Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Darrienia
Darrienia
Darrienia
E-book1.100 páginas24 horas

Darrienia

Nota: 5 de 5 estrelas

5/5

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Dizem que o passado sempre volta para assombrá-lo, mas alguns passados esquecidos têm nomes sussurrados e dívidas a serem cobradas.

Interesses perigosos agitam as trevas, esperando pacientemente para assumir o controle. O limite sutil entre sonho e realidade está em perigo, e os Escolhidos devem enfrentar o mal por trás desse desastre iminente.

Mas à espreita nas sombras, os guiando, está a verdadeira ameaça - e um objetivo oculto. Eles vão descobrir a verdade a tempo, ou os aspirantes a heróis se tornarão nada mais do que peões do mal?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de abr. de 2021
ISBN9781071596081
Darrienia

Relacionado a Darrienia

Ebooks relacionados

Fantasia para adolescentes para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Darrienia

Nota: 5 de 5 estrelas
5/5

1 avaliação1 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

  • Nota: 5 de 5 estrelas
    5/5
    Ele, realmente, é incrível!
    Não vejo a hora de ler o próximo.

Pré-visualização do livro

Darrienia - KJ Simmill

Ao meu marido maravilhoso, sem seu apoio nada disso seria possível.

Obrigada.

Capítulo Um

O passado

Em sua vida, Elly fez muitas coisas, comuns ou extraordinárias, mas ajudar Marise, a assassina sádica que tinha treinado, a escapar foi a mais satisfatória em séculos.

Não foi fácil fugir da mansão de Blackwood sem ser vista, especialmente devido ao nível de segurança que ele mantinha. Ela nunca tinha entendido seus guardas. Eram bem treinados, leais, atentos e desnecessários. Um desperdício de recursos que poderia ser usado de outra maneira.

A casa ficava em uma área oculta atrás de um círculo de vulcões conhecido como Pouso da Fênix. Um local conhecido somente pelos que viveram e morreram ali e, claro, pelos empregados das Cortes do Crepúsculo, que Blackwood gostava de achar que controlava. Porém, apesar de sua incrível proteção, para Elly, uma operação como essa era simples. Afinal, ela não tinha só viajado com pessoas qualificadas que o mundo nunca conheceu, mas também com algumas que, até hoje, são lembradas como heróis.

Aguardava ansiosamente o dia de seu encontro com Marise. Isso marcaria o começo de sua maior aventura. Lutava contra a curiosidade que a instigava a ver como ela tinha se estabelecido em sua nova vida, para ver se o processo gradual de despertar tinha sido completo. Mas, até que chegasse a hora, seria muito perigoso. Blackwood ainda vigiava de perto, procurando por qualquer sinal de que tinha feito contato. Por enquanto tinha que esperar. Quando se encontrassem, tudo dependeria de Marise perdoá-la por ter sido aprisionada na escuridão. Ela precisava permanecer escondida para que as coisas voltassem a ser como antes de sua existência. Caso contrário, o que tem que acontecer poderia nunca acontecer.

O momento de seu encontro estava chegando. A jornada começaria em breve, e as pessoas de todo o mundo aprenderiam seu verdadeiro lugar. Elly olhou para si mesma enquanto amarrava o cabelo em um coque. Ele era, de longe, sua característica mais marcante. Até agora, enquanto procurava por alguma imperfeição, seu olhar foi atraído pela intensa cor azul, uma lembrança constante da antiga punição que sofreu. Acostumou-se com o tempo, mas o mesmo não pode ser dito de qualquer um que a visse.

Enquanto se avaliava na superfície do espelho, sabia que Blackwood finalmente havia entrado em ação. A ideia, que tinha sido sugerida pela fonte correta, floresceu em sua mente frágil. Era uma solução tão óbvia que ele não conseguia entender como demorou tanto para considerá-la. Naquele momento de inspiração, enviou um guarda para convocá-la. Um guarda que chegaria a qualquer momento. De repente, ele se encheu de otimismo. Quando estava quase perdendo a esperança de encontrá-la, o plano finalmente havia funcionado. Ainda que tenha demorado mais do que o previsto. Ela estava pronta há dias. Esperava que ele chegasse àquela conclusão bem mais rápido, mas era lento às vezes. Não entendia bem sutilezas.

Ela sabia, enquanto se sentava para esperar o mensageiro, que sua paciência estava quase acabando; e como sabia que o guarda estava a caminho? Simples: ela sabia de tudo.

— Lorde Blackwood solicita sua presença imediatamente!

O guarda vociferou a ordem atirando-se contra a porta, sem nem pensar em bater. Vendo seu olhar irritado, ele recuou um pouco. Nenhum dos guardas gostava de falar com a filha de Blackwood. Quando perguntavam o motivo, culpavam o cabelo ou os olhos roxos sombreados. O mais provável, entretanto, era que seus instintos reconheciam que ela não parecia muito humana. Apesar do medo, também a respeitavam. Ela sempre os defendia quando necessário. Vários deviam suas vidas a ela, mesmo que não percebessem.

— Por favor, perdoe a intromissão — adicionou, percebendo o aborrecimento evidente.

Era novo. Ela o perdoaria dessa vez. Sempre dava tempo aos recrutas para que aprendessem seu lugar.

— Tudo bem, diga que estou a caminho — disse, com um leve sorriso nos lábios; estava na hora.

Não demorou para chegar à sala de audiência de Blackwood. Era simples, com vista para as montanhas e os vulcões. Para dar a impressão de grande sabedoria àqueles que ficassem diante dele, era preenchida por estantes cheias de livros, comuns e raros, os quais ele não havia sequer olhado. Para aqueles fora de seu pequeno feudo, o convite à mansão oculta só significava uma coisa: seu tempo e sua utilidade tinham acabado. Escondidos nesta sala estavam cantos e passagens que poderiam ser usados tanto para uma fuga rápida quanto para que um assassino observasse cuidadosamente o próximo alvo, o que era mais comum.

Embora soubesse seu destino, Elly ficou surpresa por não ter sido convocada à sala do trono. Uma sala que dava a ele a ilusão do poder que achava estar destinado a possuir. Ao entrar, ela deu um sorriso rápido em sua direção. Ele estava sentado em seu lugar, atrás de uma mesa de madeira cheia de papéis que, dado a seu conteúdo de ciência avançada, pareciam estar longe de seu nível de compreensão.

— Solicitou minha presença, meu senhor?

Fez uma reverência indiferente quando se aproximou. Mais do que qualquer outra coisa, fez para satisfazer seu ego. Era vital que, por enquanto, continuasse acreditando que era uma de suas leais empregadas. Ele pareceu ter esquecido o motivo real de sua presença, e ela não queria lembrá-lo no momento.

— Elaineor.

Ele reconheceu sua presença antes de retornar ao silêncio que preenchia o ar até sua chegada. Ela esperou pacientemente. A expectativa do que aconteceria a atingiu. Pensamentos de seu encontro com Marise encheram sua mente enquanto esperava que ele dissesse o que queria ouvir há tanto tempo. Ele, finalmente, falou de novo:

— Eu sinto falta dela. Tentei de tudo para encontrá-la, mas todos os esforços foram em vão.

Enquanto o silêncio voltava, ela se pegou pensando em quanto tempo, exatamente, isso demoraria.

— Estive pensando, com certeza alguém sabe onde ela está, e então me lembrei, você.

— Eu, meu senhor?

Ela sentiu o coração bater tão alto contra o peito que podia jurar que ele ouviria. Parte dela temia que ele tinha descoberto a verdade, talvez até como e onde ela havia trancado sua assassina. A ideia poderia tê-lo levado a descobrir o que realmente acontecera. Tentou se acalmar. Era Blackwood. Não era tolo, mas tinha o talento de deixar passar o óbvio. Embora se sentisse confusa, não deixou transparecer. Tinha experiência em agir como as pessoas esperavam. Ninguém poderia viver sua vida sem se tornar uma mestra do segredo e da mentira.

— Sim, afinal, vocês eram muito próximas. Ela falou com você sobre coisas que nenhum de nós jamais soube. Acredito que, se você tivesse a chance, poderia encontrá-la, afinal — parou de falar mais uma vez, como se pensasse com cuidado na próxima frase — Vocês eram mais que mestre e estudante, não eram? Eu me preocupo, Elaineor. O que pode ter acontecido; ela foi derrotada, se machucou e não consegue voltar? Isso, eu duvido. Acho que foi outra coisa. Você percebeu as mudanças nela antes que ela partisse. Acho que o que aconteceu a impede de voltar para casa, voltar para mim.

— Então o que tem em mente, meu senhor? O senhor sabe que eu, tanto quanto qualquer outro, desejo vê-la de novo.

Elly suspirou. Falou a verdade, só Marise realmente valorizava suas habilidades. Era uma das poucas pessoas dignas de viajar ao seu lado. Durante sua ausência, se sentia tão subestimada, tão entediada.

— É por isso que quero que a encontre.

— Eu, meu senhor?

Era uma performance de surpresa que faria vários teatros viajantes implorarem por suas habilidades, o nível certo de choque e emoção combinados enquanto levava as mãos ao peito, espantada.

— Bom, vocês tinham uma conexão especial. Não sei porque não pensei nisso antes.

— Tudo bem, meu senhor, partirei imediatamente.

Sua mão quase encostava na porta quando a voz dele a parou. Não olhou para trás para ouvir, com medo de que percebesse sua impaciência.

— Traga-a de volta com você, Elaineor.

Ainda que quase silenciosas, eram palavras de advertência. Sem que ele visse, Elly sorriu. Poucas coisas podiam intimidá-la e, claro, ele não era uma delas.

Partiu com o aviso. Blackwood sentou-se por um breve momento, como se quisesse assegurar que aquela pessoa, reconhecida publicamente como sua filha, havia mesmo saído. Foi uma pausa curta, que refletiu sua impaciência. Se ela tivesse ficado alguns segundos do lado de fora o teria ouvido falar com a sala aparentemente vazia.

— Eiji, entendeu sua missão?

Um pequeno painel de madeira se abriu, permitindo que um rapaz entrasse. Seu cabelo loiro estava despenteado, como se sua mão bronzeada tivesse passado ansiosamente por ele muitas vezes, da mesma maneira nervosa que fazia agora.

Parecia cansado. O sono tinha fugido dele nos últimos dias, quando foi trazido à força, amarrado e vendado, para este local desconhecido. Sua calça de couro marrom estava amassada da jornada nada hospitaleira até aqui; a camisa de linho não estava muito melhor, mostrando sinais claros dos maus tratos que sofreu na viagem. Mesmo que tentasse escapar, sabia que não encontraria o caminho de casa. Fizeram voltas e mais voltas. Algumas vezes, parecia que voltavam só para confundir qualquer senso de direção que ele pudesse ter.

Dada à situação, se tivessem simplesmente o abordado, os acompanharia com prazer. Não teria escolha. Mas, em vez disso, ele foi atingido por trás e arrastado até uma carroça apertada, sem saber seu destino. O único aviso foi que, se tentasse alguma coisa, pessoas morreriam.

Olhou para a figura que se sentou à sua frente. Era conhecido como Lorde Blackwood e, pelo bem de seu mestre, Eiji não tinha escolha exceto seguir as ordens deste senhor corrupto.

— Sim, Lorde Blackwood — declarou, relutante.

Diferente de Elly, não fez uma reverência, seus princípios não permitiriam.

— Avise Knightsbridge no momento em que ela encontrar a garota.

Blackwood tomou muito cuidado para não revelar quem Elly estava procurando. Para que seu plano funcionasse, o jovem elementalista tinha que acreditar que não corria riscos. Entretanto, assim que o contato com Marise fosse estabelecido, tomaria medidas para silenciá-lo.

— E meu mestre, posso vê-lo? — perguntou Eiji, nervoso.

Ele não tinha opção a não ser ajudar este homem. Pelo menos parecia uma tarefa fácil, a confirmação de que sua guerreira havia sido localizada em troca da vida de seu mestre.

— É cedo e sua lealdade é incerta, mas eu prometo, nenhum mal será feito a ele por nenhum de meus homens enquanto você faz o que foi pedido. Agora, vá.

Quando Blackwood estalou os dedos, o guarda parado do lado de fora entrou, deu uma bolsa a Eiji e o acompanhou de uma forma dolorosa e familiar. Eles o deixariam na parte externa das cavernas vulcânicas. Blackwood sabia que, independente de onde a aventura de Elly a levasse, mesmo com a habilidade de viajar por Collateral, teria que passar pelo labirinto sob Pouso da Fênix. Era lá que o pequeno espião encontraria seu rastro.

***

Ela saiu da floresta, correndo tão rápido quanto as pernas exaustas conseguiam. Continuou, apesar do cansaço, como se sua vida dependesse disso. Estava certa, dependia. Olhou ao redor desesperadamente, procurando por alguém, qualquer um, que pudesse ajudá-la. Mas sabia que as chances eram pequenas. Esta ilha tinha uma única cidade, e ela não conseguia encontrá-la. Não se atreveu a chorar. As únicas pessoas que se beneficiariam disso eram as que estavam atrás dela.

Seu cabelo escuro emaranhado estava cheio de folhas da floresta. Tinha terra grudada na frente do macacão tricotado justo, e a calça de couro estava rasgada da primeira emboscada que sofrera.

Sabia que eles causariam problema no barco, mas nunca imaginou que levariam isso tão longe. Tinham ouvido, por acaso, o propósito de sua peregrinação quando falou com o chefe do porto em Albeth, pedindo permissão para pagar sua passagem trabalhando na viagem. Esperava que parassem quando o barco atracasse; por um tempo, pararam.

Ela não os viu nas sombras, não até que o caminho isolado a tornara o alvo perfeito. Tinha trabalhado no bar do navio como garçonete. O motivo da peregrinação era seguir os passos da sacerdotisa Cassandra. O templo insistiu que fizesse a viagem se quisesse se juntar a eles. Era um rito normalmente exigido como a viagem final da sucessora da atual alta sacerdotisa, e ela, com certeza, não era isso. Devido à traição de seu pai, até o templo se recusou a treiná-la se não completasse o rito antigo. Agora, porque desejou tanto provar que estavam errados, que poderia realizar algo maior do que o nome de sua família permitia, ela morreria.

Lutando para fugir das garras bêbadas deles, teve que correr para a floresta, esperando despistá-los; mas no meio da camuflagem eles levaram vantagem. Sua única escolha foi correr para o terreno aberto, e sua única alternativa era deixar o destino nas mãos dos Deuses. Mesmo que parecesse que a tivessem abandonado.

Olhou para trás, pânico encheu seus olhos enquanto lágrimas caíam por seu rosto enlameado. O grito dos perseguidores enviou ondas de medo, causando fraqueza em seus membros, que ardiam. Estavam mais perto. Cambaleava, arrastando um pé na frente do outro, permitindo que eles diminuíssem a distância rapidamente. Não conseguia mais. Estava tão cansada, tão exausta. Apesar de seu desejo de viver, de continuar correndo, as pernas não aguentavam mais o peso. Sua única esperança era encontrar um abrigo seguro, uma cidade, um viajante, ou só um lugar para se esconder, mas o destino não estava a seu favor. Não via nada além do gramado deserto com alguns arbustos espalhados na planície aberta.

Os dedos de suas mãos arranharam o chão freneticamente quando viu os raios do sol da manhã refletirem em um pedaço de metal escondido embaixo de um pequeno arbusto. Parecia sinalizar para ela da base da planta podre, com a luz do sol dançando ao redor. Rezou para que fosse uma arma, algo que pudesse usar para se defender. Suas unhas, já quebradas e sangrando, cavaram enquanto ela tentava se agarrar à esperança da salvação. Cavou com mais força, jurando que tinha ouvido alguma coisa, um sussurro chamando-a no vento, ainda que, ao olhar rapidamente ao redor, não localizou a fonte.

Por um momento, as coisas pareciam se mover em câmera lenta. Ouviu provocações dos perseguidores, que estavam saindo da floresta. Os dedos envolveram o objeto de metal e ela o puxou.

— Por favor, que seja uma arma — pediu em voz alta.

Infelizmente, o destino não foi tão bom. Não era uma adaga, mas um amuleto antigo, um medalhão de eras anteriores. Chorou de medo e frustração, havia perdido sua última chance de se salvar.

Não teve tempo para admirar sua complexidade, mas não se importava. Em pouco tempo eles ganhariam. Mesmo movida pela adrenalina do próprio medo, não podia fazer mais nada para escapar daqueles monstros incansáveis.

Acorde. Ouviu novamente o sussurro. Mais alto. O tom tranquilizador a preencheu com uma calma dissociação enquanto via as figuras se aproximando.

Uma explosão de luz a cercou com uma força que parecia irradiar do próprio medalhão. Alguma coisa a revestiu em uma névoa, e uma nova esperança surgiu. Talvez o amuleto fosse a ferramenta de sua salvação, afinal. Sentiu sua energia renovada quando viu o próprio corpo de cima. Ainda que a morte fosse um alívio, não era a salvação que esperava. O amuleto continuou apertado em sua mão sem vida. Por um momento, enquanto olhava para si mesma, pensou ter visto o corpo se mexer. Não que isso importasse, os homens estavam muito perto e Hades tinha enviado uma escolta para ela. Pegou a mão da mãe e passou pelos portões do submundo.

Os olhos de Acha se abriram quando o alarme preencheu cada fibra de seu corpo. O pai a havia chamado, mas, antes que pudesse alcançá-lo, foi atacada. Ainda estava deitava, com o rosto virado para baixo, mas a área em que se encontrava agora não era rodeada pela floresta. Olhou ao redor, em pânico, procurando por criaturas que temesse que a tivessem atacado enquanto andava pelo domínio de Fey. Tudo parecia estranho.

Houve um momento de clareza. Uma breve pausa quando tudo pareceu fazer sentido. Não fora um monstro que dera o golpe que a deixou à beira da morte. Tinha sido seu pai. Ele a havia convocado, era quem tinha escolhido para ser seu sacrifício. Lembrou vagamente das palavras esmaecidas da oferenda dele a Hades enquanto seu mundo mergulhava na escuridão. O pai a usara, mas ela ainda não sabia para que fim.

Lembrou-se da escuridão que a prendeu em sua paralisia silenciosa. Uma maldição que não tinha poderes para lutar contra enquanto era forçada a dormir. Mas, através de seus sonhos, recebeu a informação que precisara. Uma forma de continuar sua vida em uma época tão distante da sua.

Desde que dormira, tanta coisa tinha mudado, mas, de uma forma estranha, tantas outras continuavam iguais. Em alguns segundos, quando conseguiu se mover e sentir novamente, a vida do corpo que tinha assumido passou por seus olhos. Memórias que revelaram algumas das histórias que aconteceram enquanto dormia.

Agora, sabia também que quase 1300 anos se passaram desde que seu pai a matara. Tinha sido uma tola por não ter levado mais a sério o interesse dele por magia. Olhando para trás, podia ver claramente que as ferramentas que usou eram para uma ambição maior do que se tornar o próximo xamã.

A cidade, que chamava de lar, fora reduzida a poeira. A passagem dos anos tinha cobrado um preço alto. Ainda que muito tempo tenha passado, as vilas não eram tão diferentes das que conhecera. A dona deste corpo tinha viajado muito. Havia mais povoados do que em seu tempo, mas o mundo também havia perdido um pouco de seu antigo esplendor. Os eventos da vida da jovem passaram pela mente de Acha em um ritmo desorientado. Não podia fazer nada a não ser assistir e se maravilhar.

Cada cidade ainda possuía as velhas trilhas de terra que foram criadas pelos passos dos que viajavam entre elas. As florestas, embora menores agora, ainda se destacavam pela magia, mas a força que sustentava tal esplendor havia enfraquecido muito. As casas térreas ainda eram construídas de madeira e tijolos, qualquer material que fosse abundante na área do povoado, e pareciam mais estáveis.

A vida do corpo que ela tinha tomado se passara muito tempo dentro de uma cidade onde os construtores tinham, de algum jeito, equilibrado um, ou até dois, prédios um em cima do outro. Percebeu, através das memórias, o surgimento de uma nova substância. Ela cobria algumas das trilhas de terra, como se uma pedra sólida inteira fosse colocada sobre o chão. Também notou que aparecia em algumas casas como piso em vez da madeira comum.

Através dos caminhos da cidade, objetos altos de madeira destacavam-se em intervalos regulares. À noite, radiavam quando os cilindros de pedra em seus topos preenchiam-se com óleo e acendiam para iluminar as ruas com o poder de centenas de velas. Esse estilo de iluminação parecia adentrar as casas em uma escala menor. Elas tinham versões pequenas penduradas nos tetos. Essas, entretanto, continham uma pequena tampa, usada para controlar a chama. Também tinham feito lâmpadas de vidro; funcionavam com um princípio semelhante, um tecido absorvia o líquido armazenado em um bulbo abaixo e queimava para criar luz portátil. Essa nova tecnologia era incrível, ainda que com a pouca mudança externa que esperava encontrar quando viu fragmentos deste mundo em seus sonhos.

Agora, ciente das mudanças do tempo que passou dormindo, e acumulando o conhecimento da vida desta pessoa, sentiu-se preparada para enfrentar este tempo novo e estranho. Agora, também era seu. Seu lar, sua família, até mesmo sua história, estavam no passado. O destino tinha encontrado uma força vital para ela tomar, mas temia que seu destino encontrasse o planejado para a vida que substituiu.

Sabia que estava predestinada a tomar a vida daquele corpo, mas ainda era tão impotente quanto a pessoa que morreu tentando fugir dos agressores. Seus músculos doíam, a pele latejava e se mexer era quase impossível. Mas repousar aqui, morrer como a dona do corpo morreria, com certeza não estava nos planos do destino. Tinha que pensar em algo, e rápido. Esta jovem estava destinada a morrer, sabia disso e não tinha esperança que um salvador chegasse.

Os perseguidores estavam atrás dela. Seus hálitos fediam à grande quantidade de álcool que haviam ingerido. O fedor de suor encheu o ar, sufocando-a com o mesmo peso do vazio que antes a aprisionava. Seus olhos flutuavam na escuridão enquanto seu corpo cansado começava a morrer. Nunca viu o rosto do agressor. Só sentiu as mãos ásperas em sua pele quando ele colocou seu corpo flácido em pé. Ela tentou lutar, brigar, mas seu corpo inteiro parecia muito pesado.

Um choro agonizante encheu o ar. Primeiro, achou que fosse ela mesma, então as coisas ficaram mais claras. Um pouco da exaustão havia passado. Os gritos eram de um homem, o que a segurava. Gritou como se seu toque queimasse. Com um pouco da resistência voltando, lutou, sem forças, para afastá-lo. Imagens passaram em sua mente. Cenas desconhecidas que não conseguia enxergar muito bem. As fotos estranhas passaram por sua cabeça tão rápido que não pôde distinguir uma da outra, até a última. Viu uma mão estendida para agarrá-la e, então, acabou.

As mãos dele caíram e o peso de seu corpo puxou os dois para baixo. Perguntou-se se essa força estranha poderia ser outro efeito colateral da magia incompleta de seu pai, ou se o destino interveio para assegurar que ela cumprisse qualquer propósito que tivesse escolhido para ela.

— O que cê fez com ele?

Outro homem se aproximou, mas logo foi parado quando o terceiro agressor estendeu o braço, bloqueando seu avanço. Se ela pudesse ver através das nuvens escuras, perceberia as duas figuras olhando para ela, paralisadas de horror. Levantou-se devagar, tentando defender-se, ciente que, se continuassem o ataque, estaria indefesa. Mas o fato de conseguir ficar em pé parecia detê-los por um tempo. Era doloroso. Suas pernas tremiam enquanto se esforçavam para sustentá-la, e manter-se na vertical exigiu muito esforço. Travou os joelhos para aparentar mais estabilidade, evitando demonstrar fraqueza.

— Cê não tá vendo? — sussurrou um dos homens.

Havia pânico no ar, e ele deu um passo para trás, o braço estendido forçando o companheiro a fazer o mesmo.

— Ela matou ele! A bruxa nem relou nele! Vamos sair daqui!

Ela ouviu seus passos desaparecem rapidamente, mas a escuridão, dançando em frente aos seus olhos, fez enxergar ser tão difícil quanto ficar em pé. Chorou baixo e suas pernas desabaram. Os pontos escuros de sua visão flutuaram e cresceram até que ela sentiu os braços macios da terra sustentando seu peso. Descansaria, só um pouco.

***

— Zo!

O pânico na voz de Daniel a assustou. Ela estava em seu mundo, cuidando da pequena horta de ervas onde Ângela, a mãe de Daniel, cultivava plantas medicinais.

— Zo, Zo — chamou de novo.

Sua voz ecoou pelas árvores que cercavam a casa. A urgência no tom enfatizava sua angústia. Quando a viu, ela já estava correndo na direção de seus gritos, com a colher de jardinagem ainda em suas mãos enlameadas. A expressão em seu rosto refletia o desespero.

— Papai...encontrou...precisa...

Ele arquejava, incapaz de formar uma frase coerente enquanto tomava fôlego. Era uma corrida e tanto da cidade onde morava até o chalé, especialmente quando parecia que o tempo era essencial.

A cidade de Crowley, localizada na ilha de mesmo nome, ficava há uma caminhada rápida de quase trinta minutos de onde Zo vivia. Era uma ilha pequena com algumas ruínas, um porto abandonado, um santuário e um templo, e quase tudo isso ficava longe da cidade central. Era uma ilha em que todos se conheciam. Uma comunidade onde todos se juntavam para fazer sua parte. Ainda que Zo fosse uma forasteira, compartilhava a solidariedade da cidade que conhecera como lar. Tinha um papel ativo, plantando e cuidando das ervas medicinais usadas por Ângela, a médica local.

Daniel tentou respirar antes de falar novamente. Seu rosto estava corado e seu cabelo castanho claro, que normalmente estaria arrumado, estava despenteado por causa da corrida. Os olhos escuros demonstravam urgência enquanto tentava forçar as palavras, mas falhava. Tentou fazer contato visual com os olhos azuis brilhantes dela, mas antes que conseguisse falar, ela o interrompeu.

— Respire. Desacelere.

Colocou a mão nas suas costas enquanto ele se inclinava, respirando profundamente. Ele não conseguiu evitar o sorriso quando viu os joelhos de sua calça sujos de terra. Ela passava mais tempo no chão do que qualquer outra pessoa que conhecia.

— Papai encontrou uma garota, ela está muito machucada.

Assim que disse as palavras, ela soube que precisavam dela. Correu para dentro do chalé e voltou rapidamente com uma sacola de pano velha pendurada nos ombros. Esfregou as mãos, agora limpas, na camisa de linho. Até trocou de calça, apesar de que a única diferença era a ausência das manchas nos joelhos. Ela dava preferência a roupas leves, mesmo quando o tempo estava mais rigoroso. Ele continuou enquanto ela amarrava uma faixa de couro nos cabelos castanhos:

— A mamãe está exausta. Ela fez o que pôde, mas...

— Me mostre.

Daniel pegou sua mão. Foi uma reação automática para impedi-la de ficar para trás enquanto corria na direção da cidade.

Agora ele já a conhecia. Quem quer que fosse antes de chegar aqui, com certeza ela conseguia correr. Pensou, por um momento, que talvez tivesse sido mensageira real, ou arauto, ambos eram conhecidos pela velocidade e resistência. Logo percebeu que era mais provável que fosse uma alquimista treinada, ou uma boticária, especialmente quando considerava suas habilidades. Para sua idade, seus talentos eram extraordinários, e ele podia concluir, com segurança, que mais ninguém no mundo possuía os mesmos dons. Ninguém mais conseguia usar seu estilo de magia.

Recentemente, pensou em como se conheceram. Imaginava com frequência como seria sua vida se ela não tivesse aparecido naquele dia. Tudo era tão melhor desde sua chegada. Sua mão escorregou da dela, ela acompanhava seu ritmo. Ele continuou correndo, esquecendo o cansaço e pensando no dia que seus caminhos se cruzaram...

...Ele havia voltado para Crowley depois de ter passado seus três dias normais no colégio na província oriental de Albeth. Daniel, como de costume, estava distraído pensando nos tópicos discutidos nas aulas, especialmente na de mitologia. Nada o distraía mais do que crenças antigas. Ele disse que iria do pequeno porto direto para casa com as ervas que a mãe pedira. Mas, em vez disso, levou o cavalo que o aguardava até metade do caminho e o fez completar a entrega sozinho.

Encontrou-se, novamente, na floresta. Sua mãe já estava acostumada com estas caminhadas. Ainda que o incentivasse a estudar medicina no tempo livre, esperava que a substituísse como médico da cidade, ficava feliz quando ele não passava todo o tempo estudando. Entendia a importância destes períodos sozinhos. Na verdade, era grata pelos dias que ele chegava tarde em casa. Para ela, significava que estava enterrando sua cabeça, e suas emoções, em algo diferente de estudar. Estava preocupada com o filho, e, frequentemente, se perguntava se tinha amigos. Fazia muito tempo desde a última vez que se envolvera de verdade com outras pessoas.

Semanas se passaram desde que Daniel se aventurou na floresta pela última vez. Era onde se inspirava, onde podia focar e pensar. Todo dia, no final do semestre, ia até ali para pensar no trabalho feito. Mesmo agora, enquanto andava na floresta, sua cabeça estava enterrada em um livro.

Era uma caminhada curta da floresta até sua casa, mas, mesmo assim, sentia como se não houvesse uma única alma em quilômetros. Ninguém mais parecia se arriscar aqui, pelo menos desde que a horta de ervas de sua mãe, que ficava em uma clareira perto da borda mais distante da floresta, tinha se tornado improdutiva. A floresta era conhecida por seus mitos, contos de trolls e fadas, angústia e pesar, como toda floresta. Parecia impossível existir uma sem alguma crença sombria por trás. Não havia forma melhor de manter as crianças afastadas do que com as histórias dos monstros e demônios que perambulavam por ali.

Daniel vinha aqui com tanta frequência que conhecia cada árvore e curva sem nem precisar olhar. Andava sem pensar, deixando sua mente livre para estudar os exemplares de caligrafia antiga que foram encontrados na última década em algumas ruínas subterrâneas. Esperava, algum dia, descobrir seu segredo e conseguir lê-la. Era algo que não tinha sido alcançado desde que a magia Hectariana havia se perdido.

Dizia-se que a arte desta língua havia sido esquecida quando o poder Hectariano se extinguiu, assim como a habilidade de leitura mágica dos textos de antepassados. Tinha certeza que, se estudasse por tempo suficiente, um dia conseguiria entender. Procurava por caracteres repetidos e tentava colocar letras e símbolos enquanto andava. Podia passar horas com o texto e não chegar a lugar nenhum, mas nem as mentes mais brilhantes chegavam. Parecia um código impossível de decifrar, e era por isso que precisava conseguir.

Os livros de Daniel foram arrancados de suas mãos quando ele bateu em algo com tanta força que o fez cair para trás. Sentou-se, confuso. Sabia que não havia nada aqui para bloquear seu caminho. Estava tão ocupado relembrando seus passos para ver onde podia ter errado que um longo minuto se passou antes que visse o que, ou mais precisamente quem, o havia feito parar tão de repente.

— Desculpa.

Daniel se desculpou assim que viu a outra figura. Analisou a jovem, que também caiu sentada após a colisão. Quando a viu, cada músculo de seu corpo se encheu de pânico. Ficou em pé com um salto, os olhos cheios de medo. Deu passos para trás enquanto sua mente o fez lembrar de algo que acontecera há muitos anos. Uma memória que, agora que tinha vindo à tona, o fez congelar, incapaz de retroceder ou dizer outra palavra. Não podia fazer nada além de encarar, paralisado de horror, enquanto revivia o medo que sentiu naquele momento. A jovem tinha seus vinte e poucos anos, não era muito mais velha que ele, mas não foi ela que ele viu, não até o pânico começar a desaparecer.

Devagar, enquanto se acalmava, conseguiu ver a realidade, e não a ilusão criada pelo medo. A figura, que estava sentada no meio da lenha espalhada, ainda não tinha se levantado. Estava com medo dele, e sua reação à sua presença não tinha ajudado. Ela o encarou, com medo de se mover, com medo de falar, e com tanto medo dele quanto ele tivera dela. Ela o encarou, os olhos arregalados, em choque, sem saber como responder à presença daquela pessoa na área que tinha transformado em sua casa.

Foi um silêncio longo, ninguém falava enquanto se encaravam. A mente de Daniel raciocinou, encorajando-o a dizer alguma coisa, qualquer coisa. Os pensamentos correram. Havia, na melhor das hipóteses, uma semelhança sutil com a pessoa de quem se lembrara, mas o cabelo dela era mais vermelho e os olhos tinham um tom diferente. Ele se acalmou e seu lado sensato começou a ver a razão. Era, sem dúvida, muito mais alto que a garota de cabelos castanhos sentada à sua frente. Além disso, medo não era uma emoção que a pessoa que se lembrava conheceria.

Ela se mexeu devagar para recolher os textos espalhados, movendo-se com cuidado. Olhou para o chão, com medo de encará-lo. Seus ombros enrijeceram quando, por um momento, algo em um dos livros chamou sua atenção. Deixou-o aberto em cima da pequena pilha antes de devolver a ele.

— Você está lendo sobre as lendas de Metiseu? — perguntou suavemente, quebrando o silêncio.

Seus olhos passaram rapidamente pela página assim que ela os devolveu. Olhou para os escritos antigos, e então para ela. Demorou um pouco até que erguesse os braços para pegá-los, mas, ao ouvir aquelas palavras, a animação drenou todo o medo restante.

— Você consegue ler isso? — perguntou, duvidando, mas sem conseguir disfarçar a animação.

Não havia motivo para acreditar que estava mentindo. Seus instintos diziam que ela falava a verdade, e isso fazia dela uma jovem muito interessante.

— Você não?

Ela deu um passo para trás. Seu olhar a irritava. Primeiro, foi sua reação estranha ao encontrá-la aqui, e, agora, essa mudança completa em como a via. Não conseguia perceber seu erro, mas, com certeza, alguma coisa que fez havia aborrecido, e muito, esta pessoa.

— Como o livro é seu, eu achei...

Daniel, esquecendo o medo, olhou ao redor para se localizar. Encontrava-se na pequena clareira que frequentemente visitava quando queria algum tempo sozinho. Dava para perceber que ela tinha se estabelecido ali há algum tempo pelo acampamento improvisado e pelo círculo de pedras queimadas que usara para fazer fogo. Ele não visitara o local há algumas semanas, então não tinha certeza de há exatamente quanto tempo estava ali, mas estava claro que ela não havia se afastado muito da área. Era praticamente autossuficiente. Havia uma pequena pilha de frutas, e estava até cultivando pequenas plantas. Imaginou o que poderia ter feito com que buscasse isolamento e refúgio ali.

— Você não é daqui, é? — perguntou Daniel, com calma.

O que queria mesmo perguntar era quem é você, o que está fazendo aqui, e como você diz conseguir ler um texto esquecido há tanto tempo?

— Eu acho que não — respondeu, devagar e com cuidado.

Ela o observava o tempo todo, com cautela. A cada passo que ele dava em sua direção, ela dava um para o outro lado.

— Eu acordei aqui.

A verdade era que não tinha ideia de como chegara aqui, e nem mesmo de onde era aqui. Ficara nessa área enquanto tentava entender a situação. Queria compreender seu passado antes de precisar explicá-lo. Era impossível explicar algo que ela mesma não sabia.

— A ilha é pequena. Todo mundo conhece todo mundo, se você me entende — disse ele, sorrindo gentilmente, ainda havia animação em sua voz.

Olhou para os textos antigos mais uma vez.

—Você acordou aqui? — perguntou, aproximando-se devagar.

Quando se afastou novamente, trombou com uma árvore caída que a fez perder o equilíbrio e a forçou a sentar-se na superfície áspera.

— Não me lembro de muita coisa. Acho que eu saí pra escola. O resto é um vazio, e eu acho que foi há mais de dez anos — respondeu, incapaz de dar mais detalhes.

Com essa frase tinha contado ao estranho quase tudo que sabia.

— Dez anos? — repetiu, incrédulo — Você deveria ir até a minha mãe.

Concluiu rapidamente que ela sofria de amnésia, e, instintivamente, começou a estudá-la, procurando por sinais de ferimentos. O que não percebeu era que a doença que afetava esta estranha era muito mais complexa e mais perigosa do que qualquer coisa que ele poderia diagnosticar.

— Ela é médica — adicionou.

Todos conheciam sua mãe. Era uma médica renomada, conhecida não só na sua terra natal. Era comum pessoas viajarem só para receberem seus tratamentos. Era famosa e, por isso, seu filho também era reconhecido frequentemente.

— Ela tem muitos contatos, você deve ter família em algum lugar.

Ela sorriu enquanto ele se sentava do outro lado da árvore caída, deixando um espaço grande entre os dois. Aproximou-se para pegar o livro das mãos dele, sentia-se menos ameaçada.

— Então, você está estudando as lendas de Metiseu, ou magia? — perguntou, mudando de assunto rapidamente para que tivesse tempo para pensar na sugestão. Algo nele era quase familiar.

— Mitologia e estudos sobrenaturais, entre outras coisas — respondeu com desdém.

Daniel era um estudante aplicado, o que alguns chamariam de gênio. Um de seus professores uma vez dissera que tinha as qualidades de um sábio. Absorvia informação como uma esponja absorvia água. Tinha uma sede insaciável por conhecimento, e já tinha completado os estudos básicos: matemática, história, novas ciências e botânica, muito mais rápido do que o esperado, além de ter terminado seu treinamento como médico para satisfazer a mãe. Agora estava focado em sua paixão, mitologia e o sobrenatural. Se possível, queria trabalhar na área. Ele já se destacava: depois de um semestre, o professor dissera que não precisava mais estudar. Se estivesse em um livro ou pergaminho, já não só tinha lido, mas também decorado. Entretanto, Daniel continuava participando das aulas. Sua presença garantia acesso à biblioteca, a segunda maior no mundo conhecido.

Acima da floresta, o céu começou a escurecer. Ouvindo a música noturna dos pássaros, Daniel percebeu o quão tarde era. Sua mãe se preocuparia se não voltasse logo, e ele sabia o suficiente para não querer fica na mata à noite; mesmo se as histórias fossem só lendas. Ao mesmo tempo, sentiu-se forçado a ficar e descobrir mais sobre esta estranha. Só isso já era incomum. Ele não era uma pessoa muito sociável. Tinha amigos, mas nunca buscou amizades. Estranhamente, depois que a tensão do encontro inicial desapareceu, percebeu que se sentia muito mais confortável conversando com esta pessoa do que com qualquer outro colega.

— Então você sabe mesmo ler isto?

Aproximou-se dela enquanto ela estudava o livro.

— Isto? — disse, sorrindo, e encolheu os ombros — Claro. Conta a história de Metis, de como ela e Zeus tiveram uma criança. Os profetas disseram que se ela concebesse outra seria um menino que tomaria o lugar de Zeus, como ele fez com o pai. Isso o atormentou; então, para garantir sua segurança, ele comeu Metis, que na época ainda estava grávida da primeira criança. Depois, diz-se que a criança que ele devorou com Metis nasceu dentro dele. Há muitos boatos, mas essa é a ideia.

Devolveu o livro para ele.

— Você sempre fala de livros antes das formalidades?

Um sorriso relaxado apareceu nos lábios dela enquanto esfregava os braços para aliviar o frio do ar noturno. Percebeu que deveria preparar a fogueira, ficou em pé para organizar a lenha recolhida que ainda estava espalhada no chão.

— Desculpa.

Só agora percebera que não havia se apresentado

— Eu sou Daniel, Daniel Eliot.

— Zoella Althea. Zo — corrigiu.

Apesar de tudo, lembrava claramente de seu nome. Quando ele acabou de empilhar a lenha restante, ofereceu a ela um graveto em chamas que tinha se esforçado para acender enquanto ela construía a fogueira. Olhou para ele, curiosa, antes de pedir que se aproximasse. Ele inclinou-se para acender a fogueira, mas parou antes mesmo que os gravetos tivessem a chance de pegar fogo.

— Isto é camomila?

Quando viu a inconfundível flor, todos os pensamentos sobre o fogo, inclusive o graveto que segurava, desapareceram. Aproximou-se das folhagens, agachando para examinar a planta que florescia.

— Sim, eu mesma plantei.

Olhou para o canteiro, orgulhosa. Quando acordou aqui, viu que trazia consigo muitas ervas e sementes, e plantou algumas. Tinha muito pouco para chamar de seu, mas, por algum motivo que não se lembrava, entre o conteúdo de sua bolsa estava também uma rolha estranha. Não conseguiu pensar em nenhuma razão para guardá-la, embora tivesse que admitir que o quer que estivesse na garrafa que ela tampara era agradável. Passara muito tempo inalando sua fragrância na esperança que o cheiro pudesse estimular a memória.

— É quase impossível cultivar neste solo — disse Daniel, tirando-a de seus pensamentos.

Enquanto se aproximava do calor do fogo, uma nova ideia surgiu na cabeça dele. Olhou para ela, surpreso ao perceber que a fogueira estava acesa agora.

— Minha mãe tem um chalé perto da borda da floresta. Ela tinha uma horta de ervas incrível, mas o solo ficou ruim e quase tudo morreu. Eu acho que você pode ficar lá por um tempo. É mais seguro e mais quente do que dormir na floresta. Em troca, talvez, você poderia cuidar da horta — disse. 

Tentava entender como ela podia ser tão boa em botânica e, ao mesmo tempo, saber ler uma língua que ninguém conseguira decifrar em anos. De um jeito ou de outro, tinha que garantir que ela continuasse a conversa. Sentiu-se obrigado a aprender tudo sobre ela, o que seria difícil, dada às condições.

— Ok — respondeu Zo.

Algo nele quase a fez lembrar de alguma coisa. Ela o encarou, atenta, incapaz de localizar a memória esquecida, mas esta familiaridade estranha dizia que poderia confiar nele...

...Zo mal tinha chegado à porta da casa de Daniel quando Ângela a empurrou rapidamente para dentro, vendo o filho a alguns passos de distância. Quando ela cumprimentou Zo, a voz o tirou de seus pensamentos. Era difícil de acreditar em tudo que acontecera em um ano e meio. Ele sentia como se ela sempre estivesse aqui, como se tivessem sido melhores amigos desde sempre.

— Zoella, graças aos Deuses — quando disse aquilo, percebeu que a situação era séria; Ângela sempre a chamava de Zo, como todo mundo — Eu fiz tudo o que pude. Ela não responde. Por conta dos últimos dias, eu esperava...

Zo acenou, concordando em silêncio, enquanto ia até a pia para lavar as mãos. Ângela andava ocupada ultimamente e, ainda que ajudasse como podia, Zo frequentemente achava que estava atrapalhando. Ficou claro que Ângela havia tomado conta da paciente por algum tempo antes de mandar Daniel chamá-la. O cabelo loiro acinzentado na altura dos ombros soltava-se do rabo de cavalo e emoldurava seu rosto pálido e seus olhos escuros, que revelavam o cansaço do trabalho.

Incapaz de ajudar mais, Ângela aproveitou para descansar. Sentou-se na cadeira que encarava o vitral. A luz colorida do vidro elegantemente modelado entrava na sala e dançava pelo chão de madeira. Sabia que a paciente estaria em boas mãos. Embora Zo tivesse a mesma idade que seu filho, tinha habilidades com ervas e alquimia que contrariavam sua idade e ultrapassavam as dela própria. Tinha um talento natural para a medicina, algo que nunca poderia ser ensinado. Era como se o paciente e as ervas falassem com ela, dizendo o que era necessário. Era uma habilidade que há muito tempo era chamada de tradição. Um talento raro que Ângela possuía, mas, comparado a essa jovem, era intermediária. Poderia relaxar sabendo que Zo estava lá, e que a garota parecia não ter ferimentos graves. Após um pequeno descanso poderiam discutir o que Zo tinha descoberto e, se tivesse descoberto algo, criar um plano a partir daí.

Zo subiu devagar as escadas de madeira, seguida por Daniel. No último ano e meio, este lugar tinha se tornado uma segunda casa para ela. Caminhava para a sala mais distante sem nem pensar. A porta estava aberta, permitindo que a luz saísse e iluminasse o corredor escuro.

A casa de Daniel era a maior da vila, onde havia apenas duas casas de dois andares; a deles, que também funcionava como hospital, e a de Stephen, antigo amigo de Daniel. No segundo andar da casa havia um quarto para pacientes que precisavam de monitoramento, o dele, o dos pais, e um menor para emergências que não pudessem ser resolvidas no andar de baixo, onde havia alguns quartos extras para cirurgias e para pacientes que precisassem descansar.

Ser a médica de uma cidade pequena não era fácil, e viver em uma ilha afastada significava que eles precisavam de todas as instalações necessárias para tratar os casos mais sérios. Sua mãe sabia mais do que o necessário para cumprir todas as obrigações, e ainda tinha tempo para atender aqueles que vinham pelo mar para uma consulta. Era famosa, especialmente depois que a maioria dos médicos começou a praticar a medicina e os tratamentos mais modernos. Ângela, ainda que proficiente nos dois, preferia as formas mais tradicionais.

Dentro do lugar que chamavam de sala de recuperação, o pai de Daniel, Jack, observava a garota dormindo. Ele franziu a testa. Quando viu Zo, seus olhos escuros se suavizaram um pouco. Levantou para cumprimentá-la, passando a mão pelo cabelo ruivo. Após a breve cordialidade, ele saiu rapidamente.

Tinha algo de diferente na amiga de Daniel. Algo que o deixava desconfortável perto dela. Já a julgara mal uma vez, e mesmo depois de tão pouco tempo juntos estava claro que Daniel a adorava. Temia que o filho nunca fizesse novos amigos depois que perdeu Stephen. Tinha se tornado introvertido, se distanciado de todos, mas Zo havia provocado algo nele. Depois que se conheceram, pela primeira vez em muito tempo, viram Daniel sorrir.

Jack tinha medo que saber o que ela tinha de tão diferente mudasse sua opinião para sempre. Era muito boa para ser verdade. Tinha transformado uma horta morta em algo vivo e florido em pouco mais de quinze dias. Seu talento com plantas era inacreditável. A esposa pensara em transformá-la em sua aprendiz. Entretanto, estava claro que Zo não sabia a parte mais difícil da medicina, como suturas e cirurgias, ainda que suas habilidades em botânica fossem inigualáveis. Sempre que um caso precisava de uma pesquisa mais profunda, parecia que, de algum jeito, Zo sabia o que fazer.

Não conseguia evitar a surpresa de que uma pessoa como ela ficasse perdida por tanto tempo. Era, claramente, bem-educada. Com certeza alguém, em algum lugar, estava procurando por ela, mas não havia relatos de uma curandeira perdida, ou de alguém que combinasse com sua descrição.

Olhou para Ângela, que dormia sentada em sua cadeira favorita. Era o lugar perfeito para descansar e ao mesmo tempo ter certeza de que veria Zo antes que fosse embora. Não se surpreendia que já estivesse dormindo. Chegara em casa de madrugada após ser chamada para o nascimento do primeiro filho da senhora Hamisley. Fora um parto doloroso e complicado que resultara no nascimento de um garoto saudável. Antes disso, havia cuidado dos envolvidos em um acidente na serraria. Parecia que, depois de dias, tinha conseguido a chance de descansar, e ele estava grato por ela ter este momento. Cobriu-a com o cobertor que normalmente enfeitava o encosto da cadeira, aproveitando para observá-la dormir um pouco.

***

Zo ajoelhou ao lado da paciente e colocou a mão delicadamente em sua testa. Era o que frequentemente fazia para entender a doença de uma pessoa, uma técnica de diagnóstico conhecida como toque simpático. Uma habilidade que só os curandeiros tinham. Quando tocava alguém, sabia se, e o que, sofria. Era uma benção e uma maldição.

Daniel pegou o pilão e almofariz que estavam ao lado da mesa enquanto Zo procurava algo em sua bolsa. Retirou três saquinhos de ervas e o instruiu na quantidade e na ordem que deveriam ser usados. Enquanto mexia a poção, Zo examinou os machucados da garota.

Alguns ferimentos eram profundos, mas o sangue que havia perdido não era suficiente para causar a perda de consciência. Olhou mais profundamente, não com os olhos, mas com a mente, enquanto a mão repousava no peito da jovem. As sensações que recebia dela eram instáveis. Mesmo com a pele, não conseguia localizar a causa de seu problema, algo que normalmente era fácil.

— Eu não consigo ver — sussurrou.

Daniel parou de repente, resistindo à vontade de virar e olhar para ela.

— O que você quer dizer?

Havia preocupação em sua voz. Ela sempre via algo, era o que fazia dela tão boa. Sempre detalhava o problema exato após poucos momentos aplicando seus métodos especiais.

— Os ferimentos não são suficientes para causar a perda de consciência profunda.

Zo suspirou e Daniel passou a ela os ingredientes misturados que haviam sido moídos e transformados numa pasta espessa. Ainda que Ângela já tivesse tratado os machucados, a mistura faria bem para o corpo dela.

— Talvez ela possa me contar alguma coisa — murmurou Zo, a voz diminuindo.

— O que?

— Nada.

Zo, teoricamente, sabia o que fazer. Estava acostumada, mas fazia tanto tempo. Pelo menos onze anos se passaram desde que tentara algo desta magnitude. O buraco em sua memória não significava que seus talentos não funcionavam. Quando chegou, nada além de escuridão se estendia atrás dela. Recentemente, começara a se lembrar de pequenos detalhes. Ainda não se lembrava de nada depois dos doze anos, mas lembrava dos rostos da mãe, do mestre e da amiga, Amélia. Sabia, mesmo não fazendo sentido, das artes Hectarianas e que, quando criança, fora ensinada a usá-las. Apesar disso, não se lembrava do nome de sua casa nem de nada que pudesse levá-la até lá.

Além disso não lembrava de mais nada, mas seria uma tola se não usasse seus talentos neste período. Eram instintivos. Não precisava lembrar das palavras ou dos rituais. Eles simplesmente apareciam, e ela aprendera a confiar neles.

Regulou a respiração para focar. Daniel ouvia atentamente e escrevia os encantamentos. As palavras em si eram ditas em uma língua antiga, mas isso só acontecia quando precisava se concentrar muito. Os feitiços mais fáceis eram ditos na língua comum, para invocar seus poderes. Às vezes, ele imaginava se, nesses casos, as palavras eram mesmo necessárias.

Uma dor aguda disparou no braço dela. Era tão intensa que fez com que um leve grito saísse de seus lábios. Os dentes estavam cerrados, resistindo. Daniel foi para seu lado na hora. Pairava sem saber o que fazer se ela estivesse em perigo. Sabia que não podia tocar nela, uma interrupção, por menor que fosse, poderia causar repercussões mais sérias.

Zo não percebeu que ele estava ao seu lado; naquele momento, estava em outro lugar. Assistia à força vital de uma garota, que era quase idêntica à figura deitada em sua frente, deixar o corpo para dar a mão a alguém que a acompanharia para o outro mundo. Podia ouvir os sons das pessoas que se aproximavam dela enquanto saíam da floresta. De repente, sentiu a mão de Daniel tocá-la levemente.

— Eu não tô entendendo o que eu tô vendo. Ela tá morta? — disse Zo, com mais dificuldade do que esperava.

Sua respiração pesou quando se lembrou onde estava. Daniel tirou a mão. Fora convencido de que ela estava pronta para desmaiar. Sua respiração tornara-se inconstante e curta enquanto perdia a cor. Ele não podia fazer nada além de assistir, esperando ao seu lado por, talvez, trinta minutos, acreditando que sua respiração estava parando. Quando seus lábios alcançaram um tom leve de azul, percebeu que precisaria agir, sem se importar com as consequências.

— Uma vez eu li sobre um imortal que tinha a habilidade de tomar o corpo de outro substituindo a essência do ocupante e enviando-o para Hades. Dizem que ele continuou fazendo isso até que tivesse poder suficiente para recuperar sua forma. Não era assim, eu tenho certeza.

Ele não conseguia esconder o alívio na voz enquanto dava uma resposta, sentindo a necessidade de preencher o silêncio com algum tipo de solução. Desde que ela havia falado, a maior parte de sua cor voltara. Era quase como se o corpo dela precisasse ser lembrado de que estava vivo, o que, segundo o conhecimento dele sobre magia, não era necessário para a pessoa que tomaria o corpo. Se o receptor do encantamento estivesse morto haveria motivos para preocupar-se, mas a garota na cama estava claramente respirando.

Zo suspirou quando a resistência entre elas parou abruptamente. Suas pernas fraquejaram, recusando-se a aguentar seu peso. Caiu no chão, respirando com dificuldade. Rapidamente, esfregou a testa com a parte de trás do braço, removendo as gotas de suor.

Os olhos da paciente se abriram. Saltou para sentar-se enquanto observava, assustada, a sala.

— Está tudo bem. Você não precisa ter medo.

A voz de Zo era reconfortante. Ela apertou gentilmente a mão da paciente. Os temerosos olhos castanhos se acalmaram um pouco quando viu a mão sobre a sua.

— Você tem família, alguém que precise saber que você está aqui?

A jovem balançou a cabeça, observando os arredores com cuidado.

— Então você vai ficar comigo — anunciou Zo — Seria legal ter companhia, e, assim, eu posso ficar de olho nos ferimentos por um tempo.

A garota acenou lentamente antes de falar.

— Sou Acha — disse, com a voz trêmula — A quem devo meu agradecimento?

Era só uma das perguntas que tinha, e a primeira que queria respondida. Sabia várias coisas sobre esta época, o quando e a maior parte do onde, então esta parecia ser a questão mais importante.

— Eu sou Zo.

Sorriu antes de inclinar a cabeça na direção de Daniel

— E este é meu amigo Daniel. Foi o pai dele que te encontrou.

Daniel ofereceu a mão, educadamente. Mal tinham se tocado quando sentiram a carga no ar criar uma poderosa resistência entre eles. Ela se afastou rapidamente e, em um único movimento, também tirou a mão debaixo da de Zo; seus olhos estavam cheios de medo, ela mordia o lábio inferior.

— Desculpa, não foi minha intenção, não mesmo. Eu achei que...

Ela deu uma olhada frustrada, movendo as mãos para apoiar a cabeça.

— É como eu pensava.

Ele olhou para Acha, emoção enchia suas palavras.

— O que eu acabei de sentir, somente outra pessoa tinha uma variação dessa habilidade, mas é só uma lenda. O corpo dela está se protegendo, absorvendo um pouco da vida dos que a tocam, e, finalmente, os matando. Aposto que ela poderia tomar posse de suas formas também, se quisesse.

Os olhos de Daniel brilhando quando se lembrava do mito. Zo já vira aquela expressão antes, quando seus caminhos se cruzaram pela primeira vez. Já estava fascinado por esta mulher e pelas histórias que contaria.

— Pelos Deuses, não tive a intenção de machucá-lo — disse suavemente.

— Daniel, pare de assustá-la.

Zo virou seu olhar sério na direção dele, as sobrancelhas juntas em desaprovação, antes de tirá-lo da sala. Não era apropriado que dissesse aquelas coisas na frente da garota apavorada, mas duvidava de sua habilidade de silenciá-lo.

— Você não vê? — continuou ele, baixando o tom — O que você disse sobre ela estar morta. Eu ainda não entendo algumas coisas, mas, pelo que pude perceber, ela é como aquela deusa que eu mencionei mais cedo, mas sem controle. Eu acho que qualquer um que tocar nela, e esta é a parte que eu não entendo, vira sua vítima. O toque rouba a vida, mas, por algum motivo, você é imune. Só posso concluir duas coisas, ou você não é uma hospedeira adequada ou, o mais provável, algo que você fez afetou o poder dela em um nível mais profundo. O que você fez, exatamente?

— Eu dei a ela o que precisava pra acordar.

Daniel desviou o olhar animado do quarto onde Acha repousava para buscar em Zo mais explicações, uma ação que o lembrou o que o tratamento da garota custara. Apesar de usar a parede como apoio, parecia que tinha dificuldade em manter-se em pé. Vendo isso, achou melhor não fazer mais perguntas, pelo menos por hoje.

— Devo preparar o cavalo e a carroça?

Jack apareceu no fim da escada, suas palavras causaram um nervosismo no estômago dela. Um cavalo e uma carruagem não eram o melhor meio de transporte para onde Zo morava. Isso a fez pensar no motivo de sua oferta. Tinha dado uma olhada rápida nela, o que a fez pensar se parecia tão mal quanto se sentia.

— Se não causar nenhum incômodo — disse, agradecida.

Jack sempre pareceu cauteloso perto dela, mesmo que não entendesse a razão. Sempre tinha assuntos a serem resolvidos quando ela estava perto. Tentou dizer a si mesma que estava sendo paranoica, mas realmente parecia verdade. Mesmo se ficasse para o jantar, a conversa seria, na melhor das hipóteses, tensa.

— Você parece cansada. Daniel vai levá-la — insistiu antes de desaparecer.

Quando ele saiu, ela olhou para Daniel, preocupada.

— Ele deve ter ouvido nossas vozes.

Sabia que a reação do pai teria sido muito diferente se percebesse o menor indício do que tinha acontecido. Não muito tempo depois de seu primeiro encontro, Zo confiara em Daniel para contar sobre seus talentos únicos. Tinham decidido que sua aparente linhagem Hectariana deveria ser um segredo muito bem guardado. Afinal, as pessoas tinham formas estranhas de reagir a coisas que não entendiam.

— Vou organizar para que Acha venha conosco, só vou contar que ela acordou enquanto estávamos juntos. Por causa de sua habilidade, seria melhor se ela fosse mantida longe de pessoas como a minha mãe, que ficam paparicando os pacientes.

Zo acenou, concordando. Uma parte sua sentia que esta jovem deveria ficar com ela.

***

Acha descansava dentro do chalé enquanto Daniel ajudava Zo a colocar os últimos pedaços de lenha na fornalha que ficava sob o banheiro. Este sistema era revolucionário. Era o primeiro a usar madeira para aquecer a água embaixo da própria banheira. Fora desenvolvido há apenas dez anos, mas todas as casas já tinham um.

— Faça fogo para aliviar sua dor, aqueça essa bola de calor — sussurrou ela.

Mesmo enquanto falava as palavras, questionava seu real significado. Ultimamente, qualquer coisa que dizia chamava sua atenção. Ela estava certa de que poderia invocar a magia sem precisar rimar, mas a única memória que tinha reforçava essa necessidade.

Daniel, como sempre, assistia fascinado a pequena fagulha flutuar acima da mão dela. Em segundos, aquilo cobriria a palma de sua mão, parecendo aquecer-se por dentro até que a esfera estivesse completa. Tinha a aparência de um sol em miniatura, flutuando gentilmente e esperando um comando. Manipulando o ar ao redor, direcionou a bola fundida na direção da lenha, somente liberando a magia quando a madeira começou a estalar.

Daniel saíra para permitir que Acha se sentisse confortável no novo ambiente. Quando a água estava quente, Zo a ajudou a entrar no banho fumegante de ervas e a deixou para que relaxasse.

Embora Acha fosse uns cinco centímetros mais alta, Zo tinha certeza que as roupas que deixara para ela serviriam, pelo menos até que as suas fossem lavadas e consertadas, uma tarefa que começou imediatamente no jardim com seu balde de madeira e um tanque.

Após o banho, Acha esperara desconfortavelmente dentro do chalé, mas, com o passar do tempo, reuniu coragem para sair. Olhou em volta, observando os arredores, esperando que sua presença fosse notada e não precisasse atrapalhar Zo. A área ao redor era uma floresta densa e a brisa gentil trazia uma delicada fragrância de flores. O chalé fora construído em uma grande clareira, onde uma parte da terra fora usada para cultivar ervas e plantas medicinais.

Não precisou esperar muito até que Zo a visse e oferecesse um sorriso e um aceno amigável. Ela corou e inconscientemente colocou o cabelo castanho atrás das orelhas. Em seguida, foi em sua direção.

Zo não pôde deixar de notar que seu cabelo parecia maior do que quando se conheceram. Havia várias diferenças sutis que ela atribuía ao fato da garota não estar mais coberta de sangue, lama e destroços de sua provação. Apesar da diferença de altura, as calças serviram perfeitamente e a camiseta, que Zo tinha vergonha de usar, parecia feita para ela.

— Está se sentindo melhor? — perguntou Zo enquanto pendurava a calça de couro de Acha no varal, amarrado entre duas árvores grandes.

Antes de lavá-la, passou um tempo consertando os rasgões para que ficasse boa o suficiente até que fosse substituída.

— Obrigado.

Acha acenou, dando um sorriso cansado. Enquanto falava, Zo a acompanhou de volta para o quarto, onde dobrou as cobertas sobre o colchão macio usado como cama. Não era tarde, havia mais umas quatro horas de luz, mas Acha precisava descansar e, após os eventos do dia, ela também se sentia exausta.

Capítulo Dois

Estranhos familiares

Menos de um mês se havia se passado desde que Acha voltara para o chalé com Zo. Os primeiros dias foram difíceis. Apesar de suas conquistas do passado, havia perdido parte da confiança que ostentava. Levou algum tempo para adaptar-se ao dialeto e aos costumes diferentes. Mas utilizando a experiência da garota cuja força-vital tinha substituído, conseguiu adaptar-se relativamente rápido.

Era tão diferente de sua época, mas agora estava acostumada e sentia-se em

Está gostando da amostra?
Página 1 de 1