Contra o Juízo: Deleuze e os Herdeiros de Spinoza
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Contra o Juízo - Ester Maria Dreher Heuser
Autores
PARTE UM
JUÍZO E TRAGÉDIA
Spinoza: o mais feroz combatente às ordens transcendentes e ao juízo
Leandro Nunes
Unioeste
O juízo
O juízo é o substrato de toda estratificação e de toda hierarquia oriunda de uma divisão pretensamente ontológica, da tragédia grega à filosofia moderna, é toda uma doutrina do julgamento que se vai elaborando e se desenvolvendo
(DELEUZE, 1997, p. 143). O julgamento está intrincado nos modos de vida produzidos pelo homem ocidental, ao menos desde 458 a.C, quando Ésquilo apresenta sua tragédia Eumênides, em que monta o primeiro tribunal, tal como o conhecemos hoje⁴. Para operar o julgamento, ou, como gosta de chamar Deleuze, o juízo de Deus, toma-se um arquétipo abstrato e radicalmente separado do mundo, o qual é estabelecido como princípio primeiro, e deriva-se, a partir dele, um universo em escada, um sistema escalonado e hierárquico. Combate-se o caos e cria-se um cosmos, um Universo organizado por lotes, em que os seres são valorados e locados segundo sua posição em relação ao princípio primeiro; trata-se de um sistema, de uma organização hierárquica e extremamente elitista, sempre em escala descendente e que se perpetua sob a forma de uma dívida eterna⁵. Por isso, o trágico não é a ação, mas o juízo – a tragédia grega é fundada primeiramente como um tribunal, uma doutrina do julgamento que se vai elaborando e desenvolvendo no curso da existência (cf. DELEUZE, 1997, p. 143). Juízo que é estabelecido como uma consciência pré-reflexiva na forma de uma divindade transcendente, perante a qual nos tornamos eternos devedores.
O juízo tem por substrato o estabelecimento de uma relação credor-devedor. Uma dívida construída em nome de Deus, mas contraída segundo forças imanentes que se afetam mutuamente, ou seja, entre homens que se afetam entre si. Dirá Gilles Deleuze (1997, p. 145) que tudo se passa entre partes, por meio de relações que produzem marcas, as quais circunscrevem cada movimento de seus próprios corpos: são os signos que laboram os contornos de cada corpo, delimitando o que é seu de direito, ou melhor, o que é seu por dever. Dívidas escritas autonomamente em um livro
que guiará cada instante de nossa existência, pois nele está contraída uma dívida infinita, da qual nem mesmo a morte pode nos livrar:
O juízo não apareceu sobre um solo que, mesmo muito diferente, tenha favorecido seu florescimento; foi preciso ruptura, bifurcação. Foi necessário que a dívida fosse contraída com deuses. Foi indispensável que a dívida fosse referida não mais a forças das quais éramos depositários, mas a deuses que supostamente nos davam essas forças. [...] Só pouco a pouco os deuses e os homens se elevaram juntos à atividade de julgar, para melhor e para pior (DELEUZE, 1997, p. 146).
Primeiramente, o juízo é guiado por um arquétipo que se desenvolve conforme a lógica da delimitação de cada ser. Toda existência passa a ser derivada de um modelo, o qual delimita a priori o que pode ou não pode um corpo, sem que haja possibilidade de se almejar algo que não esteja pré-configurado. De modo que teríamos um mundo governado por arquétipos superiores e não poderíamos, em momento nenhum, fazer experimentações neles; não poderíamos, porque eles estariam acima de nós
(ULPIANO, 2010, s/p). Trata-se de uma tradição que, na filosofia, remete ao platonismo, a qual afirma um princípio perfeito (exterior ao mundo) fundante de uma realidade imperfeita (o mundo); tradição que se ocupa de como as coisas devem ser e não como as coisas podem ser: é o isqueiro em si mesmo, a beleza em si mesma, a mesa em si mesma... e não as coisas que estão sujeitas ao tempo, à transformação, às contradições, etc.
(ULPIANO, 2010, s/p). Não obstante a ideia da distinção entre o que é perfeito e, portanto, está fora da realidade (transcendência), e o que é imperfeito (sujeito ao tempo), acaba se tornando fundamento para boa parte da história da filosofia. Em decorrência disso, sob a gênese da transcendência, a vida passa a ser condicionada à sua colocação no sistema de hierarquias e ali aprisionada. Tendo como óbice um sistema de julgamento que infere eternamente um dever ser
estático e ausente de devires.
A transcendência
Por transcendência entende-se a imanência de um termo perante outro, ou seja, quando um termo é imanente a outro, este último transcende o primeiro. Assim sendo, o universo seria produto de uma segunda realidade. Por consequência disso, seria também eternamente dependente desta, uma vez que estaria condicionado por uma realidade que lhe seria primeira. Quando falamos em transcendência referimo-nos a uma dimensão alheia, uma estrutura oculta, um meio que opera sempre à parte. Podendo ser um Deus, uma consciência, um objeto, ou uma alma, indiferente da nomenclatura que lhe atribuímos. Contudo, não importando a forma pela qual é representada, a transcendência é sempre inferida ou concluída de seus próprios efeitos, embora pretenda ser primeira. Por isso, não há criação a partir da transcendência, há apenas adequação – se a transcendência só é afirmada a partir dos seus efeitos, ou seja, daquilo que supostamente cria, significa que as criaturas, os seres, primeiro existem, depois se adequam à transcendência. Esse movimento acontece porque a transcendência sempre pressupõe um fundamento último e imutável, ou seja, uma ordem preestabelecida. Trata-se da afirmação de um modelo do qual todos os seres derivam. Nela há sempre duas substâncias, sendo uma constituída como imagem e semelhança da outra, uma superior e outra inferior. Segundo Todd May (2005, p. 31), a transcendência é a explicação do universo pelo privilégio de uma substância sobre a outra. Nele, o que deve ser reconhecido como superior não é deste mundo, mas o infinito, o não físico, o ilimitado e a unidade da identidade própria. Trata-se de uma referência também para o modo que pensamos, do que Deleuze (2009, p. 131-142) chamou de imagem dogmática do pensamento, a qual trabalha segundo a determinação de um mundo fixo e estável que se encontra à espera do pensamento para representá-lo. Portanto, refere-se à uma adequação do pensamento perante uma realidade pré-determinada.
É a partir da ideia de transcendência que a doutrina do juízo se estabelece. Seu elemento essencial é o julgamento da vida em nome de valores superiores. Elemento que é base de todo sistema emanativo, os quais se sustentam sob uma necessária dualidade sempre degradante: de um lado, o mundo, do outro a transcendência, o primeiro sempre dependente do segundo. Trata-se de uma hierarquização do universo como se ele fosse uma grande escadaria que sempre opera por uma série de emanações e conversões hierárquicas, na qual os seres são colocados em degraus e valorados segundo sua posição na escada.
O mundo guiado pelas ordens transcendentes é fechado, aprisionado e condicionado, isso porque contém apenas formas que não podem, de maneira alguma, transmutar, mas apenas se adequar. De modo que a vida, sobretudo o homem, apenas pode efetuar aquilo que lhe é designado previamente. O que acontece antes mesmo de seu nascimento: se nasce pedra, somente pedra poderá ser, se nasce animal, somente animal poderá ser, se nasce besta, somente besta poderá ser. Situação que se radicaliza absurdamente quando se pensa no humano e a conjuntura que o mesmo está inserido, da qual, aparentemente, não pode se desfazer, uma vez que tudo está predestinado de antemão: o homem Deve ser isso e não aquilo. Sendo o juízo perpetuado quando o homem deseja ser aquilo que não Deveria ser: se nasce homem, não poderá ser nada que não esteja previamente determinado como carácter necessário do conceito que determina a ideia de masculinidade. Juízo efetuado sempre segundo ordens superiores, em nome de Deus
, argumentum ad verecundiam.
Para romper com essa lógica degradante é preciso que se teça uma crítica ao juízo feito em nome de Deus. Crítica que deve ser construída como um potente manifesto em favor da liberdade, dos homens livres que tomam a vida como criação, como resistência. No entanto, para que haja uma superação do juízo, é preciso exponenciar nossa potência de pensar e de agir. Processo que se dará infalivelmente pelos modos de vida imanentes, pelas maneiras de viver que não se referem ou se reportam a quaisquer valores transcendentes, ou seja, a categorias moralizantes dadas a priori, a partir de juízos orientados por categorias como bem e mal. Crítica ao juízo que Baruch de Spinoza fez magistralmente como ninguém outrora havia feito.
Spinoza e a crítica ao juízo
Como afirmado por Deleuze (1997, p. 143), a verdadeira crítica ao juízo não é kantiana, mas spinoziana. É o filósofo maldito
que tece a mais prolixa crítica à doutrina do juízo com sua imponente Ética (2011). Sendo depois sucedido, ao menos, por Nietzsche, Lawrence, Kafka, Artaud e o próprio Deleuze – todos procuraram desconstruir, com suas obras e com suas vidas, o juízo, bem como, todos negaram a submissão do homem à uma divindade transcendente. Em Spinoza há a afirmação de uma substância que é a causa de si e contém a si mesma: por causa de si compreendo aquilo cuja a essência envolve a existência, ou seja, aquilo cuja a natureza não pode ser concebida senão como existente
(SPINOZA, 2011, P1, DI) – o que Deleuze denominará posteriormente de pura imanência⁶. Trata-se de um ser unívoco⁷, tendo todos os atributos iguais, no sentido de fazerem parte de uma única realidade, manifestando-se apenas como modos dessa substância. Sendo, portanto, os atributos a essência do ser, da substância; tendo aí uma espécie de plano sobre o qual tudo se assenta e em que tudo se inscreve (cf. DELEUZE, 2012, p. 72). Assim sendo, não haveria uma entidade que opera à parte e que possa condicionar os atributos, o que impossibilita, decisivamente, qualquer juízo em nome de uma instância superior, uma vez que tudo o que existe são apenas atributos de uma única substância.
O que importa na filosofia de Spinoza é a unidade da substância e a diversidade dos atributos (cf. DELEUZE, 2013, p. 9). Isto é, os atributos são formalmente o que a substância é ontologicamente (cf. MACHADO, 2009, p. 65). Em Spinoza, há uma natureza naturante como substância e causa, e uma natureza naturada como modos e afectos⁸, os quais se sustentam numa relação de mútua imanência. É a referência de uma causa que permanece em si mesma para produzir e de um efeito que permanece na causa. Imanência da imanência: a substância spinoziana seria a causa inseparável de todas as coisas. Tudo está na substância que, ao mesmo tempo, seria causa de si mesma: por substância compreendo aquilo que existe em si mesmo e que por si mesmo é concebido, isto é, aquilo cujo conceito não exige o conceito de outra coisa do qual deva ser formado
(SPINOZA, 2011, P1, DIII). Desse modo, somente pode haver uma substância, pois a própria definição spinoziana exclui a possibilidade de duas substâncias – se houvesse duas substâncias, uma como causa da outra, necessariamente entraríamos em um ciclo ad infinitum, um contrassenso, já que uma substância não pode ser produzida por outra substância
(SPINOZA, 2011, P1, PVI).
Para Spinoza, os atributos da substância se distinguem qualitativamente e não numericamente. Ou seja, reportam-se a um mesmo sentido ontologicamente uno em relação aos modos que o exprimem e que, nela, são como fatores individuantes ou graus intrínsecos intensos
(DELEUZE, 2009, p. 48). Também por esse motivo os modos da substância são graus de potência que somente devem
desenvolver toda sua potencialidade ou seu ser no próprio limite (cf. DELEUZE, 2009, p. 48). Consequentemente, os atributos da substância seriam absolutamente comuns à substância e aos modos, embora estes não possuam a mesma essência, já que o próprio "ser se diz num mesmo sentido da substância e dos modos, se bem que os modos e a substância não tenham o mesmo sentido ou não tenham este ser da mesma maneira (in se e in alio) (DELEUZE, 2009, p. 48). Para Spinoza, é o ser que se diz em um único e mesmo sentido que a substância e seus modos, o que traz consequências ontológicas enormes:
Deus está no mundo, o mundo está em Deus" (DELEUZE, 2012, p. 71).
Por essa lógica, a afirmação de uma substância que é causa de si mesma torna-se o mais potente combate ao juízo, mesmo que ela ganhe, em Spinoza, o nome de Deus
. Uma vez que a história da filosofia nos mostra que o Juízo em nome Deus somente é efetuado quando se separa radicalmente a causa de seus atributos. Isso porque, quando se estabelece uma dualidade ontológica, necessariamente, os atributos se tornam eternamente dependentes de uma substância primeira. Dessa feita, perpetua-se um arquétipo para o juízo. Um modelo que delimita as potencialidades de cada atributo da substância. Todavia, quando Spinoza nega essa dualidade e afirma uma substância que é imanente unicamente a si mesma, elimina qualquer forma de arquétipo e restitui a liberdade aos atributos. Spinoza justifica esse movimento em favor da imanência mediante a ideia de expressão, um conceito caríssimo para entendermos plenamente a substância em sua