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Política e Conflitos: O que Maquiavel nos Ensina?
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E-book363 páginas5 horas

Política e Conflitos: O que Maquiavel nos Ensina?

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Sobre este e-book

Um livro fechado em tuas mãos pode ser apenas um peso, mas, aberto, a tua lição pode torna-te alguém de peso. Inspirado nessa ideia, o livro Política e conflitos: o que Maquiavel nos ensina? Foi produzido com o intuito de apresentar ao leitor um novo olhar sobre o lugar do conflito na vida política, tomando como base teórica as ideias de Maquiavel que o tornaram um pensador original em meio aos demais que também escreveram sobre a política.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento15 de mar. de 2021
ISBN9786558207788
Política e Conflitos: O que Maquiavel nos Ensina?

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    Política e Conflitos - João Aparecido Gonçalves Pereira

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    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Dedico este livro a minha mãe Iraci Gonçalves Pinto, que mesmo não tendo sido alfabetizada, fez todos os esforços possíveis para que eu me alfabetizasse. Fato que ensejou eu ter chegado aonde cheguei, no âmbito acadêmico e profissional. De igual modo, dedico à minha esposa Lídia Ferreira e aos meus filhos. Por fim, dedico a todos os amantes da filosofia e do pensamento crítico.

    Agradecimentos

    Agradeço ao Ser Absoluto que causou a minha existência. Por conseguinte, agradeço a todos que direta (mãe e pai) e indiretamente (familiares e demais pessoas) contribuiram com o desenvolvimento da minha existência no mundo.

    Agradeço de forma especial e carinhosa à minha esposa Lídia Ferreira por todo apoio e companheirismo que foram fundamentais para que eu conseguisse realizar este livro.

    Agradeço profundamente aos professores e professoras que fizeram parte de toda a minha formação intelectual, desde a minha alfabetização até a pós-graduação. Sem desmerecer aos demais, agradeço a alguns deles em especial.

    Referente à minha formação básica, minha gratidão especial os docentes: Antônio Costa Pereira, Ailton Gil Soares, Aílton Rocha, Maria de Lourdes e Elizangela Gabriel de Pádua.

    Referente à minha formação do nível superior, minha gratidão especial os docentes: Prof. Dr. Renato Moscateli (UFG), pela profícua orientação durante o meu tempo de mestrando, por todo conhecimento partilhado, pelo apoio, paciência e generosidade. Da mesma forma externo a minha gratidão à Prof.ª Dr.ª Helena Esser dos Reis (UFG) e aos professores: José Luiz Ames (Unioste), Geraldo Alves Teixeira Jr, Helton Adverse (UFMG), Gabriel Pancera (UFMG), por terem lançado luzes sobre a minha compressão do pensamento maquiaveliano, por meio de seus escritos e conversas informais. Também agradeço a todos os meus professores da graduação, em especial ao Prof. Dr. Francisco Agamenilton Damacena, pelas influências positivas na minha formação humana e intelectual.

    Agradeço aos meus amigos e colegas que de alguma forma contribuíram com o desenvolvimento do meu livro, por meio de debates e outras formas de ajuda. Em especial minha gratidão aos amigos Wilame Abreu, Elson Olanda, Ronan da Silva Parreira Gaia.

    Enfim, agradeço a todos que colaboraram, direta e indiretamente, para que eu pudesse produzir este livro, ainda que não tenham sido mencionados aqui por escrito.

    Por fim, agradeço à Capes pela bolsa e por outros auxílios que me foram concedidos durante o meu tempo de pós-graduação, os quais foram essenciais para que eu me dedicasse à pesquisa.

    Prefácio I

    Conflito político como matriz da liberdade republicana

    A consideração do conflito como componente da ação política pertence à longa tradição da filosofia política. Negativamente essa noção já se faz presente no ideal da homonoia entre os gregos ou da concordia ordinis da tradição ciceroniana e medieval. A mesma coisa pode-se dizer da doutrina da constituição mista, conhecida desde Aristóteles e retomada por Políbio numa obra conhecida (ao menos em parte) por Maquiavel, a qual é elevada à condição de solução ideal para compor os interesses opostos dos diferentes segmentos em conflito na sociedade. Aristóteles, por exemplo, dedica ao conflito entre ricos e pobres boa parte de sua obra Política.

    O livro que apresento tem em vista, mostrar que, muito embora o conflito pertença à longa história da Filosofia Política, na tradição está posto como aquilo que prejudica, e para alguns pensadores até impossibilita a boa política. Em semelhante perspectiva, conflito é aquilo que a vida política precisa superar como condição para alcançar o bem comum. Onde reina o conflito, reina a divisão e esta tende a corroer os laços que mantêm vinculados entre si os homens em sociedade.

    Essa ideia se faz presente até mesmo num pensador como Thomas Hobbes, com justiça considerado como aquele que funda propriamente a concepção moderna de Estado. Para ele o conflito é o modo que caracteriza a condição natural dos homens fora do Estado. Ele está na raiz do que leva essa condição, no seu limite, à guerra generalizada de todos contra todos. A criação do Estado se impõe aos homens que vivem nessa condição natural; entenda-se por condição natural a vida subtraída do poder estatal como meio de neutralização – não de eliminação! – do conflito. A paz, condição de vida segura, é obra do Estado e implica a neutralização das paixões que promovem o conflito. Assim, para Hobbes a vida política é possível num quadro de ordem assegurado pelo Estado, ao passo que conflito é o caminho que conduz para fora do Estado e, consequentemente, impossibilita a vida política.

    João Aparecido nos mostra que, nesse quadro, a concepção de Maquiavel acerca da vida política se diferencia radicalmente tanto da tradição política anterior ao florentino quanto até mesmo àquela que se segue a ele, como em Hobbes. É nisso que, precisamente, reside sua originalidade. Maquiavel é o pensador que, por primeiro, refletiu a política a partir do conflito. Mais precisamente ainda: o pensador que compreendeu o conflito como dimensão constitutiva da vida política. As suas três obras políticas principais – O Príncipe, Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e História de Florença – articulam a reflexão em torno do conflito como princípio vital tanto dos ordenamentos políticos enquanto tais, quanto das instituições das quais estes são compostos.

    Para o autor, o conflito que marca as cidades é o da divisão radical entre as duas partes essenciais das quais todas elas são compostas: os grandes, animados pelo desejo de comandar e oprimir, e o povo, animado pelo desejo de não ser comandado nem oprimido. A relação conflitual revela que o povo se constitui na força de resistência às tentativas de dominação dos grandes e, em razão disso, na força social promotora da liberdade política. A resistência faz o povo colocar em movimento uma conflitualidade que, porém, não produz uma desordem absoluta – como, talvez, seja o caso em Hobbes –, mas, antes, determina a criação de leis e instituições que asseguram um ordenamento político livre. Dessa maneira, pondera Maquiavel, na origem da liberdade republicana está a ação de resistência ativa do povo ao desejo de dominação e exploração dos grandes.

    A liberdade política emerge, portanto, do conflito e tem sua força motriz na resistência do povo ao desejo de dominação dos grandes. Assim, o tema do livro de João Aparecido mostra o conflito político como fundamento da liberdade republicana em Maquiavel. João mostra que, para Maquiavel, no começo de qualquer ordenamento político está o conflito, de sorte que ele se constitui em seu princípio organizador, assim como também é a potência que assegura a invenção dos mecanismos político-jurídicos que asseguram a vida livre.

    Nisso está, precisamente, um aspecto inovador da compreensão maquiaveliana do conflito ao qual João Aparecido chama a atenção, não apenas em relação à tradição aristotélica e ciceroniana, mas também em relação ao contratualismo moderno, notadamente Hobbes: o conflito não é aquilo que deve ser neutralizado, e sim o que deve ser canalizado por instituições. Bem ao contrário dos pensadores anteriores, Maquiavel entende que é necessário construir um ordenamento jurídico-político que mantenha vivos os conflitos, ainda que canalizados para dentro de instituições. A potência (no duplo sentido de energia e de possibilidade futura) da vida política reside na existência de ordenamentos capazes de manterem vivos e atuantes os conflitos. Em outras palavras, o conflito deve permanecer em ato para ser capaz de levar a coletividade política à consecução do bem comum, compreendido como o bem imposto pela necessidade de acordo com as circunstâncias históricas concretas.

    O livro de João Aparecido nos mostra que um olhar retrospectivo para a obra de Maquiavel nos ensina que é preciso desenvolver (e não dissolver) as assimetrias de poder: compreender que existem múltiplos interesses conflitantes na sociedade impossíveis de serem conciliados até pela melhor das práticas deliberativas. Em lugar de buscar um consenso impossível (uma vez que a proposição final só será possível por uma decisão que implica exclusão), o caminho sugerido por Maquiavel é o do confronto aberto das posições divergentes no qual o jogo de forças entre grandes e povo é vitorioso para a república quando pende para o povo. A posição alcançada certamente implica em concessões, acordos, mas não consenso no sentido de superação ou neutralização das diferenças, pois acarreta na vitória de determinados interesses sobre outros e, portanto, na permanência do dissenso, do conflito na terminologia maquiaveliana. A vitalidade da política, na visão de Maquiavel, surge precisamente da impossibilidade de aniquilar o conflito. No entanto, Maquiavel também nos lembra que em política – quando existem estruturas institucionais que possiblilitam a manifestação do conflito (capazes de sfogore i omori, conforme sua terminologia) – ninguém vence definitivamente, de modo que o real político é essencialmente conflitual.

    Uma dúvida que, talvez, possa emergir dessa abordagem política fundada no conflito é acerca da capacidade de produzir a necessária lealdade, o comprometimento efetivo com a totalidade (pátria, Estado, bem público etc.). Maquiavel mostra que a resistência que o povo oferece ao desejo de dominação dos grandes, longe de enfraquecer a lealdade para com o bem comum, alimenta-o. Em outras palavras, com Maquiavel aprendemos que o comprometimento com a res publica é diretamente proporcional ao envolvimento efetivo com o debate – que sempre é um embate – aberto dos interesses divergentes: a participação direta e ativa faz a coletividade política perceber-se parte inseparável da res publica. Nas democracias contemporâneas confere-se esse papel às eleições periódicas para escolher os dirigentes. Ao invés disso, Maquiavel mostra que um modelo político adequado combina representação popular com participação direta e, fundamental, uma cultura cívica fundada na virtù que promova um confronto ativo e permanente das diferentes perspectivas sócio-políticas enraizadas na sociedade. Esse modo de pensar a política leva a determinadas consequências que rompem com o lugar comum. Vamos destacar algumas que nos parecem centrais.

    Primeiramente, destacamos que o poder é um lugar vazio e, por isso, como mostrou Claude Lefort, aqueles que exercem a autoridade pública nunca podem reivindicar a sua apropriação. A liberdade política só fica assegurada à medida que nenhum dos grupos sociais – grandes e povo para Maquiavel – forem capazes de se apoderar do poder.

    Uma segunda ideia, e decorrente da anterior, é o abandono de toda utopia: a descoberta maquiaveliana do caráter irredutivelmente conflitual da política leva a compreender que o campo político é o terreno da permanente e contínua construção e reconstrução operada pela permanente reformulação das relações de força que operam na sociedade. Na política não existe nada de definitivamente decidido!

    Enfim, o republicanismo conflitual de Maquiavel nos ajuda a pensar alternativas para um quadro de apatia política como se mostra nas democracias representativas contemporâneas em que os cidadãos encaram a participação como um fardo. A consequência de semelhante percepção é a degradação da vida política com seus corolários conhecidos (corrupção, ineficiência dos serviços públicos, aparelhamento do Estado etc.). O livro de João Aparecido leva o leitor a compreender a riqueza da ideia de conflito em Maquiavel para a construção de um ordenamento político republicano fundado na liberdade. Esse fundamento da vida política – a liberdade – compreendido por Maquiavel como contínuo e permanente resultado da luta, da ação no espaço público. Ser livre é lutar pela liberdade. Jamais somos livres, porque a liberdade é um bem que se dá aos sujeitos no movimento do real político e a ele está submetido.

    Prof. Dr. José Luiz Ames (Unioste-PR)

    Prefácio II

    Ao longo dos séculos, teóricos e políticos têm se debruçado sobre as obras de Nicolau Maquiavel buscando encontrar em suas linhas conceitos, esclarecimentos, conselhos, propostas. Nesse emaranhado de perspectivas e concepções possíveis, João Aparecido nos oferece uma leitura alinhada às interpretações – coerentes e críticas – mais aceitas entre os estudiosos contemporâneos.

    Não encontraremos no livro que temos nas mãos, portanto, um Maquiavel maquiavélico – adjetivo comumente utilizado, ainda hoje em dia, para designar uma pessoa ardilosa, inescrupulosa, à serviço dos grandes. O que se sobressai neste texto, cuja origem é uma dissertação de mestrado realizada no Programa de Pós Graduação em Filosofia da Universidade Federal de Goiás, é um Maquiavel maduro e crítico em relação à oposição entre grandes e povo, ao exercício e à proteção da liberdade, às condições da vida política republicana.

    Os temas aqui discutidos estão no rol dos problemas clássicos enfrentados pelos filósofos da política acerca da melhor forma de organizar a vida coletiva. Quais devem ser os elementos estruturantes da vida cívica? Qual a melhor forma de governo? É possível garantir o exercício da liberdade a todos os membros do corpo político? Tradicionalmente as respostas a essas questões passam pela suposição da necessidade de construção da unidade do corpo político e, em consequência, da harmonia entre as partes e da paz em geral.

    Maquiavel diverge. Ele encontra justamente no conflito, ou nos tumultos, uma mola propulsora tanto da grandeza quanto da ruína de uma vida cívica, dependendo da maneira como eles são encarados e administrados dentro do corpo político, segundo afirma João Aparecido ainda na introdução. Distante de ideais teóricos, o secretário da Segunda Chancelaria da República florentina vale-se de suas experiências na vida pública para tecer suas ideias políticas. Facilmente percebe que as comunidades políticas não são harmoniosas e pacíficas senão na superfície, mas que o cotidiano se estrutura a partir de conflitos. Impedir que esses conflitos emerjam e sejam tratados politicamente tende a encobrir o domínio de uns sobre outros, seja por meio da violência ou do ardil.

    Dar centralidade ao conflito no âmbito de uma República não significa advogar rupturas. Maquiavel é contrário à formação de facções rivais. Estas, em lugar de explicitar publicamente as divergências em vista do comum, voltam-se aos próprios interesses, valem-se da calúnia e do suborno que violam, corrompem e submetem os cidadãos. Em uma república assim desordenada já não há liberdade, leis, virtude cívica, mas apenas opressão decorrente do exercício da força e/ou de esperteza.

    Ao assumir que a vida política se fundamenta no conflito, Maquiavel evidencia a necessidade de buscar equilíbrio entre as posições divergentes, não para negá-las, mas entendendo que esse equilíbrio será sempre pendular e transitório. Nenhum grupo, nenhum interesse, nenhuma posição podem ser sempre satisfeitos, pois isso significaria a negação da(s) outra(s) e, portanto, sua opressão.

    É a liberdade dos cidadãos que Maquiavel evidencia ao entender que a vida política se estrutura a partir do conflito e da busca incessante de equilíbrio entre posições divergentes. A atualidade dessas ideias não poderia ser maior do que neste momento que vivemos. A negação de posições divergentes não significa harmonia, mas opressão! Nem aos grandes, nem ao povo pode ser dada a guarda privilegiada da liberdade, mas a ambos por meio do debate público e da construção de equilíbrios ou consensos provisórios que não calem o oponente.

    João Aparecido, seguindo com cuidado o pensamento maquiaveliano, nos faz compreender que a liberdade dos cidadãos depende da convivência política entre posições divergentes. Em uma sociedade complexa, como são as sociedades do nosso tempo, "grandes e o povo" são plurais. Aparecem na diversidade de filiações partidárias, de posições econômicas, de costumes, culturas, cores, religiões, sexualidades...

    O livro que lhes apresento nos instiga a investigar: quem são os grandes e o povo? O que são conflitos em uma República bem ordenada? Como esses conflitos podem fortalecer a liberdade republicana? Em quais circunstâncias os conflitos convergem com a grandeza ou levam à ruína o corpo político? Pelas linhas escritas por João Aparecido somos levados a acompanhar o pensamento maquiaveliano compreendendo seus conceitos e decifrando seus enigmas. Ao mesmo tempo que somos instigados, somos também desacomodados, convidados a pensar na nossa República.

    Prof.ª Dr.ª Helena Esser dos Reis

    Universidade Federal de Goiás

    Fevereiro de 2020

    Apresentação

    A política, em meio a todas as criações humanas, está entre as mais sujeitas a controvérsias e contingências. Por mais que nos esforcemos para encontrar soluções definitivas a fim de lidar com os problemas que a vida social nos coloca, essa é uma tarefa infindável, tanto pelas possibilidades inesgotáveis de que os eventos nos surpreendam com os desafios do imponderável, quanto pelo próprio caráter contencioso das relações que travamos como membros de comunidades políticas. Podemos buscar aprender com as experiências passadas, é verdade, olhando para os erros e os acertos de outras pessoas ou de povos em tempos idos, mas mesmo essa busca não garante que consigamos encontrar ensinamentos aceitáveis para todos. Afinal, temos olhares distintos sobre o que a história nos legou, assim como sobre a história que estamos construindo neste exato momento, sendo movidos por desejos que nos levam a entrar em choque com aqueles que compartilham nosso espaço cívico. Politicamente falando, esses conflitos nos dividem, muitas vezes, em campos fortemente antagônicos, em grupos adversários prontos a se confrontar nas ruas, nos parlamentos ou nos ambientes virtuais, pois discordamos com frequência acerca de como nossas existências em coletividade devem ser organizadas para atingirmos aqueles bens que mais almejamos, sejam eles a liberdade, a justiça, a riqueza ou o poder. Esses são alguns daqueles fatos inescapáveis que compõem a verdade efetiva das coisas políticas, aquilo sobre o qual Maquiavel escreveu tão bem há 500 anos, e a respeito de que o livro de João Aparecido Gonçalves Pereira nos auxilia a compreender.

    O autor nos chama a atenção, ao longo de todo o livro, para a relevância das reflexões republicanas de Maquiavel. As ideias contidas em O príncipe certamente não estão ausentes do trabalho de Pereira, mas vêm acompanhadas daquelas expostas nos Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio e na História de Florença, mostrando que a herança intelectual do florentino é muito mais rica e complexa do que se costuma supor, plena de temas caros aos humanistas cívicos que o antecederam, aos quais ele deu sua contribuição original para tratar das questões pertinentes aos Estados de sua época. Nesses escritos, em que o estudo da história e das experiências concretas dos povos fornece os materiais para a reflexão, vemos a centralidade do elemento conflituoso dos fenômenos políticos sendo abordada não como um mero obstáculo impeditivo de que os homens construam uma ordem civil, e sim como um fator crucial que deve ser mobilizado para dar sustentação a essa ordem. Em especial nas repúblicas, Pereira ressalta, a grande lição de Maquiavel é que as dissensões entre os grupos antagônicos – os grandes e povo, com seus respectivos humores/desejos – são a verdadeira causa da liberdade política, pelo menos enquanto encontrarem formas adequadas para se manifestarem, a exemplo do caso romano enfocado nos Discursos. Afinal, tais embates podem fomentar o engajamento dos cidadãos em relação aos assuntos de interesse público, ligando-os mais fortemente à defesa do bem comum e cultivando as qualidades que Maquiavel reuniu sob o nome de virtù, sem as quais eles se tornam reféns da inconstância da fortuna.

    A cuidadosa análise desenvolvida por Pereira observa que quanto mais os membros de uma república estão comprometidos com os ordenamentos e as leis que delimitam seus espaços de ação política, ou ainda com a criação de outros ordenamentos e leis que respondam melhor às mudanças acarretadas por novas circunstâncias, mais serão aptos a lidar com seus desacordos, não como inimigos visando à eliminação uns dos outros, e sim como concidadãos que, apesar de nutrirem propósitos nem sempre convergentes, devem poder expressar seus anseios sem pôr em risco a sua própria condição de povo livre, que não se curva à vontade arbitrária de qualquer senhor que tente submetê-lo a partir de dentro ou de fora do Estado. Logo, não só a liberdade, mas também a igualdade política tem de ser um alicerce republicano, pois abre caminho para todos participarem das posições públicas, segundo sua vontade e seus méritos pessoais, contribuindo para evitar que o governo, as outras instituições e os vários lugares de fala política sejam monopolizados por quem quer que seja. Sem dúvida, há cidadãos e facções cujo desejo implica projetos de dominação sobre os demais, e por isso Maquiavel entende que essas ambições precisam ser contidas pelo embate com o desejo dos que não estão dispostos a aceitar tais desígnios. Assim, tem-se uma dinâmica na qual os equilíbrios de forças entre os opositores podem mudar com o passar do tempo, o que ajuda a manter o vigor da vida cívica e atrasa os avanços da corrupção que tendem a destruí-la. Eis um dos ensinamentos mais importantes deixados por Maquiavel, cuja validade continua atual para nós, cidadãos de repúblicas democráticas interessados na preservação desse modo de existência política.

    Renato Moscateli

    Prof. Dr. da FAFIL-UFG

    Sumário

    CAPÍTULO 1

    MAQUIAVEL E A VERDADE EFETIVA SOBRE A ATUAÇÃO DOS HOMENS NA VIDA CÍVICA E SEUS DESDOBRAMENTOS 19

    1.1 Maquiavel e sua originalidade para pensar a política e a atuação dos homens na vida cívica 19

    1.2 Nicolau Maquiavel e a verdade efetiva sobre a política 23

    1.3 Verdade efetiva sobre os homens 33

    1.3.1 Natureza desejante dos homens e seus efeitos na vida política 35

    1.4 A compreensão de Maquiavel sobre o fundamento da ordem política 39

    1.5 As dissensões dos humores e a natureza que os define frente à liberdade 46

    1.5.1 O povo e os grandes: como distingui-los segundo uma abordagem maquiaveliana? 49

    1.5.2 O povo e os grandes: quem é o melhor guardião da liberdade? 55

    1.5.3 O desejo político do povo: passividade ou atividade? 60

    1.5.4 República ao modelo de Roma: o povo como guardião da liberdade 66

    1.5.5 República ao modelo de Esparta e Veneza: os grandes como guardiões da liberdade 68

    CAPÍTULO 2

    AS DISSENSÕES DOS HUMORES E A LIBERDADE REPUBLICANA: CONDIÇÕES PARA UMA RELAÇÃO DE CONVERGÊNCIA 71

    2.1 O controle recíproco dos humores como condição para os conflitos convergirem à ordem política 75

    2.1.1 A importância dos grandes dentro de uma república 78

    2.1.2 A importância do povo dentro de uma república 80

    2.1.3 A ambição e a necessidade: as razões pelas as quais os homens combatem 82

    2.2 A igualdade e suas implicações na vida política 85

    2.3 As leis e instituições: condições para a conservação da vida livre 99

    2.3.1 A renovação das leis e instituições 102

    2.4 A virtù maquiaveliana e os seus desdobramentos 110

    2.4.1 A virtù republicana em seus diversos aspectos 113

    2.4.2 A virtù republicana radicada no povo enquanto corpo político coletivo 115

    2.4.3 A virtù republicana radicada nas ações excepcionais de alguns cidadãos distintos 120

    2.4.4 A virtù e os bons costumes: uma relação condicional que incide na estabilidade de uma república 135

    CAPÍTULO 3

    DISSENSÕES DOS HUMORES E A RUÍNA DE UMA VIDA REPUBLICANA 145

    3.1 A perda da virtù e seus desdobramentos políticos 147

    3.1.1 O ócio como pressuposto da perda da virtù e seus desdobramentos 149

    3.1.2 As implicações políticas da religião segundo o pensamento de Maquiavel 150

    3.2 A falta de renovação política e seus desdobramentos 169

    3.2.1 Das calúnias às facções: a doença e a morte do corpo político republicano 173

    3.3 Episódio dos Gracos: confusão dos humores ou homogeneidade dos conflitos e fim da vida livre 186

    CAPÍTULO 4

    MAQUIAVEL PARA PENSAR A ATUALIDADE 199

    BIBLIOGRAFIA 215

    INDICE REMISSIVO 221

    CAPÍTULO 1

    MAQUIAVEL E A VERDADE EFETIVA SOBRE A ATUAÇÃO DOS HOMENS NA VIDA CÍVICA E SEUS DESDOBRAMENTOS

    1.1 Maquiavel e sua originalidade para pensar a política e a atuação dos homens na vida cívica

    Neste primeiro capítulo apresento uma análise a respeito de como Maquiavel pensou a atuação dos homens no vivere civile¹ e os seus respectivos desdobramentos. Igualmente, destaco que o secretário florentino se mostrou original e/ou inovador em relação aos demais pensadores² do campo filosófico-político, devido ao fato de ele ter percebido de maneira diferente os elementos que são fundamentais e estruturantes da vida política. Esse modo diferente de analisar a política lhe rendeu o título de filósofo realista. Muitos estudiosos o consideram o patrono da ciência política moderna. Ernst Cassirer afirma que "o que Galileu deu no seu Diálogo e o que Maquiavel deu no seu O príncipe ³foram realmente ciências novas. Aquilo que Galileu descobriu acerca da natureza e que tornou a base de nossa moderna ciência natural, Maquiavel descobriu no campo da política. Tal descoberta lançou os alicerces de uma nova modalidade de ciência política (CASIRER, 2003, p. 161-162). Seguindo nessa linha de análise, Bertrand Russel chega a asseverar que a renascença, embora não haja produzido nenhum filósofo teórico importante, produziu um homem de suprema eminência na filosofia política, Maquiavel. O autor ainda observa que o secretário florentino chega a ser chocante às vezes, devido aos seus posicionamentos sobre a política. Todavia, muitos outros homens também o seriam, se fossem igualmente livres de hipocrisia" (RUSSEL, 1968, p. 20).

    Tratando ainda das comparações, Leo Strauss (2009) chamou Maquiavel de o

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