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Psicologia & Sexualidade: Diversidade Sexual
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E-book491 páginas7 horas

Psicologia & Sexualidade: Diversidade Sexual

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Sobre este e-book

Reunindo contribuições de diferentes áreas da Psicologia, criou-se um panorama da inserção da Psicologia no campo das sexualidades, em específico a diversidade sexual, que é o tema de interesse deste livro. Aqui, Psicologia do Desenvolvimento, Psicologia Social, Psicologia Evolucionista, Psicologia Educacional, Psicologia Clínica e Psicologia da Saúde se encontram para discutir sobre Psicologia, orientação sexual e sexualidades. Diversos tópicos fundamentais estão presentes nas temáticas da obra: raça, classe, gênero, interseccionalidade, mídia, preconceito, estresse de minoria e saúde mental.
As homossexualidades e as bissexualidades são algumas das expressões possíveis das orientações sexuais, normais, morais e espontâneas como a heterossexualidade, não sendo passíveis de nenhum ajuste, correção ou cura. Entretanto, saber disso não é suficiente na nossa sociedade. O preconceito contra diversidade sexual ainda é um desafio a ser vencido, bem como o sistema que o produz e os efeitos que por ele são produzidos. É nesse contexto que a Psicologia tem tentado corrigir erros anteriores e contribuir para o enfrentamento desses desafios, amparada pela cientificidade, ética e compromisso social.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento25 de mai. de 2021
ISBN9786559567768
Psicologia & Sexualidade: Diversidade Sexual

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    Psicologia & Sexualidade - Mozer de Miranda Ramos

    pesquisa.

    CAPÍTULO 1. SEXUALIDADE HUMANA: UMA LEITURA A PARTIR DA PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO

    Elder Cerqueira-Santos

    Universidade Federal de Sergipe

    Na última década, o discurso sobre gênero, sexualidades e orientação sexual vem ganhando mais espaço em diversos setores, desde telenovelas e programas de TV até o debate acadêmico sobre o tema. No entanto, boa parte do que está em debate é fruto de experiências pessoais e processos grupais de vivência, que marcaram os debates do senso comum, assim como da militância e também da academia. A produção teórica nesse campo é considerada recente em diversas áreas de estudo. Entre outras, o debate sobre gênero adentrou a pauta sobre desenvolvimento humano, especialmente nos estudos sobre crianças e gênero, gênero e escola, transidentidades e orientação sexual. Apesar do recente debate, a Psicologia do Desenvolvimento vem produzindo pouco para alimentar o tema, especialmente estudos empíricos e em contextos diversos, o que mantém, via de regra, um discurso normativo e conservador, como é possível observar nos principais manuais da área. —

    A perspectiva psicológica sobre a sexualidade humana vem ganhando vários contornos com o surgimento de modelos teóricos e linhas de pesquisa que ampliaram a própria noção de sexualidade (Caciatore, 2019). Apesar do entendimento da ampliação sobre o termo dado desde Freud, na psicanálise, em Psicologia o arcabouço de pesquisas costumava ser restrito aos aspectos referentes à prática sexual e seus adjuntos (do beijo ao sexo, como enfatiza van der Doef & Reinders, 2018). Assim, o entendimento de que a sexualidade passa por aspectos desenvolvimentais em diversos pontos do ciclo vital é o aspecto central deste capítulo. O objetivo é apresentar uma perspectiva atual em Psicologia do Desenvolvimento para o estudo da sexualidade humana como um processo que acompanha os indivíduos ao longo da vida. A compreensão desenvolvimental não implica, no entanto, numa tentativa de traçar linearidade e normatividade ao desenvolvimento; assim, buscamos explorar a diversidade de trajetórias e suas repercussões para indivíduos, grupos e culturas. Aspectos individuais e sociais estão constantemente afetando o desenvolvimento sexual humano. A vivência da sexualidade é sempre uma interação entre processo de desenvolvimento e inserção no grupo social, afinal, até mesmo aspectos biológicos da sexualidade não podem ser pensados longe da dimensão social e cultural.

    A sexualidade pode ser reconhecida como um comportamento de saúde psicológica que influencia pensamentos, sentimentos, ações, relações interpessoais e o sentir-se saudável física e psicologicamente (Guimarães & Witter, 2007). Assim, constitui-se como uma esfera indispensável da vida, que se manifesta de forma constante e ao longo do ciclo vital. Por conseguinte, é de grande complexidade a aprendizagem envolvendo os aspectos sexuais, uma vez que, desde a infância, é importante que os indivíduos aprendam sobre corpo, as regras sociais, as responsabilidades pessoais e sociais, os padrões éticos – saber o como e o sobre da sua própria sexualidade. Precisamos fazer uma distinção entre os diversos componentes (socialmente construídos) pelos quais classificamos a sexualidade humana: sexo biológico (ser macho, fêmea ou intersexual anátomo-fisiologicamente), orientação sexual (atração por pessoas de gênero diferente ou do mesmo gênero, isto é, ser heterossexual, bissexual ou homossexual), identidade de gênero (ser mulher, homem ou travesti, por exemplo) e papel de gênero (comportar-se de forma feminina, masculina ou andrógina). Outros autores apontam ainda para o papel sexual, ou seja, o modo através do qual o indivíduo se insere na relação sexual (por exemplo, de forma ativa ou passiva) (Lehmiller, 2017). Os estereótipos surgem da assunção errônea de que os componentes da sexualidade humana são inseparáveis, e que se um indivíduo difere da norma em um desses elementos, ele deve diferir também em todos os outros. Dessa forma, deve-se considerar que:

    A sexualidade não tem o mesmo grau de importância para todos os sujeitos. Mais do que um recurso explicativo baseado em diferenças psicológicas, essa variação é efeito de processos sociais que se originam no valor que a sexualidade ocupa em determinados nichos sociais e nos roteiros específicos de socialização com que as pessoas se deparam (Heilborn, 1999, p. 40).

    Um primeiro olhar para a perspectiva proposta nos leva ao reconhecimento de que a sexualidade é multideterminada, ou seja, envolve aspectos biológicos, cognitivos, culturais e subjetivos (Lehmiller, 2017). Essa é a primeira lição vinda da Psicologia do Desenvolvimento, a necessidade de olhar multifacetado sobre os fenômenos humanos. No entanto, perspectivas teóricas clássicas se mostram parciais.

    Como citado no início deste capítulo, a psicanálise é reconhecida como responsável pela ampliação do entendimento sobre sexualidade, especialmente nas proposições sobre sexualidade infantil com a noção de desenvolvimento psicossexual e suas fases: oral, anal, fálica e genital. As teorias do apego sugerem que as crianças nascem com uma aptidão inata ao apego como uma forma de sobrevivência (Palombo, Bendicksen, & Koch, 2009). De forma geral, as experiências de apego na infância atuam como protótipo para os relacionamentos afetivos no futuro desenvolvimento da pessoa. A teoria ericsoniana deriva de pressuposto semelhante ao propor uma série de estágios de desenvolvimento e suas consequências em termos relacionais (Erikson, 1950). Esses três grandes pressupostos devem ser os maiores pilares que marcam influência direta em diversas propostas para o entendimento desenvolvimental sobre sexualidade. —

    A proposta mais recente da Psicologia do Desenvolvimento convida para uma análise multifacetada dos processos desenvolvimentais, com ênfase nos aspectos contextuais e em sintonia com a tríade bio-psico-social. O modelo bioecológico do desenvolvimento humano de Bronfenbrenner (1996) possibilita uma leitura ampla de aspectos que abrangem a sexualidade, pensando desde as relações diáticas (pessoa-pessoas) até elementos da macrocultura como influenciadores desenvolvimentais. Dessa forma, o modelo considera que aspectos biológicos e individuais interagem com história de vida e interações ambientais, onde a máxima é o entendimento da pessoa em interações proximais que ocorrem em determinados contextos e recortes de tempo. A definição de desenvolvimento humano para o autor (concepção mais tarde ampliada por ele mesmo para inserir o conceito de biopsicológico, sustentando a noção de interação), consiste em:

    mudança duradoura na maneira pela qual uma pessoa percebe e lida com o seu ambiente, (...) é o processo através do qual a pessoa desenvolvente adquire uma concepção mais ampliada, diferenciada e válida do meio ambiente ecológico, e se torna mais motivada e mais capaz de se envolver em atividades que revelam suas propriedades, sustentam ou restituíram aquele ambiente em níveis de complexidade semelhante ou maior de forma e conteúdo (Bronfenbrenner, 1996, p. 5).

    INFÂNCIA E GÊNERO

    Os estudos sobre sexualidade infantil são em geral desenvolvidos a partir de métodos observacionais, estudos clínicos ou fonte de dados de cuidadores das crianças. Tais estudos são focados em aspectos relacionados à violência sexual, patologias ou queixas comportamentais. Ainda alguns estudos utilizam métodos retrospectivos, inquirindo adolescentes e adultos sobre fatos do passado (de Graaf & Rademakers, 2011). Tais investigações partem de um viés que depende das normas sociais, pensando adequação ou inadequação nas suas observações e nos relatos de participantes. No caso das observações, devem ser consideradas as bases culturais nas quais acontecem e foram produzidas, pois aí já estão inseridas expectativas de gênero no desenvolvimento infantil. Os relatos retrospectivos também podem estar cheios de vieses e podem tratar de um passado com perspectivas presentes. Nesse sentido, estudo da sexualidade infantil pela psicologia do desenvolvimento é um desafio, que deve ser encarado com cautela nas suas conclusões.

    Tradicionalmente, a invisibilidade da sexualidade infantil nas pesquisas empíricas deixou parecer que essa fase de desenvolvimento humano é assexual, ou que tal tema só merecia destaque e aparecia nos comportamentos das crianças como algo patológico (Cacciatore et al., 2019). Em revisão realizada por Graaf e Rademarkers (2011), apenas um estudo empírico foi encontrado entre os anos de 1980 a 2009 que investigava especificamente comportamentos sexuais de crianças até 2 anos de idade. Nos anos que antecedem a puberdade, o número de estudos aumenta significativamente, apontando especialmente para as reações comportamentais ao desenvolvimento biológico. No entanto, o interesse geral no tópico do gênero, citado no início deste capítulo, também chega à Psicologia do Desenvolvimento, fazendo com que as pesquisas passem a inserir a variável gênero nos seus estudos.

    O arcabouço teórico da psicologia do desenvolvimento aponta em diversos sentidos que a socialização de crianças para papéis de gênero parece ser de fundamental importância como tema de investigação na interface de diversas áreas da Psicologia (Silva, Pontes, Silva, Magalhães, & Bichara, 2006). Uma das formas promissoras de estudos nessa área é a observação de brincadeira infantis em diferentes contextos e culturas. A estereotipia de gênero em brincadeiras infantis é definida como a tendência de estruturação de jogos seguindo regras e papéis diferenciados para meninos e para meninas (Beraldo, 1993). Assim, os grupos infantis organizam suas brincadeiras espontâneas de acordo com tais regras de gênero, o que envolve a formação de grupos segregados, uso de brinquedos específicos, papéis desempenhados etc. Tal fenômeno é amplamente observado por nós e marca nossas memórias como eventos desenvolvimentais de impacto, como quando crianças querem brincar apenas com outras do mesmo gênero ou até mesmo quando gera estranhamento a iniciativa de algumas crianças a aproximação intensa com elementos de brincadeiras de outro gênero.

    Curiosamente, pesquisas em Psicologia do Desenvolvimento relatam que, apesar de uma série de mudanças nos papéis de gênero em diversas culturas, a estereotipia de gênero é encontrada no desenvolvimento infantil, especialmente em determinadas fases e estilos comportamentais, como no caso das crianças pré-escolares em situações naturais (Beraldo, 1993; Eibl-Eibesfeldt, 1989; Harris 1999; Lordelo, 1995; Maccoby, 1988). Nesse sentido, Silva, Pontes, Silva, Magalhães e Bichara (2006) sugerem o problema: O que estes estudos parecem indicar é que meninas e meninos nascem diferentes e tornam-se ainda mais diferentes no decorrer dos anos pré-escolares e escolares. Se a cultura adulta está mais igualitária, por que a segregação sexual continua sendo uma marca forte da infância? (p. 115). Alguns autores, como apontam Carvalho e Pedrosa (2002), investigam tal fenômeno a partir da ideia de que as crianças transmitem regras culturais como uma microssociedade, na qual os elementos de diferenciação e papéis de gênero são mais rígidos do que no grupo cultural do mundo adulto. Dessa forma, as crianças nem sempre transmitem as regras como no mundo adulto, mas constroem scripts que são compartilhados por elas próprias, mesmo que com uma inspiração externa.

    Duveen (1993) afirma que a representação social de gênero e a identidade de gênero têm um componente ontogenético que aparece logo cedo na infância. A proposição de Duveen é apoiada por uma série de estudos que sugerem que a identidade de gênero envolveria um aspecto desenvolvimental que é expresso em diversas culturas e persiste ao longo do tempo e gerações (Carli & Bukatko, 2000). Ou seja, as crianças aprendem sobre gênero na sua socialização e a partir de conteúdos transgeracionais. Em complemento, estudos indicam que os primeiros anos escolares parecem amplificar a estereotipia de gênero em crianças a partir de uma experimentação social que o ambiente grupal proporciona (Carvalho & Pedrosa, 2002). As interações criança-criança baseiam-se nas diferenças aprendidas e são exercitadas no dia a dia, como em brincadeiras. Assim como outros comportamentos exercidos nas brincadeiras infantis, a repetição e exagero podem fazer parte desse processo, que além do mais, é apoiado pelos adultos cuidadores imediatos e/ou pela cultura mais ampla. Nesse sentido, entende-se que as performances de gênero compartilhadas nos ambientes sociais das crianças tornam-se regulatórias de comportamentos que são apresentados pelas próprias crianças (pelo menos em sua maioria). Coloca-se assim o que é proposto por Butler (1990) como uma norma performativa que cria expectativas e reproduz a regra majoritária.

    Conforme revisão realizada por Silva et al. (2006), pesquisas observacionais sobre a brincadeira entre crianças apontam uma grande influência da estereotipia de gênero em elementos do jogo lúdico, como: preferência por temáticas, atitudes, comportamentos, percepções, escolha de parceiros, tamanho de grupos e uso de objetos/brinquedos. As estereotipias de gênero levam a constatações que reafirmam a lógica binária social e se retroalimentam. De modo geral, constata-se que meninos brincam em grupos maiores, em episódios mais curtos, com menos objetos e temáticas mais ativas (motoras e em ambientes mais amplos); enquanto meninas formam grupos menores, de episódios mais longos e com temáticas mais intimistas em ambientes menores (Carli & Bukatko, 2000).

    O fato mencionado acima coloca o debate da influência direta dos ambientes socializadores na estereotipia de gênero em crianças pré-escolares durante suas brincadeiras de faz-de-conta. Um grupo específico e de bastante singularidade na sua forma de socialização é o de crianças adotadas por casais homossexuais (homoparentais). Como tais crianças mantêm e/ou flexibilizam os papéis de gênero a partir dos diversos modelos parentais? Em estudo específico, tentando colaborar com essa questão, Cerqueira-Santos e Bourne (2016) realizaram uma série de observações com crianças adotadas por casais do mesmo gênero. A ideia do estudo era investigar se grupos familiares abertos à diversidade sexual e de gênero teriam certa influência nas brincadeiras infantis. Curiosamente, o estudo não encontrou diferenças nas brincadeiras dessas crianças quando comparadas às crianças educadas em famílias de casais heterossexuais, indicando a forte permanência da estereotipia de gênero.

    Absolutamente, tal pergunta de pesquisa não pode ser seguida de um julgamento sobre as possíveis diferenças/similaridades encontradas, mas abre discussão sobre a estereotipia de gênero em crianças frente às mudanças significativas nos modelos adultos e na bipolaridade e conformidade sexo/gênero. Diversas configurações familiares existem há bastante tempo, como crianças educadas por avós, mães solteiras, dentre outras, no entanto, o fenômeno da adoção homoparental vem levantando discussões em diversos países, levando à criação de novas leis e controvérsias no debate leigo. Nesse sentido, é fundamental que estudos acompanhem tais configurações familiares e produzam um corpo de conhecimentos que sustentem argumentos sólidos embasados em achados empíricos.

    Achados desse tipo sugerem que a influência parental no desenvolvimento de gênero pode ser menor que esperamos ou acreditamos. No entanto, reconhecem e evidenciam duas variáveis fundamentais nesse desenvolvimento: a ontogênese do gênero e a cultura do contexto. Este último aspecto já bastante discutido em Psicologia, mas o primeiro ainda como área que demanda maior imersão.

    Os novos estudos causam impacto enorme nas teorias psicológicas clássicas que compreendem o núcleo familiar tradicional como nicho especialmente (quase unicamente) valorizado no desenvolvimento da sexualidade de crianças. Claramente, os relatos feitos até o momento ainda possuem grandes limitações, além de discutir tal questão baseando-se nos comportamentos manifestos que são entendidos como regras de gênero. Aspectos como orientação sexual e erotização são ainda pouco discutidos nos estudos dessa área.

    ADOLESCÊNCIA

    O surgimento da puberdade obriga a pesquisa em Psicologia do Desenvolvimento a perceber a sexualidade como tema de destaque na adolescência. Assim como no final da infância, a pesquisa internacional nessa área é guiada pelos aspectos do desenvolvimento biológico (Cacciatore et al., 2019). No entanto, mudanças cognitivas, emocionais e sociais são de extrema importância para essa etapa da vida e estão, muitas vezes, relacionadas ao desenvolvimento sexual.

    Diversos eventos do desenvolvimento sexual dos adolescentes compõem o que chamamos de socialização sexual (Cerqueira-Santos & Ramos, 2019). Dentre os marcos possíveis, a iniciação sexual desponta como condutora e resultado de diversos eventos e comportamentos. E está atravessada por questões de gênero e de orientação sexual, por exemplo. Não é realista pensar, então, um processo de iniciação sexual ou de vivência do sexo como natural ou por uma perspectiva puramente biológica. O sexo ainda é acompanhado de diversos estranhamentos e significado de maneira diferente pelos indivíduos de acordo com sua identidade de gênero, orientação sexual, classe social, religião, acesso à informação e relações sociais.

    Um dos eventos do desenvolvimento sexual marcantes é o debute sexual. A primeira relação sexual geralmente ocorre na adolescência, apesar de algumas variações geracionais. O início da atividade sexual traz a preocupação com o surgimento de infecções sexualmente transmissíveis, gestações não planejadas, aborto e uso abusivo de drogas, por exemplo – considerados como potenciais comportamentos de risco (Ozella, 2002). Estudos demonstram associação entre um início mais precoce das atividades sexuais com comportamentos sexuais de risco, gravidez, uso inconsistente de preservativo e aspectos negativos na saúde sexual (Marín, Coyle, Gómez, Carvajal, & Kirby, 2000).

    Outro fator importante acerca da iniciação sexual é a presença de parceiros mais velhos, principalmente para meninas. Estudos sugerem associação da idade do/a parceiro/a com uma primeira relação sexual mais precoce e atividade sexual indesejada. A idade dos parceiros sexuais mais avançada também costuma estar relacionada com mais comportamentos sexuais de risco, uso inconsistente de preservativos, ISTs (infecções sexualmente transmissíveis), gravidez, maior demora de uso de métodos contraceptivos e abuso sexual (Finer & Philbin, 2013; Marín et al., 2000).

    A realização de estudos com a população de adolescentes no Brasil justifica-se a partir da emergência pela criação de políticas públicas e privadas que atendam de forma apropriada aos indivíduos desta faixa etária. Uma das questões que norteiam estas políticas de forma geral é a medicalização da sexualidade que categoriza, segrega e patologiza comportamentos sexuais socialmente não normativos, como ferramenta de controle social e de produção de identidades e de novas formas de subjetividade (Cerqueira-Santos, Azevedo, & Ramos, 2020). Tomemos como exemplo o debate no campo da saúde sobre a gravidez precoce e as infecções sexualmente transmissíveis. Ambos são temas emergentes e urgentes, mas que podem normatizar as vivências de jovens a partir de uma lógica sanitarista (Cerqueira-Santos, Paludo, Schiro, & Koller 2010).

    Algumas diferenças marcam os comportamentos sexuais dos adolescentes na atualidade, entre elas está a possibilidade de propor a pauta do sexo em relacionamentos casuais, a diversidade de arranjos para relacionamentos, as mudanças de planos sobre o casamento, a questões de gênero e orientação sexual de forma mais igualitária e fluida (Neto & Cerqueira-Santos, 2012). Dessa forma, a constituição da sexualidade na adolescência passa pela experimentação de sexo e afeto como instâncias que podem ser descoladas, mas ao mesmo tempo complementares, a depender dos arranjos em jogo. É importante pensar então nas implicações dessa forma de viver a sexualidade e em elementos práticos de tais vivências, como as formas de maternidade e paternidade, as expectativas sobre o casamento e família, e o valor e tempo que se dá às relações sexuais e afetivas.

    Definitivamente, a diversidade sexual faz parte dos debates entre adolescentes, especialmente nas áreas urbanas e de maior escolaridade. Especificidades dos contextos não urbanos ou de cidades pequenas devem ser observadas, já que a socialização de adolescentes desses contextos tem sido também recheada de informações e influências ainda pouco exploradas pela literatura. De forma geral, ambientes acolhedores e amigáveis possibilitam a vivência de uma sexualidade mais autônoma e experimentações no campo sexual. Ao mesmo tempo, e de forma quase contraditória, em algumas esferas de socialização os adolescentes ainda enfrentam preconceito e exclusão, sendo amplamente vitimizados pela condição de minoria sexual e/ou de gênero.

    ADULTEZ EMERGENTE

    Tais temas da sexualidade humana tomam um contorno especial quando pensados para o grupo de pessoas na adultez emergente, uma vez que muitos acontecimentos da vida sexual se maximizam nesse período, considerado um marcador social em nossa cultura (Cerqueira-Santos, 2018). Conforme indica Heilborn (2006),

    observa-se hoje que na socialização das gerações mais jovens há um relativo declínio da importância da família na transmissão de valores relativos à sexualidade e uma crescente influência da escola, não como disciplinadora da conduta, mas cada vez mais como propiciadora de novas interações entre iguais (p. 50).

    Essa perspectiva coloca a sexualidade como um elemento importante na socialização de jovens adultos e insere o debate sobre os impactos das novas formas de prolongamento da juventude na sexualidade dos indivíduos. A geração de adultos jovens que vive hoje encara a sexualidade com a inserção de novos elementos e formas de conhecimento e vivência, como a internet e a virtualização do sexo (redes sociais, aplicativos de paquera e sexo, por exemplo), o maior tempo de espera para o casamento (ou outras configurações de coabitação antes do casamento civil), as relações afetivas mais fluidas e plurais (poliamor, divórcios rápidos), entre outros. Tais elementos são fundamentais na compreensão dessa dimensão do ciclo vital e suas repercussões nas esferas individuais e sociais de vivências.

    Mesmo nas configurações atuais, o casamento ainda é um dos eventos que mais definem a transição para a idade adulta, uma vez que, a princípio, exige o desenvolvimento de capacidades como responsabilidade para criação de uma nova família e maior independência da família de origem (Arnett, 2001). No entanto, evidências mais recentes vêm mostrando a redução desse fator na ideia de transição para a idade adulta dos próprios jovens, o que leva a questionar como tais jovens vivem aspectos da sexualidade atualmente. Alternativamente, as formas de vivência sexual atuais permitem com maior facilidade o sexo pré-marital e a as experiências de coabitação em diferentes formatos (Cerqueira-Santos, 2018).

    Para além dos aspectos normativos no desenvolvimento sexual de jovens adultos, outra questão que emerge com força e merece discussão é a identidade sexual e os papeis de gênero. Em geral, após a adolescência, jovens já identificam um certo padrão de atração sexual, seja heterossexual, bissexual ou homossexual. No entanto, apesar da relativa aceitação de certa estabilidade, muito ainda acontece no campo da identidade sexual e gênero durante os anos da adultez emergente, não configurando uma determinação imutável para alguns indivíduos. Um ponto especial a ser debatido é a orientação sexual, uma vez que na trajetória desenvolvimental alguns indivíduos passam por experiências e pensamentos que consistem em marcadores significativos na identidade quanto à sua orientação. Nesse sentido, torna-se fundamental discutir sexualidade na adultez emergente a partir das questões de gênero que perpassam o imaginário cultural e influenciam os diversos aspectos do que chamamos hoje de sexualidade.

    SEXUALIDADE E ENVELHECIMENTO

    As pesquisas que abordam a sexualidade de pessoas idosas ainda são raras no Brasil e no mundo, apesar de algumas iniciativas recentes. Em revisão sistemática realizada por Bastos e colaboradores (2012), além da baixa quantidade de artigos recuperados, percebeu-se a centralização do tema em assuntos relacionados às disfunções sexuais, como problemas de ejaculação e disfunção erétil. Além do mais, a maior parte dos estudos tomam os homens como sujeitos centrais das investigações, colocando a mulher idosa numa posição de quase-assexuada. Dessa forma, denuncia-se a centralidade da juventude como marca dos estudos sobre gênero e sexualidade, especialmente no Brasil. Como temos relatado ao longo deste capítulo, outros aspectos desenvolvimentais, como as questões biológicas, ainda dão o tom dos debates na área. Dessa forma, adolescência e juventude ganham destaque, enquanto o envelhecimento vira pauta majoritariamente para tratar do declínio ou anulação sexual, seguindo o fluxo biocentrado da psicologia do desenvolvimento.

    Dessa forma, destaca-se que a imagem cultural predominante em torno da velhice ainda é de decadência, com estereótipos relacionados ao isolamento social, ao luto e à assexualidade, fazendo com que a identidade dos idosos seja influenciada por ideologias radicais e superficiais (Fernandes, 2017). Percebe-se assim um mecanismo que, embasado em tais estereótipos, reafirma e engessa a velhice, não permitindo mudanças significativas nas vivências observadas e perpetua tal situação. Dessa forma, como afirmam Cezar (2011) e Fernandes (2010), também foi formado um tabu sobre a sexualidade na terceira idade, mas também sobre a fala entorno do assunto, seja em conversas informais, na mídia ou nas publicações acadêmicas. De tal forma que a conduta esperada para os idosos é assexuada.

    Apesar do exposto, nos últimos anos, o discurso sobre o envelhecimento saudável vem tentando inserir a sexualidade. No entanto, muitas vezes o faz tendo ainda como referência as práticas e comportamentos da juventude, incluindo aí as questões relacionadas aos padrões de beleza, por exemplo. Dessa forma, é necessário prestar atenção ao que aponta Goldenberg (2011), para o risco da obrigatoriedade de juventude, que pode discriminar e também colocar um lugar específico para a sexualidade, ou seja, apenas sendo pensada para o corpo jovem e bonito e desconsiderando as múltiplas formas de vivência que podem ser encontradas na terceira idade.

    Ou seja, quando a sexualidade é admitida, só é possível dentro de um novo padrão, que junto com outras formas de normatividade, insere a juventude como regra. Nesse sentido, é interessante pensar a falta de permissividade para a descoberta no campo sexual, como se todo o processo desenvolvimento já estivesse petrificado e acabado, deixando pouco ou nenhum espaço para novas práticas, como as possibilidades não heterossexuais (Fernandes-Eloi, 2017).

    CONSIDERAÇÕES

    O entendimento da sexualidade no desenvolvimento humano envolve a consideração sobre aspectos físicos, emocionais, cognitivos e sociais que percorrem todo o ciclo vital, do nascimento até a morte. Meyer e Frost (2013) expõem que esse conceito aponta para noção de que, ao longo da vida, através das mais diversas instituições e práticas sociais, indivíduos podem se constituir no contínuo entre mulheres e homens, num processo que nunca está finalizado ou completo e nem sempre é linear, progressivo ou harmônico. O mesmo conceito sinaliza para o fato de que como vivemos em tempos, lugares e circunstâncias específicas, existem diversas e conflitantes formas de se viver a sexualidade. Nessa perspectiva, deve-se pensar na continuidade do desenvolvimento sexual no ciclo de vida.

    A Psicologia do Desenvolvimento oferece uma série de ferramentas teóricas e metodológicas para pensar a sexualidade humana. Aqui apresentamos alguns aspectos no ciclo vital que produzem marcos desenvolvimentais significativos para as pessoas, no entanto, propomos que todos eles devem ser lidos a partir de uma lente contextualista e interacionista. Isto significa que podemos compreender a relação entre biológico e social quando entendemos os contextos de desenvolvimento. Além disso, é importante considerar que já que os sujeitos vivenciam em caráter contínuo o seu desenvolvimento, há num processo de reorganização que ocorre em diversos níveis, incluindo suas interações e pensamentos sobre a sexualidade. Assim, o desenvolvimento é estimulado ou inibido de acordo com o grau de interação do sujeito com as pessoas, bem como pela sua participação e engajamento em diferentes contextos e a influência de grupos e instituições. Ou seja, o desenvolvimento depende, prioritariamente, do equilíbrio entre o indivíduo e seus contextos ambientais, que podem promover ou limitar tais mudanças (Sifuentes, Dessen, & Oliveira, 2007).

    Recorrentemente, sentimos que a nossa sexualidade adulta está em conformidade, no sentido de maturidade ou estabilidade. A perspectiva contextualista e interacionista permite pensar que tal estabilidade deve estar atrelada aos ambientes e interações que mantemos, uma vez que os eventos do ciclo vital tendem a acomodar a nossa percepção sobre a própria sexualidade. Eventos inesperados ou não normativos, por exemplo, nos alertam para a dinamicidade nesse setor; divórcio, viuvez, traição conjugal, são eventos que demonstram tal complexidade não linear. Mesmo em outras etapas do ciclo vital a norma precisa dar passagem às impostas mudanças contextuais, como na adolescência, que inicia como um marcador biológico normativo (a puberdade), mas finaliza de diversas formas a depender do próprio percurso.

    Retomando a proposição de Bronfenbrenner (1996) é possível pensar a sexualidade considerando o modelo dos sistemas ecológicos e o PPCT (Processo, Pessoa, Contexto e Tempo), onde:

    - O processo, que se refere à interação recíproca progressivamente mais complexa entre um ser em desenvolvimento e as pessoas, objetos e símbolos presentes no ambiente ao seu redor, seriam as interações sexuais e afetivas diretas e indiretas ao longo da vida, com as paqueras, relações sexuais, namoros, casamentos etc.

    - Os atributos de pessoa, enquanto características determinadas biopsicologicamente e construídas na interação da pessoa com o ambiente, seriam a herança biológica e os traços psicológicos que os indivíduos carregam, como sexo biológico, hormônios, genética, atratividade física, personalidade etc.

    - O contexto, que é caracterizado por qualquer evento ou condição fora do organismo, seriam as situações de socialização sexual. Ou seja, educação e informação sobre sexualidade na família, na escola; comunidade ou grupo de convivência com amigos etc. Esses eventos ou condições são sistemas classificados em diversos níveis como: microssistema, mesossistema, exossistema e macrossistema. De acordo com o autor, esses sistemas são organizados como estruturas concêntricas que compõem o meio ambiente ecológico. O microssistema se refere aos ambientes que a pessoa em desenvolvimento frequenta e às relações que ela estabelece face a face. Já o mesossistema é o conjunto de microssistemas que a pessoa possui e as inter-relações constituídas entre eles. No exossistema, encontram-se os ambientes em que a pessoa em desenvolvimento não participa diretamente, mas que acarretam influências indiretas em sua vida. Por fim, o macrossistema se refere aos padrões globais que envolvem as ideologias, crenças e valores da sociedade em que vive a pessoa em

    - Por fim, tem-se o tempo como o quarto fator influente no processo de desenvolvimento, e é o que permite examinar a influência das mudanças e continuidades que ocorrem ao longo do ciclo vital para o desenvolvimento humano. O que incluí o próprio ciclo de vida e em que época ele está acontecendo, os eventos históricos de uma cultura, os marcadores temporais de uma geração.

    Dessa forma, entender a sexualidade na perspectiva desenvolvimental contextualista interacionista requer uma análise detalhada de todos os elementos listados acima. Considerando que a pessoa em desenvolvimento mantém interações específicas em determinados ambientes e recortes de tempo. Assim, reconhecemos que tal proposta parece ser coerente com a perspectiva da diversidade sexual.

    REFERÊNCIAS

    Arnett, J. J. (2001). Conceptions of the transition to adulthood: Perspectives from adolescence through midlife. Journal of adult development8(2), 133-143.

    Bastos, C. C., Closs, V. E., Pereira, A. M. V. B., Batista, C., Idalêncio, F. A., De Carli, G. A., ... & Schneider, R. H. (2012). Importância atribuída ao sexo por idosos do município de Porto Alegre e associação com a autopercepção de saúde e o sentimento de felicidade. Revista brasileira de geriatria e gerontologia15(1), 87-95.

    Beraldo, K. E. (1993). O gênero de brincadeiras de crianças de 5 a 10 anos. Dissertação de Mestrado não publicada. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo. São Paulo, SP.

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