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O Legado: Série do Deus Morto, Livro 1
O Legado: Série do Deus Morto, Livro 1
O Legado: Série do Deus Morto, Livro 1
E-book369 páginas7 horas

O Legado: Série do Deus Morto, Livro 1

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Sobre este e-book

O jovem Torben estava resignado a uma existência mundana e protegida, até que um encontro casual levou-o a um mundo perigoso que ele jamais imaginara.

No mundo de Ulskandar, onde humanos, anões e todas as formas de vida coexistem, todos devem lutar e morrer juntos nas guerras entre os reinos rivais e as tribos selvagens. Mas, quando relíquias e poderes do passado ameaçam surgir, os reinos frágeis são levados à beira da destruição.

Será que Torben estará à altura da ocasião e se tornará o herói que o reino precisa – ou cairá como tantos outros antes dele?

IdiomaPortuguês
Data de lançamento28 de jan. de 2021
ISBN9781071585573
O Legado: Série do Deus Morto, Livro 1

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    O Legado - C.J. Pyrah

    Prólogo

    A batida dos saltos das botas preencheu a entrada quando um grupo de guardas invadiu o palácio.  Seus escudos estavam erguidos e prontos, as espadas desembainhadas e as lanças apontadas.  O sol do amanhecer cintilava sobre as armaduras polidas, o calor crescente do dia tomava conta dos soldados conforme eles corriam, fazendo com que gotas de suor escorressem sob os elmos pelos rostos.  Os guardas, contudo, não tinham intenção de parar.

    Dos corredores vizinhos e das salas do palácio, era possível escutar os sons da batalha violenta. Gritos de dor e da guerra sanguinária e os clamores de incentivo dos saqueadores se desprendiam das paredes.  Homens e mulheres, antes leais, agora se refestelavam na sede de sangue e nas riquezas recém encontradas, e os guardas sabiam.  Todos eles conheciam a punição por deserção, especialmente quando confrontados com o inimigo.

    A formação seguiu o corredor sinuoso até se abrir em um enorme salão para banquetes. As paredes estavam cobertas por mosaicos monumentais que mostravam as glórias do Reino de Dazscor. Agora, os rostos cinzelados dos reis e rainhas do passado olhavam com orgulho para uma cena de caos. As mesas para banquete haviam sido derrubadas, os ornamentos espalhados e quebrados no chão.

    Os saqueadores, vasculhando os escombros e despojando os cadáveres dos cortesãos que haviam encontrado ali, olhavam para os guardas com avidez conforme a formação derrapava até parar na frente deles. Um dos saqueadores, um homem alto e calvo, com o rosto manchado de sangue, começou a caminhar lentamente em direção ao nó de lanças que emergiam do corredor. Quando ele se aproximou, outros saqueadores apareceram por atrás com as mãos se estendendo para os punhos das espadas. Parando a alguns metros dos guardas, ele abriu bem os braços e sorriu largamente.

    - Irmãos, irmãs, sejam bem-vindos à nossa corte! Vocês não têm nada a temer, nós somos camaradas, todos nós. Todos cumprimos com lealdade nosso dever para com o rei e o país e agora outro idiota quer levar a coroa. Por que devemos ficar no caminho? Venham, abaixem as armas e se juntem a nós, vamos tomar a nossa parte dos despojos antes que a nova ordem tome para si. Os membros da realeza estão todos mortos, não temos nada a temer deles agora!

    - Eu discordaria de você!

    As fileiras da frente da guarda se separaram para que uma figura menor, vestindo uma armadura muito mais elaborada do que as outras, ostentando uma capa verde estampada com uma rosa vermelha, passasse. Ela tinha longos cachos castanhos e uma postura ereta e régia. Ela ficou parada desafiadoramente com os pés afastados.

    - Ah, princesa, se soubesse que era você, jamais sonharia em dizer essas coisas na presença de sua divina majestade ...

    A voz do saqueador era puro sarcasmo enquanto ele fazia uma reverência muito exagerada e os homens atrás dele gargalhavam.

    A princesa continuou encarando o homem, a ferocidade gelada de seu olhar sufocando o riso dos amotinados diante dela.

    - Não ligo para o que você pensa de mim ou de meu pai. Não estou aqui para defendê-lo. Tudo o que preciso saber é se você vai deixar minhas tropas e eu seguirmos nosso caminho, ou se você e seus comparsas imundos desejam morrer?

    O capitão-saqueador manteve o sorriso largo enquanto desembainhava a espada e dava passos para frente e para trás.

    - Então, a princesinha preciosa quer brincar de soldado, não é? Você certamente veio vestida para a ocasião! Por quanto vocês acham que essa armadura bonita e brilhante venderia, rapazes? Vou gostar de tirá-la de você, do seu cadáver, se for preciso, embora prefira você viva para sentir.

    Ele deu um pulo à frente e a ponta da espada apontou para a garganta da princesa. Ao seu redor, seus homens avançaram, saltando até os guardas e tentando arrancar os escudos deles. A formação, no entanto, manteve-se firme.

    Os guardas deram um passo para trás quando o bando de saqueadores surgiu, depois, ignorando-o, serpentearam as lanças entre os escudos, rasgando gargantas e cravando ventres.

    Com olhos famintos, o capitão-saqueador fez sua espada voar pelo ar, mantendo o olhar fixo em seu alvo... mas a princesa sumiu. Com agilidade, ela desviou do golpe desajeitado, deslizando a mão para o ombro, onde o punho do sabre mal era visível através dos cachos grossos e em cascata. O sabre silvou pelo ar e fez um corte profundo e vermelho nas costas do saqueador. Ele gritou e caiu de joelhos, silenciado, quando o sabre degolou-o.

    Em silêncio, os guardas entraram novamente em forma ao redor da princesa e seguiram pelo salão; os saqueadores que sobraram foram se espalhando pelos corredores. Ela se aproximou de um mosaico atrás da mesa real levantada: uma rainha com os braços estendidos em boas-vindas. Com cuidado, ela pressionou uma joia no centro do cinturão do mosaico da rainha, que afundou na pedra atrás. Com um leve arranhar, o mosaico se dividiu e revelou uma escada escondida mergulhando na escuridão.

    O cofre estava repleto de uma luz azul-esverdeada estranha tremeluzindo pelas paredes, o que dava uma sensação de afogamento. O mar de tesouro, que preenchia o espaço e desaparecia nos recessos do cofre, brilhava sob a luz estranha, mas estava quase irreconhecível. Ouro, prata e joias compunham o tesouro. Guardas imperiais corriam e traziam mais caixas de objetos preciosos para juntar ao tesouro desde uma passagem lateral, e o conteúdo vazava enquanto eles tentavam desesperadamente terminar a tarefa.

    Eles contornaram a antecâmara do cofre, evitando um grande altar de mármore onde uma figura pálida e seu assistente encapuzado entoavam palavras estranhas e desenhavam símbolos raros no ar... o lugar de onde emanava a luz misteriosa.

    Houve um barulho quando a princesa e seus guardas entraram no cofre pela passagem central. Eles foram recebidos por um burocrata de aparência preocupada, que tentava desesperadamente organizar a loucura.

    - Sua Alteza, o que você está fazendo aqui? Não é seguro. Você deveria estar indo para o porto!

    - Onde está meu pai? Eu pensei que ele estivesse aqui embaixo.

    - Não, ele já partiu para o navio. Por favor, você deve ir; o feitiço que estão lançando é imprevisível demais para você estar aqui.

    - O que está acontecendo aqui, lorde Chamberlain? Por que esses homens não estão defendendo o povo desta cidade?

    - O rei ordenou que o tesouro dele fosse transportado para cá e protegido por encantamentos. Os aramorianos já estão atacando os muros e, pelo menos metade de nossos homens, se voltou contra nós. A cidade está perdida e devemos proteger o legado de Dazscor para o futuro!

    Do altar vinha um zumbido profundo e reverberante e, na medida em que a luz se intensificava, as pessoas no cofre protegiam seus rostos. Quando a luz voltou ao seu brilho perturbador, a princesa piscou e esfregou os olhos.

    A figura do feiticeiro ainda estava em pé no altar, os braços circulando desesperadamente enquanto ele continuava traçando símbolos no ar, gritando palavras de poder. Sua assistente correu do altar até lorde Chamberlain, segurando um objeto grande e redondo na mão.

    - Aqui, alguém deve levar isso ao rei. Depressa! Não podemos controlar o feitiço por muito mais tempo!

    - Um dos meus guardas levará, Ebor!

    A princesa chamou um dos guardas, que deu um passo à frente.

    - Leve esse objeto ao rei o mais rápido possível. Ele está indo para a Barca Real, não é difícil encontrá-lo.

    - Mas, Alteza, o meu lugar é ao seu lado ...

    - Eu lhe dei uma ordem Ebor, agora vá! Não estarei muito longe, estarei logo atrás de você e terei seus camaradas para me proteger. Vá!

    Ebor largou a lança e o escudo, pegou o objeto e correu pela passagem lateral.

    - Agora, Sua Majestade deve ir também ...

    As palavras de lorde Chamberlain foram interrompidas quando outra onda de poder emanou do altar. Dessa vez, uma grande fenda apareceu no teto da antecâmara. Mas os guardas retiraram a princesa do caminho, enquanto uma parte enorme do teto estava esmagando lorde Chamberlain.

    Os guardas tentaram arrastar a princesa para trás do altar, em direção à passagem lateral, e seus pés escorregando em moedas e joias conforme se movimentavam.

    A voz do feiticeiro foi abafada pelo estrondo e pelo crepitar do feitiço que ele tentava conter. Sua assistente puxou a bainha da capa e tentou se livrar dos escombros. Outra onda de luz e feitiço explodiu, derrubando todos no cofre e na antecâmara.

    A princesa foi jogada ainda mais para dentro do cofre, batendo a cabeça em um baú de tesouro. Ela piscou e a sua visão embaçou. Ela mal podia ver os guardas esparramados sobre ela. Então, tentou se levantar e, quando viu o corpo do feiticeiro esmagado próximo a ela... escuridão.

    Capítulo I

    Havia um frescor especial no ar naquela época do ano, quando o inverno começava a dar lugar à primavera. Esse efeito é especialmente visível nas primeiras horas do dia, quando a luz do sol é nova e pura, quando o mundo ainda está tentando despertar de uma noite de sono. Respirar neste ar faz a mente se concentrar, reprime os pensamentos erráticos e irritantes que flutuam espontaneamente através do pensamento consciente. Essa troca natural das estações é o momento perfeito para refletir sobre as mudanças que podemos fazer em nossas próprias vidas.

    Isso, pelo menos, era o que Torben pensava ao atravessar o campo naquela manhã. Ele sempre se considerara um pseudofilósofo e, muitas vezes, sentia que estava mais próximo de responder as perguntas mais profundas da vida ao realizar tarefas mundanas, principalmente no início da manhã.

    Enquanto atravessava o campo, ele enfiava a mão no saco em volta do pescoço, puxava um punhado de sementes e espalhava-as pelo campo, sentindo-se perdido na monotonia da tarefa. Enfiar e espalhar, enfiar e espalhar, enfiar e espalhar.

    A única coisa que conseguia distrair seus pensamentos eram os sons distantes do mestre Amos, mais adiante no campo, guiando o arado pelo mar de terra. Ele conduzia os bois com destreza, um pouco para a esquerda, depois um pouco para a direita, escolhendo o melhor caminho, deixando os sulcos mais retos e precisos na trilha do arado. Ficava evidente que mestre Amos vivia e respirava agricultura desde que nascera.

    A mente de Torben continuava vagando. Ao final de um dia de trabalho, ele havia pensado o suficiente para resolver todos os problemas do mundo, pelo menos três vezes. Isto é, se ele de fato chegasse a conclusões concretas. Como em todas as suas reflexões, Torben sempre parecia estar à beira de um avanço, quando se distraía com a próxima pergunta que surgia na mente.

    Quando chegou ao final do campo, a linha da filosofia passara da natureza elementar das mudanças sazonais para a questão, ainda sem resposta, sobre aonde exatamente ele havia deixado seu dominó. Ele enfiou a mão no saco e espalhou as sementes entre a terra recém virada.

    - Tudo pronto, mestre.

    Lá do final do campo, mestre Amos levantou a mão em reconhecimento, conforme ia trazendo os bois de volta e começava a empurrá-los para o portão. Torben deu um passo à frente e sentou-se contra uma das muitas árvores que ladeavam os limites do campo de mestre Amos e, com um suspiro de alívio, tirou o saco do pescoço, depositando-o no chão.

    Nem precisou olhar para saber que o pescoço e o ombro esquerdo haviam sido arranhados pelo saco grosso de cânhamo. Ele esfregou-os meditativamente, ponderando sobre a perspectiva do que traria o resto do dia. Mais daquilo de ir e voltar pelos campos atrás do arado, enfiar e espalhar, enfiar e espalhar, era o suficiente para fazer um homem enlouquecer.

    - Ajude-nos com isso, rapaz.

    Mestre Amos trouxera o arado e o par de bois até próximo de Torben e da árvore em que ele estava encostado.

    Torben se levantou e sua sombra envolveu a figura muito menor de mestre Amos, que devia ser no mínimo trinta centímetros mais baixo do que ele. Torben levantou o cabo do arado e mestre Amos desamarrou os bois, depois levou-os até um poste próximo. Enquanto amarrava-os, Torben podia ouvi-lo sussurrando baixinho, mantendo-os calmos.

    Ele era um homem gentil e envelhecido. Para ser sincero, Torben não tinha ideia de quantos anos mestre Amos realmente tinha. Desde que o conhecera, Amos vivia em um estado perpétuo de velhice. Seu rosto castigado pelo clima mal registrara mudanças, mas ultimamente Torben notou que ele caminhava com mais dificuldade e que suas costas pareciam mais encurvadas pela fadiga.

    - Bom rapaz, - disse mestre Amos, enquanto Torben trazia uma braçada de forragem para colocar diante dos bois. - Acho que vamos terminar o próximo campo e o de cima até o final do dia, com sorte. Talvez chova amanhã, o que seria uma má notícia para a lavoura.

    Como todos os agricultores, mestre Amos parecia ter um sexto sentido quando se tratava de prever o clima. Torben gostava de pensar que tudo tratava-se apenas de adivinhação cega, mas havia perdido a conta de quantas vezes mestre Amos previra o tempo e acertara.

    Quando Torben se aprumou, mestre Amos se abaixou com cautela até o chão, ao lado da árvore. Começou a desembrulhar um pano e ofereceu um naco de pão a Torben, quando este se sentou ao seu lado. Torben puxou uma faca pequena de uma bainha presa ao cinto e entregou-a ao homem mais velho, que havia tirado um pedaço de queijo duro do pacote. Em silêncio, ele pegou a lâmina e dividiu o queijo em dois, entregando a Torben uma metade, junto com a faca.

    Mestre Amos era um homem de poucas palavras. Houve muitos dias em que Amos não disse uma palavra, nem para Torben nem para sua esposa sofrida. Não que ele fosse hostil, longe disso; ele era uma das pessoas mais gentis que Torben já havia encontrado. Amos, ao que parecia, não achava que conversa fiada era uma parte necessária da existência.

    Torben pegou um odre que deixara cair e deu um grande gole. Ele secou a boca e passou o odre para Amos.

    - Você vai trazer mais ajuda para o resto da temporada?

    Amos olhou para ele, o cansaço cobrindo seu rosto. Suspirou profundamente e passou as mãos por um emaranhado de cabelos grisalhos. Torben sabia exatamente qual seria a resposta.

    - Acho que não serei capaz de juntar dinheiro para isso este ano. Eu sei que no ano passado eu disse que iria conseguir contratar alguns trabalhadores, mas ...

    - Eu sei, foi um inverno difícil de novo - respondeu Torben, desanimado.

    Mestre Amos desviou o olhar, a expressão cansada e preocupada ainda cobrindo seu rosto. O inverno fora duro, e ele estava começando a se perguntar quantos ainda restavam.

    - Olhe, Torben, eu sei que você deve achar a vida aqui um pouco asfixiante, mas até que eu possa sair do sufoco, não há nada a se fazer.

    Torben não respondeu, mas olhou em desalento para o infinito. O campo ficava ao lado de uma colina e oferecia uma excelente vista da paisagem ao redor. Dali, ele podia ver a pequena coleção de prédios que compunham a fazenda do mestre Amos. Mais além da fazenda, havia os telhados da aldeia de Bywater e, além destes, se alastrava o vale que constituía Burndale. Fios de fumaça quase imperceptíveis saíam das chaminés da aldeia, o único sinal de vida na paisagem.

    O fato de mestre Amos não poder mais se dar ao luxo de trazer mão de obra temporária para ajudar na fazenda significava que Torben estava, para todos os efeitos, preso à fazenda. Nos últimos dois anos vinha dizendo a si mesmo que, depois de juntar dinheiro para obter mão de obra contratada, ele iria sair para explorar, relaxar e deixar a estrada levá-lo embora, para longe de Bywater e do vale pequeno e deprimente. Jamais foi além de onze quilômetros de Bywater e jamais chegou à fronteira de Burndale.

    Mas, três invernos rigorosos seguidos levaram mestre Amos a estar mais perto do que nunca da beira da miséria. Se Torben fosse embora, seria uma sentença de morte para o velho, e ele não poderia fazer isso, não depois de toda a gentileza que ele e sua esposa haviam lhe mostrado.

    - Certo, rapaz, vamos continuar; os campos não se semearão sozinhos, tu sabes.

    Amos olhou para o jovem desesperançado ao seu lado. Os olhos azuis de Torben olhavam impetuosamente pelo vale, enquanto o vento revolcava o monte de cachos castanhos e bagunçados na sua cabeça. Ele percebeu que Torben estava perdido em pensamentos e nem precisava adivinhar no que estava pensando.

    Há dias ele vinha remoendo sobre como demonstrar sua gratidão a Torben, mas com a falta de dinheiro ele pouco podia fazer pelo jovem.

    - E pense nisso, continuou Amos, se fizermos tudo hoje, você poderá ter folga amanhã. De qualquer maneira, preciso levar o arado para os ferreiros consertarem, então não haverá muita coisa para você fazer.

    Isso era mentira. Sempre havia muito trabalho a ser feito na fazenda, mas era a única coisa que Amos conseguia pensar em oferecer. De qualquer forma, a conversa trouxe Torben de volta à realidade e por um segundo ele parecia realmente surpreso. Ele não conseguia se lembrar da última vez que mestre Amos havia dado um dia de folga a ele.

    - Mas e os reparos que precisam ser feitos no galpão?

    - Podem esperar - respondeu, tentando parecer tão despreocupado quanto sua natureza rude permitia - Amanhã vai chover. Não quero você se arrastando pelo telhado do estábulo; você aprontaria alguma coisa!

    Amos ficou de pé, usando a árvore às costas e o cajado que costumava guiar e instigar os bois, como ajuda para se levantar.

    Ao fazê-lo, Torben continuou sentado no chão, atordoado com o presente que lhe fora dado. Um dia inteiro de folga! Ele podia ir à taberna em Bywater - fazia mais de dois meses que não conseguia ir lá - e podia, bem ... Torben não era capaz de pensar claramente sobre o que poderia fazer. Há muito que não tinha tempo livre.

    - Vamos lá, não fique aí sentado olhando para o nada, exclamou Amos. - Ainda temos trabalho para terminar hoje!

    - Certo está você, mestre! Torben levantou-se, pegou o saco do chão e caminhou apressadamente até o portão mais adiante para reabastecer o estoque de sementes.

    Amos observou-o partir. A energia renovada que Torben estava exibindo fez o velho sorrir; há muito tempo que não via o garoto empolgado com algo. A vida na fazenda era difícil e era necessário ser um certo tipo de pessoa, e Torben não era uma delas. Claro, ele poderia realizar o trabalho tão bem quanto qualquer um. Claro, o corpo do rapaz havia se condicionado depois de semanas a fio de trabalho pesado. Mas Amos sabia que lhe faltava resistência para durar como um agricultor. Ele trazia dentro de si muita sede de viajar, ansiava se soltar. Era apenas uma questão de tempo até Torben sair de Bywater.

    Amos foi até os bois e soltou-os do poste. Torben voltara correndo colina acima e já estava levantando o arado. Levou apenas alguns minutos para preparar as duas bestas e, com um estalido na língua, elas mais uma vez atravessaram o campo, arrastando o arado atrás.

    Torben seguiu as linhas do arado e começou a espalhar sementes nos sulcos frescos. Às vezes, quando o vento soprava, Amos ouvia a música alegre que Torben cantarolava enquanto trabalhava.

    O entusiasmo do dia de folga prometido minguara assim que os dois campos foram semeados. O sol se pôs no horizonte e os traços da paisagem ao redor haviam se tornado silhuetas difusas. A floresta à leste de Bywater era uma única e indistinta massa ameaçadora de árvores, enquanto a própria aldeia era definida por luzes tremeluzentes nas janelas das casas.

    Quando Torben lançou o último punhado de sementes do dia, mestre Amos já estava soltando os bois e se preparando para levá-los até a fazenda. Em silêncio, Torben seguiu o velho pelo morro em direção à beira do campo. Quando chegou na parte mais baixa, mestre Amos estava tentando manobrar os bois pelo portão até a estrada.

    - Traga o resto das sementes com você - ele gritou por cima do ombro enquanto eles caminhavam em direção à fazenda.

    Torben colocou os dois últimos sacos de grãos fechados sobre os ombros largos e subiu o aclive do campo para a estrada. Mestre Amos e os bois, embora não muito distantes, já haviam se tornado indistintos à luz do entardecer. Torben partiu para a fazenda. Ele podia sentir a fadiga do dia corroendo seus músculos, especialmente sobre os ombros, que estavam tensionados sob o peso dos sacos. No entanto, quanto mais ele ia pela estrada, mais fácil parecia a última parte do dia. A cada passo dado, ele percebia que quanto mais cedo chegasse à fazenda, mais cedo ficaria livre ... por um dia, pelo menos.

    Ele começou a acelerar e logo estava correndo pela estrada, o peso nos ombros completamente esquecido. Ele rapidamente alcançou mestre Amos e os bois e passou por eles voando, os pés batendo com força na pista de terra, a mente concentrada na liberdade temporária.

    Mestre Amos observou-o passar zunindo e desaparecer em uma curva da estrada. O velho suspirou profundamente, esperando que Torben não fizesse nada estúpido naquela noite. A última vez que ele foi no Rusty Sickle, a taberna de Bywater, ele gastou quase três meses de salário em uma sentada. No entanto, não havia nada a ser feito. Torben cometeria seus erros e teria que descobrir uma maneira de consertar o que quer que resultasse deles.

    Na medida em que os bois se arrastavam para o curral, Amos observou Torben abrir as portas do estábulo, pronto para receber as duas bestas pesadas. Com algumas cutucadas certeiras e estalidos encorajadores da língua, Amos guiou os bois aos currais. Torben já havia preparado a forragem da noite e aguardava do lado de fora do estábulo, observando Amos atentamente pelo canto do olho. Ele estava visivelmente esperando para ser dispensado. Ignorando o jovem inquieto, Amos entrou nos currais e cuidou criteriosamente de cada boi. Eles eram a chave para o seu sustento; sem eles, não seria capaz de administrar a fazenda ... sem eles, estaria acabado.

    Um pigarro vindo da soleira do estábulo indicava que a impaciência de Torben estava chegando ao limite. Amos não se virou, mas ergueu uma mão no ar, enquanto continuava a inspecionar com atenção um casco. Era essa a permissão que Torben precisava. Quando Amos se endireitou e se virou, ele vislumbrou Torben desaparecendo na casa da fazenda.

    - Que os deuses cuidem de você, garoto - Amos sussurrou baixinho. - Rezo para que você não precise da ajuda deles hoje à noite.

    Nem precisava ser dito à senhora Amos para onde Torben estava indo quando ele entrou na cozinha. O sorriso radiante dele dizia tudo. O jovem fez uma saudação e fechou a porta atrás de si. Ele se virou para subir as escadas.

    - Então, Amos decidiu deixar você ter um pouco de tempo para si mesmo?

    - Sim, ele deixou - disse Torben, olhando para a Sra. Amos pacientemente. Ele tinha esperanças de poder entrar e sair da casa da fazenda sem ser abordado, mas claramente isso não acontecia. Ele já podia ver o resultado de um sermão sobre moderação nos olhos redondos da Sra. Amos.

    Apesar da idade avançada, a mulher ainda era afiada como um alfinete e seus olhos, que brilhavam com inteligência aguçada, espiavam o comprimento do longo nariz adunco. Embora seu tamanho e volume o fizessem parecer excessivamente grande, a Sra. Amos tinha o talento de fazê-lo parecer pequeno. Ela sabia exatamente quais eram os planos de Torben para aquela noite e não aprovou.

    Torben podia sentir seu olhar de aço perfurá-lo, procurando por um sinal de possíveis problemas. Sem querer, ele se mexeu nervosamente e, em questão de segundos, ela conseguiu reduzir o homem alto e robusto a uma criança culpada, e ele nem tinha feito nada ... ainda não, de qualquer maneira.

    - E o que você vai fazer esta noite, rapaz? A voz da Sra. Amos tinha um tom gelado. - Você vai na aldeia?

    - Sim, acho que sim. Só para esticar as pernas, mudar de ares e tal, Sra. Amos.

    - Espero que você se comporte com mais dignidade do que a última vez que desceu àquela ... taberna. A palavra parecia doer fisicamente para ela pronunciar, e ficava bem claro que ela não aprovava tais lugares.

    Torben não respondeu e desviou o olhar. Ele sabia que não havia nada a dizer que a aplacasse, e ele aprendera por experiência própria que a melhor coisa a fazer em tal situação era fingir-se mudo.

    A Sra. Amos se virou, pegou um atiçador ao lado da lareira e começou a cuidar das brasas.

    - Se dependesse de mim, com certeza não daria uma folga a você. Mal temos tempo para fazer todo o necessário, e você saindo para vagabundear e beber até perder os sentidos.

    Lentamente, Torben começou a se dirigir para as escadas; ele não ousaria dar as costas a Sra. Amos, com receio de que um movimento repentino provocasse mais repreensões.

    - Você ficou uma absoluta desgraça na última vez em que foi àquela fossa abandonada por Deus.

    Não havia como disfarçar a malícia em sua voz.

    - Pensei que eu jamais mais iria superar a vergonha de vê-lo sendo carregado de volta, pendurado no lombo de um boi! Não conseguia nem caminhar! Como você conseguiu ficar naquele estado vai além da minha compreensão. - Ela meneou. - Nada disso teria acontecido se Amos não tivesse deixado você por sua conta. Ele é muito gentil com você, no entanto, eu sempre soube que ele era um fracote. Graças aos deuses, ele tem bastante tutano para trabalhar na fazenda; caso contrário, estaríamos há muito tempo no olho da rua, graças à sua idiotice...

    A Sra. Amos, dentro do seu tamanho todo, continuou a murmurar com amargura, lamentando o estado da fazenda, o marido e qualquer um que tivesse o azar de ser mais jovem que ela. Assim que Torben sentiu sua bota tocar o primeiro degrau, galgou os dois primeiros de uma só vez para ficar fora de vista o mais rápido possível.

    Ao contrário de seu marido, cujo exterior áspero escondia uma alma realmente gentil e indulgente, a Sra. Amos não parecia ter nem um pouco de compaixão. Desde que o mestre e a Sra. Amos haviam acolhido Torben quando criança, a Sra. Amos o tratava com desprezo. Em muitas ocasiões, ela deixou claro que seu marido deveria ter deixado Torben no frio, e não assumido o fardo de cuidar dele. Torben não fazia ideia de como o mestre Amos tinha sido capaz de suportar o abuso verbal de sua esposa por tantos anos, embora as linhas do rosto e sua natureza depressiva perceptível fossem sinais de que o velho estava perto do limite. Se Torben estivesse no lugar do mestre Amos, ele teria deixado a bruxa arrogante há muito tempo, mas mestre Amos jamais seria capaz de fazer algo assim. Não era do seu feitio.

    Quando ele alcançou o topo da escada, a energia voltou aos seus passos. Ele andou a passos largos até o fim do corredor, levantou a trava da porta e entrou. Seu quarto era pequeno e parcamente mobiliado. Por outro lado, não havia muito espaço para nada além de uma cama e uma mesinha, que serviam de suporte para um lavatório e uma grande arca de madeira. Ele se encostou na pedra áspera da parede caiada para ter espaço suficiente para fechar a porta. Depois, sentou-se pesadamente na ponta da cama, que cedeu visivelmente sob seu peso e rangeu quando ele começou a tirar as botas.

    Torben estava dormindo na mesma cama desde que fora acolhido pelo casal, e agora ela ficava uns bons trinta centímetros mais curta, estreita para suportar a largura de seus ombros. A Sra. Amos jamais cogitaria em gastar dinheiro trocando a cama.

    Ele puxou a túnica sobre a cabeça, foi até o lavatório e começou a tirar a sujeira do dia, das mãos e do rosto. Sinceramente, ele não fazia ideia de como o mestre Amos conseguiu se safar para dar a Torben o dia de folga. A Sra. Amos deixou bem claro que não aprovava a ideia e, se não aprovava, geralmente significava que a ideia seria imediatamente descartada. Claro, havia uma forte possibilidade de a velha simplesmente querer Torben fora de vista. No entanto, um de seus

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