dicionário ortográfico de Wittgenstein para as crianças do primário ultrapasse em boa medida a concepção de um simples dicionário que se apresenta como uma lista de palavras. A associação nome-coisa, que se tornará a problemática tese atribuída a Santo Agostinho nos primeiros parágrafos de Investigações Filosóficas, é excluída do dicionário. Ela nem mesmo está colocada. As relações acontecem entre as próprias palavras, em virtude de seu caráter derivacional a partir de uma raiz. Elas desenham as famílias em que a referência às coisas ou objetos desaparece se observamos as próprias palavras e suas relações.

    O movimento de reforma escolar, conduzido no período entre guerras por Otto Glöckel, recrutava adeptos; e Wittgenstein, tomado por um impulso, abraça a profissão que ele exercerá por seis anos seguidos. Mesmo que a publicação do dicionário em 1926 não tivesse tido outras reedições, considero crucial o prefácio de Wittgenstein a esse dicionário, porque nele encontramos as premissas de suas futuras considerações gramaticais, de caráter filosófico. Nele escutamos o futuro filósofo da gramática dos usos, a qual se constitui no interior de formas de vida. As interações linguísticas constroem a linguagem comum. Na escola, a criança descobre que participa de tal interação na família, no trabalho, nas necessidades cotidianas.

    Podemos, hoje, visitar o país em que se situavam essas escolas em que Wittgenstein lecionou. Os simpósios anuais de Kirchberg am Wechsel permitem que se tenha uma ideia delas, in loco. Ainda há uma visita a esses locais, em um dado momento das férias de verão nessas cidades da Baixa Áustria, em que podemos imaginar quantos, naquela época, podem ter ficado isolados pelas altas montanhas, as quais era preciso atravessar para se ir de um vale a outro. O problema da unidade da língua se colocava e, para reerguer o país, muito afetado pela Primeira Guerra Mundial, podemos conceber a urgência da tarefa da unificação linguística, para que os jovens aprendessem a se compreender ao se deslocarem de um lugar para outro.

    Ademais, o tema da construção de línguas auxiliares inspirou os lógicos e filósofos da sintaxe como Carnap e, sobretudo, Otto Neurath, que se destacou pelos seus projetos de interlinguística. Para encontrar uma língua comum à maioria, seria necessário fazê-lo por meio das crianças, nas pequenas salas de aula da escola, ou criando-se bases linguísticas visando à unificação dos diferentes discursos científicos. No entanto, essas correntes não correspondem ao mesmo ideal. De um lado, havia aqueles que (no Círculo de Viena) defendiam a construção de uma sintaxe das linguagens da ciência, fundada sobre uma base linguística. Por outro lado, Wittgenstein, opondo-se ao espírito esperantista, se colocou contra a ciência unificadora que tinha como pretensão a construção de linguagens artificiais. Ele explicitamente ridicularizou esta ideia em alguns dos seus comentários de 1930 (cf. Culture and Value). Longe de ser um universalista, tanto no nível dos usuários como na língua como base linguística unificada, Wittgenstein visava a uma linguagem compreensível por um nós mais amplo que uma pequena cidade montanhosa, mas não a uma universalidade dos homens.

    O dicionário

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