Psicologia Social e Política de Assistência Social: Territórios, Sujeitos e Inquietações
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Sobre este e-book
O olhar transdisciplinar que é caro à Psicologia Social ajuda-nos a refletir sobre a construção dos sujeitos no Sistema Único da Assistência Social (Suas) de forma histórica, também balizada por classe, gênero e raça, elementos indispensáveis na possibilidade de um fazer ético e político, como pauta o próprio Código de Ética da/o Profissional da Psicologia (2005).
São diálogos que indagam sobre as proteções sociais do Suas, adentrando serviços específicos, desde o acolhimento que pode configurar uma "(po)ética", que pode se estender por todos os serviços existentes no Suas, que passa pelos territórios de populações tradicionais quilombolas, medidas socioeducativas, Psicologia no Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas), assim como atravessamentos como a judicialização, os racismos, a lógica familiarista, dentre outros. Esta coletânea é feita de mãos, resistências e provocações, são desafios do passado que se reiteram no contemporâneo.
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Psicologia Social e Política de Assistência Social - Flávia Cristina Silveira Lemos
Psicologia Social e Política de
Assistência Social
territórios, sujeitos e inquietações
Editora Appris Ltda.
1.ª Edição - Copyright© 2022 dos autores
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Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98. Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores. Foi realizado o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis n.os 10.994, de 14/12/2004, e 12.192, de 14/01/2010.
Catalogação na Fonte
Elaborado por: Josefina A. S. Guedes
Bibliotecária CRB 9/870
Livro de acordo com a normalização técnica da ABNT
Editora e Livraria Appris Ltda.
Av. Manoel Ribas, 2265 – Mercês
Curitiba/PR – CEP: 80810-002
Tel. (41) 3156 - 4731
www.editoraappris.com.br
Printed in Brazil
Impresso no Brasil
Flávia Cristina Silveira Lemos
Rafaele Habib Souza Aquime
Valber Luiz Farias Sampaio
Fernanda Cristine dos Santos Bengio
Robenilson Moura Barreto
Psicologia Social e Política de
Assistência Social
territórios, sujeitos e inquietações
A todes que caminham, cantam e seguem a canção, e acreditam nas flores vencendo o canhão. Parafraseando Geraldo Vandré, em Para não dizer que não falei de flores.
AGRADECIMENTOS
Agradecemos a todes que participaram e construíram este livro a muitas mãos amigas.
Agradecemos a quem busca, por meio da escrita, transversalizar saberes, práticas, produzir conexões e mapear novos territórios juntes.
Àqueles que costuram encontros ricos e potentes entre as psicologias e as assistências sociais brasileiras, de norte a sul, com diversas faces e possibilidades.
Àqueles que constroem e lutam pela efetivação e ampliação da política de assistência social, principalmente às(aos) trabalhadoras(es) nortistas e amazônidas.
Ao Grupo Transversalizando, coordenado pela Prof.a Dr.a Flávia Cristina Silveira Lemos, que conduz com partilha, sabedoria e generosidade nossas aventuras pelos enredos, criação e inovação transversais. A amizade que pulsa desse grupo ressoa em nossas vidas de forma bela.
Às autoras e autores deste livro, agradecemos pela confiança, pelo compartilhamento de saberes e pela rede que formamos e reafirmamos no espaço de resistência que se tornou a ciência brasileira.
Às universidades e demais instituições de ensino, programas de graduação e pós-graduação que nos brindam com essas parcerias.
A tontura da fome é pior do que a do álcool. A tontura do álcool nos impele a cantar. Mas a da fome nos faz tremer. Percebi que é horrível ter só ar dentro do estômago.(Carolina Maria de Jesus, Quarto de despejo)
Sumário
INTRODUÇÃO
INTERROGAÇÕES (PO)ÉTICAS: NARRATIVAS E ACOLHIDAS NO CRAS
Amanda Cappellari, Letícia Maísa Eichherr, Lílian Rodrigues da Cruz
A ASSISTÊNCIA SOCIAL COMO POLÍTICA SOCIAL NO CONTEXTO BRASILEIRO: ALGUNS APONTAMENTOS CRÍTICOS
Sara Mexko, William Azevedo de Souza, Silvio José Benelli
RACISMO INSTITUCIONAL E AS (IM)POSSIBILIDADES DE ATUAÇÃO NA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL: UMA EXPERIÊNCIA DE ESTÁGIO EM PSICOLOGIA SOCIAL
Alessandra Dias da Cruz, Hellen Cristina Pereira da Cruz, Jádia Alves Pinheiro, Robenilson Moura Barreto
POR UMA PSICOLOGIA ESCOLAR E EDUCACIONAL A SERVIÇO DO ESTADO DEMOCRÁTICO DE DIREITOS
Vanessa Cristina da Silva Malpighi, Marilene Proença Rebello de Souza
UMA DE MUITAS… POSIÇÕES DE UMA ARTIVISTA QUILOMBOLA: TRANSVERSALIZANDO VULNERABILIDADES E POLÍTICAS E SUAS POTÊNCIAS DE RESISTÊNCIA – TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE JAMBUAÇU – MOJU-PA
Adriana Helena Moraes; Agatha Letícia Eugênio da Luz; Ana Carolina Farias Franco; Antônio Augusto da Costa Severo; Daniele Vasco Santos; Danieli de Sousa Lameira; Eloisa Amorim de Barros; Joyce Costa Moreira; Larissa Azevedo Mendes; Lívia Arrelias; Robenilson Moura Barreto; Fernanda Gonçalves de Moraes; Hemelly Gemaque; Jorgete Lopes da Silva; Willivane Ferreira Melo
SOCIOEDUCAÇÃO E REINCIDÊNCIA: RELATO DE EXPERIÊNCIA EM UM MUNICÍPIO AMAZÔNIDA
Thércia Adriana dos Santos Padilha
SOCIOEDUCAÇÃO: DA CONCEPÇÃO DE ADOLESCENTE À PROPOSIÇÃO DE QUALIFICAÇÃO REGISTRAL DO PIA
Heliandro Magno Pinto
PROJETO POLÍTICO DE UM ESTADO EM CONFLITO COM A LEI
Flávia de Abreu LisboaPedro Paulo Gastalho de Bicalho
PSICOLOGIA NO SERVIÇO ESPECIALIZADO EM ABORDAGEM SOCIAL (SEAS): PRÁTICAS EM TORNO DAS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS
Rafaele Habib Souza Aquime, Flávia Cristina Silveira Lemos, Ana Paula de Andrade Sardinha, Robenilson Moura Barreto, Valber Luiz Farias Sampaio
REFLEXÕES ACERCA DO PROCESSO DE JUDICIALIZAÇÃO NAS MEDIDAS SOCIOEDUCATIVAS EM MEIO ABERTO
Valber Luiz Farias Sampaio, Flávia Cristina Silveira Lemos, Cyntia Santos Rolim, Rafaele Habib Souza Aquime
GRUPOS COM JOVENS EM UM CREAS DE FORTALEZA-CE: SÃO POSSÍVEIS EXPERIMENTAÇÕES DECOLONIAIS NO CAMPO DA SOCIOEDUCAÇÃO?
João Paulo Pereira Barros, Carla Jéssica de Araújo Gomes, Gabriella Celestino Lemos Furtado Gondim
NOTAS SOBRE A TERRITORIALIZAÇÃO DA PSICOLOGIA DIANTE DA POLÍTICA DE ASSISTÊNCIA SOCIAL
Fernanda Cristine dos Santos Bengio, Francidalva Costa Paulo
A PRODUÇÃO DOS SUJEITOS DA ASSISTÊNCIA SOCIAL: DO ABANDONO AO PRIVILÉGIO
Camilla Fernandes Marques, Neuza Maria de Fátima Guareschi, Anita Guazzelli Bernardes, Giovana Barbieri Galeano
IMPEDIMENTOS NA SUSTENTAÇÃO DA POLÍTICA DA ASSISTÊNCIA SOCIAL: A SOBREIMPLICAÇÃO EM SEU COTIDIANO
Ana Pereira dos Santos, Roberta Carvalho Romagnoli
SOBRE AS AUTORAS E OS AUTORES
INTRODUÇÃO
Este livro é uma coletânea nacional, contando com a participação de pesquisadoras e pesquisadores de várias universidades e programas de pós-graduação. Os capítulos apresentam resultados de trabalhos elaborados com rigor analítico, crítico, ético, implicados social e politicamente nos encontros entre a Psicologia brasileira e a Política de Assistência Social, no Sistema Único de Assistência Social (Suas).
Nesse sentido, nesta obra ficamos alegres em apresentar a participação das seguintes universidades/faculdades brasileiras: Universidade Federal do Pará (UFPA), Universidade Federal Rural da Amazônia (Ufra), Centro Universitário Maurício de Nassau (Uninassau), Faculdade Estácio do Pará, Faculdade Católica Dom Orione, Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Universidade Federal do Ceará (UFC), Universidade de São Paulo (USP), Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC-MG), Universidade Estadual Paulista de Assis (Unesp-Assis), Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Universidade Augusto Mota (Unisuam) e Faculdade Estácio. Além disso, temos a presença do Conselho Regional de Psicologia – Pará e Amapá, por meio da Comissão de Relações Raciais e da Articulação Nacional de Psicólogas(os) Negras(os) e Pesquisadoras(es) (Anpsinep).
A fim de demarcar a multiplicidade e a potencialidade das psicologias no Suas, costuramos este livro partindo da noção de território, que é, sem dúvida, uma ferramenta política e conceitual que estrutura as táticas e as estratégias de materialização da Política Pública de Assistência Social. O território enquanto vicissitude produz-se enquanto alternância e casualidades que racham certezas tecnicamente impostas por normas e leis universalizantes. Os fixos, como diria Milton Santos, combinam-se e se reposicionam no embate com os fluxos, e nesse processo são construídas as relações materiais e imateriais que compõem a territorialidade dos espaços. A Psicologia, ao se movimentar no Suas, a partir dessa perspectiva, faz funcionar arranjos do cuidado com o outro que confrontam incessantemente operações que reificam as singularidades, esvaziam de sentido as dores e anseios dos sujeitos ao rotular tudo como vulnerabilidade, folclorizam saberes locais e destilam preconceitos. Reunimos neste livro alguns desses confrontos, a fim de incitar a desestabilização das fronteiras da Psicologia no território da Assistência Social.
Lançamos então o convite a essa travessia como forma de acolher a todes que desejem somar nesse processo. Assim iniciamos este livro com o artigo-poema de Amanda Cappellari, Letícia Maísa Eichherr e Lílian Rodrigues da Cruz intitulado Interrogações (po)éticas: narrativas e acolhida no CRAS
. Ao apresentarem o cotidiano de trabalho no CRAS, as autoras apontam os desafios da acolhida para além de práticas engessadas por manuais técnicos e hierarquias dentro de determinadas relações de poder. Elas apostam na articulação e, sobretudo, na criação de redes. Concebendo a acolhida como ferramenta ética, estética e poética de cuidado e partilha, as pesquisadoras tensionam as perspectivas hegemônicas, coloniais, cientificistas e da branquitude que compõem o território do CRAS.
A fim de compreendermos a complexidade do fazer-saber que configura o campo da Assistência Social, Sara Mexko, William Azevedo de Souza e Silvio José Benelli, no capítulo A Assistência Social como política social no contexto brasileiro: alguns apontamentos críticos
, tecem reflexões críticas sobre a PNAS e o Suas. Assim, apresentam problematizações a respeito do campo da saúde pública como política universal e a assistência social a quem dela necessitar, traçando um paralelo com o modo capitalista de produção e a vinculação das políticas sociais à política econômica. Além disso, o capítulo retrata o processo de privatização da saúde e da previdência social, colaborando para que a assistência social se torne uma política social central. Análise Institucional da assistência social, a atuação profissional na PSB e PSE e a falta de participação popular nos conselhos dessa política pública.
Considerando a importância da intersetorialidade nas políticas públicas, os dois capítulos seguintes concentram-se na relação entre educação e assistência social. No primeiro, intitulado Racismo institucional e as (im)possibilidades de atuação na política de assistência social: uma experiência de estágio em Psicologia Social
, somos apresentados ao desencontro entre os estabelecimentos de formação em Psicologia e a execução da Política de Assistência, analisado pelas autoras por meio de um relato de experiência, problematizando o racismo institucional como um elemento que produz impossibilidades no contato entre estagiárias de Psicologia e atuação profissional no Suas. No segundo, o diálogo entre a política de educação e a de assistência também é continuado por Vanessa Cristina da Silva Malpighi e Marilene Proença Rebello de Souza, ao analisarem a importância da intersetorialidade como estratégia para enfrentar a fragmentação das políticas sociais
, a partir do resgate histórico da inserção da psicóloga(o) no Suas.
Nos capítulos seguintes, somos levados a refletir acerca do processo de vulnerabilização de determinados sujeitos. Na cartografia da territorialidade quilombola da comunidade Jambuçu, localizada no município de Moju/PA, somos convidados à imersão na produção coletiva da Comissão de Relações Raciais do Conselho Regional de Psicologia do Pará e Amapá, que confronta práticas e condições na Assistência Social que invisibilizam saberes locais daquele território. Por sua vez, Thércia Adriana dos Santos Padilha nos mostra, por meio de análise de documentos próprios da socioeducação – o PIA –, como as barreiras físicas, sociais e econômicas que constituem o cotidiano de um serviço de MSE de um CREAS são elementos que se traduzem na dificuldade de implementação dos direitos sociais dos jovens em cumprimento de MSE, fato que se constitui como um dos principais mecanismos de produção de reincidência aos serviços de cumprimento de MSE.
Paralelamente, Heliandro Magno Pinto tece apontamentos históricos sobre a constituição da noção de adolescência e de adolescente em conflito com a lei
. Ele traça o perfil da legislação brasileira, que passa pela punição às práticas pedagógicas correcionais. A partir de sua experiência como operador da política pública de assistência social, ele destaca a importância do PIA como instrumento que pode garantir aos jovens, no recorte da MSE, a integralidade das ações de inclusão social preconizadas pelo ECA.
Por outro lado, Flávia de Abreu Lisboa e Pedro Paulo Gastalho de Bicalho trazem provocações pertinentes a respeito dos mecanismos de funcionamento do sistema socioeducativo do Rio de Janeiro. Abordam o tema a partir do conceito de Racismo de Estado de Michel Foucault e explicitam táticas e estratégias de poder e saber que produzem a figura do jovem negro, morador da favela e pobre como inimigo interno que precisa ser encarcerado e/ou morto. Nessa mesma direção, no capítulo Grupos com jovens em um CREAS de Fortaleza/CE: são possíveis experimentações decoloniais no campo da socioeducação
, são debatidas as possibilidades de experimentações decoloniais no campo da socioeducação, a partir da construção de grupos de jovens que cumprem a medida socioeducativa de Liberdade Assistida (LA) em um CREAS de Fortaleza. As autoras e o autor apostam na pedagogia decolonial para reconhecimento e enfrentamento do racismo estrutural, criminalização da pobreza e mito das classes perigosas, e apostam também na construção de comunalidades integrada às artes e artefatos culturais a ser evocados por jovens das periferias no âmbito da socioeducação.
No capítulo intitulado A Psicologia no Serviço Especializado em Abordagem Social (Seas): práticas em torno das relações étnico-raciais
, Rafaele Habib Souza Aquime, Flávia Cristina Silveira Lemos, Ana Paula de Andrade Sardinha, Robenilson Moura Barreto e Valber Luiz Farias Sampaio analisam os encontros entre a Psicologia e o Suas, e problematizam os distanciamentos e as necessárias aproximações no campo das relações étnico-raciais na Proteção Social Especial, especificamente no Serviço Especializado em Abordagem Social com a população em situação de rua. Traçam um panorama histórico sobre as práticas da Psicologia no cenário brasileiro no que tange à temática étnico-racial e apostam, por fim, em uma psicologia antirracista que enfrente os efeitos epistemológicos da branquitude e investigue e estude cada vez mais os efeitos sociais, políticos e históricos do racismo estrutural.
Valber Luiz Faria Sampaio, Flávia Cristina Silveira Lemos, Cyntia Santos Rolim e Rafaele Habib Souza Aquime, no texto Reflexões acerca do processo de judicialização nas medidas socioeducativas em meio aberto
consideram o processo de judicialização da sociedade como um acontecimento contemporâneo. Nesse processo, o Judiciário é convidado a compor a vida das pessoas ganhando relevância diante dos Legislativos e Executivos. No Brasil, ele está demarcado, a partir do marco histórico de 1988, com a Constituição Federal do Brasil, que exibe um leque de garantias aos cidadãos e cidadãs. Desse modo, adentra-se um momento de consolidação da garantia de direitos, entre eles as políticas públicas, como a Política Nacional de Assistência Social (Pnas). Entre os serviços prestados, encontra-se o Serviço de Proteção a Adolescentes em Cumprimento de Medidas Socioeducativas (MSE), de Liberdade Assistida (LA) e de Prestação de Serviço à Comunidade (PSC).
Tendo como princípio o fato de que as medidas aplicadas são de ordem do campo judicial, o processo de acompanhamento desse serviço avizinha-se com o controle dos corpos. Questionamos: até onde vai a autonomia da Política Nacional de Assistência Social diante desses sujeitos e suas respectivas famílias? Logo, partimos da perspectiva da Psicologia Social Foucaultiana, para realizar uma análise histórica dessa constituição da PNAS e do Sistema Único de Assistência Social (Suas) como práticas que possuem força no presente, produzindo sujeitos, subjetivações, logo modos de vida.
A partir da noção de território e matricialidade sociofamiliar, Fernanda Cristine dos Santos Bengio e Francidalva Costa Paulo problematizam aspectos importantes para a materialização da política de assistência social. A partir da noção de matricialidade, as autoras trazem apontamentos históricos sobre a construção da família pobre como lócus de intervenção e controle do Estado. E, ao considerar a noção de território presente na PNAS (2004), são suscitadas reflexões sobre como esse conceito-ferramenta precisa ser dimensionado em sua multiplicidade, destacando que o território compõe-se tanto pelos seus aspectos materiais quanto imateriais. Nesse sentido, o campo de intervenção da Assistência Social compõe-se tanto pela transversalidade das forças e acontecimentos quanto pela multiplicidade dos saberes em cena. Esse fato permite tensionar essa política pública como materialização de uma forma de governo da população, bem como sua pertinência no que tange a práticas de cuidado e valorização dos saberes locais.
Aprofundando o debate acerca das tensões existentes no campo da Assistência Social como política pública, Camilla Fernandes Marques, Neuza Maria de Fátima Guareschi, Anita Guazzelli Bernardes e Giovana Barbieri Galeano apresentam a noção de produção dos sujeitos da assistência social no capítulo A Produção dos Sujeitos da Assistência Social: do abandono ao privilégio
. Iniciando com a marcação histórica diante de um novo regime fiscal a partir de 2016 com PEC 241/2016, o que reflete no desinvestimento nas políticas públicas do país, as autoras analisam as formas de governo das condutas e as produções de práticas de subjetivação, a partir das contribuições de Michel Foucault. Também destacam como os direitos sociais passam a ser vistos como privilégios por uma modificação na lógica dos direitos, ou melhor, por um processo duplo de financeirização do direito e moralização da cidadania. É por meio de instrumentos como documentos referentes às políticas públicas brasileiras, às notícias veiculadas pelas mídias impressas e digitais e a eventos públicos relacionados à temática da assistência social e avizinhamentos que as autoras constituem seu material de análise.
Por fim, encerramos este livro com a belíssima reflexão de Ana Pereira dos Santos e Roberta Carvalho Romagnoli acerca da construção do campo de trabalho da Assistência Social. Com muita sensibilidade e competência, as autoras acompanham e analisam parte do cotidiano de um serviço de média complexidade no âmbito do Suas. A brutalidade das urgências vivenciadas pelas pessoas atendidas nesses espaços justapõe-se às condições de saúde dos trabalhadores dos Suas. Esse aspecto é problematizado pelas autoras considerando os atravessamentos que compõem o saber-fazer desses profissionais, sobretudo aqueles ligados às instituições (como conjunto de normas, leis e regras) que compõem a Política de Assistência no Brasil.
INTERROGAÇÕES (PO)ÉTICAS: NARRATIVAS E ACOLHIDAS NO CRAS
Amanda Cappellari
Letícia Maísa Eichherr
Lílian Rodrigues da Cruz
Duas mulheres risonhas adentram o serviço e tocam a campainha sobre a bancada. "Então menino, não é que consegui um trabalho? Preciso que tu faça um xerox da minha identidade pra eu levar na firma". Prontamente recebe o xerox em mãos e anuncia: ah, não, faz outra cópia, nessa eu fiquei ainda mais preta do que já sou
.
Esse e outros acontecimentos adentram a pesquisa Práticas psicológicas e políticas públicas de assistência social: entre o risco e a normalização
, vinculada ao Grupo de Estudos em Psicologia Social, Políticas Públicas de Produção de Subjetividades (GEPS) do Programa de Pós-Graduação em Psicologia Social e Institucional da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (PPGPSI-UFRGS) e fazem ecoar vozes múltiplas nesta escrita. Convocamos a pluralidade porque, como afirma Didi-Huberman (2016), o único jamais será capaz de explicar as coisas da vida.
A inserção das pesquisadoras em serviços do Sistema Único de Assistência Social (Suas) traz para a universidade e para as produções acadêmicas rastros de histórias de sujeitos que compõem o que chamamos de acolhimento, não apenas como uma ação, um fazer técnico descrito em manuais, uma ética do trabalho social ou uma postura profissional, mas também como um processo e uma composição de relações que inclui diferentes atores e atrizes: quem faz o xerox, quem abre o portão, quem limpa as salas, as técnicas sociais, as usuárias. São rastros e gestos que se materializam, aqui, em fragmentos e narrativas, como um sentido inventado por nós às múltiplas histórias. Afinal, nem palavra, nem gesto dão conta do que deveras aconteceu
(EVARISTO, 2017, p. 84).
Neste capítulo, problematizamos acontecimentos que irrompem e compõem a trajetória da pesquisa a partir de discussões localizadas sobre o cotidiano de trabalho em Centros de Referência em Assistência Social (CRAS), enfatizando os modos de acolher e produzir cuidado e escuta em diferentes cenários do contemporâneo. Nesse sentido, tomamos como campo de análise dois serviços que se encontram em territórios plurais: um situado na capital do estado do Rio Grande do Sul (Porto Alegre); e outro, em uma pequena cidade no interior do mesmo estado (Roca Sales). Nossa escolha em realizar a pesquisa no limiar da metrópole e do interior consiste no interesse em visibilizar as complexidades da Política Nacional de Assistência Social (Pnas) em territórios variados, apontando para a impossibilidade de um fazer uníssono e para a necessidade de um olhar às singularidades do campo, e, assim como Hüning, Cabral e Ribeiro (2018, p. 57), mais do que com um arsenal teórico e técnico, operamos com memórias, lembranças e esquecimentos, com aquilo que pode ou não ser dito e com modos de dizer e escrever
.
Acolhidas cotidianas: do interior à capital
Entre a estrada de ferro e a água marrom que engolia a cidade, a jornalista aguardava o barco se aproximar para capturar a quase inenarrável cena. De máscaras para evitar o contágio por Covid-19 e coletes salva-vidas para se defender da imensidão da enchente, vinham no barco bombeiros e um casal de idosos. A mulher e o homem, já frágeis, estavam ilhados em sua casa no interior do interior. Não bastasse o barco, uma linha de trem usada para cargas foi necessária para que o casal pudesse chegar ao hospital. Enquanto o resgate acontecia, mais famílias chegavam carregando uma sacola ou outras coisas (pertences que conseguiram salvar das águas) para se alojarem nas dependências do CRAS. Na calamidade, alguns não lembraram das máscaras; outros, não atingidos pela cheia, colocaram botas de borracha e se lançaram às ruas inventando políticas de solidariedade. Dos morros da cidade, viam-se apenas copas das mais altas árvores e pontas de telhados.
***
No interior do interior... Roca Sales tem uma população estimada em 11 mil pessoas. Como na maioria das cidades pequenas, ao caminhar por suas minguadas ruas, deseja-se bom-dia ou boa-tarde a todas com quem se cruza. Há dois semáforos em seu território, unicamente ativados quando algum caminhão precisa manobrar para entrar em uma indústria. Não há ônibus urbano, nem aplicativos de transporte. Ou se tem o privilégio de possuir carro, ou será preciso fazer longas caminhadas – se não for possível pagar o alto preço de um táxi.
Para dizer o que queremos, precisamos convocar outro interior, que não o de cidade pequena. Convocar o sertão, aquele que fica dentro da gente, como diria Riobaldo, personagem de Grande Sertão: Veredas (ROSA, 2015). Convocar palavras-vivências, como aquelas de Sabela, personagem de Histórias de leves enganos e parecenças (EVARISTO, 2017). Para discutir sobre as acolhidas no CRAS, apostamos em uma política do sensível, em uma ética que faça ancoragem naquilo que sentimos ao estarmos em um serviço público com outras. Afinal, se não podemos fazer política afetiva apenas com sentimentos, tampouco podemos fazer boa política desqualificando nossas emoções
(DIDI-HUBERMAN, 2016, p. 38).
A narrativa das águas – que não são de março e nem fecham o verão – parece-se com a da grande chuva vivida por Sabela, em que as águas ao desabarem do céu não tiveram clemência alguma. [...] Fecharam os olhos à vulnerabilidade dos que embaixo do céu habitam
(EVARISTO, 2017, p. 75). A assistência social, constituída a partir de situações em territórios de maior vulnerabilidade e risco social dos municípios, tem na vida cotidiana a intensidade do seu fazer, que se complexifica com as calamidades imprevistas: coronavírus, enchente, ou os dois acontecimentos simultâneos. Como acolher as famílias no CRAS para além do assistencialismo e da solidariedade comuns em situações de urgência, especialmente em um território de cidade pequena e do interior, que não possui diversidade de serviços públicos? Na capital, mesmo com vasta rede ainda que insuficiente, nas chuvas que enchem o Guaíba e inundam as Ilhas¹, cenas parecidas com a do interior também acontecem.
Então, há de se articular todas as redes possíveis. E mais: apostar na criação de redes ainda inexistentes, mas que estão ali, no campo das virtualidades, flamejando pela possibilidade de vir a ser. E que seja pela potência de permitir-se não saber e suportar conviver com a incerteza e a impredizibilidade
(HÜNING; CABRAL; RIBEIRO, 2018, p. 64)
Para o investimento em redes existentes, ou ainda inexistentes, e para instrumentalizar ética e politicamente nossas práticas de acolher, precisamos nos colocar algumas questões, entre elas aquelas que nos convocam a pensar sobre as perspectivas hegemônicas, coloniais e cientificistas que sustentam o fazer profissional como detentor de verdades absolutas e certezas, principalmente sobre as vidas daquelas consideradas vulneráveis habitantes de territórios marcados pela falta dos mínimos sociais (SANCHES; SILVA, 2019; HÜNING; CABRAL; RIBEIRO, 2018).
Como sentimos a existência do outro em nós? O que nos toca quando escutamos outra vida? O que nos mobiliza a investir tanto em algumas histórias e a não produzir ecos em outras? Quando uma senhora diz ah, não, faz outra cópia, nessa eu fiquei ainda mais preta do que já sou
, escutamos que devemos repetir o procedimento ou conseguimos perceber a denúncia que suas palavras carregam? Essa locução atinge o cartaz antirracista colado na recepção do serviço. Problematizar o acolhimento no CRAS é refletir sobre as diversas posições de quem acolhe e de quem é acolhida. Somos três pesquisadoras brancas debruçadas sobre as sutilezas do encontro com outras. Temos o dever de fazer ver aquilo que por séculos nossa branquitude pactuou em silenciar e em nos colocar como modelos universais a muitos outros corpos – nesse caso, corpos a serem acolhidos.
Carlson e Goulart (2014) contam histórias de Silvia e Antonio, que poderiam ser de Anas ou Marias ou Joãos, para atentar ao que acontece quando temos alguém em nossa frente com toda a bagagem de uma vida, acompanhadas da carroça de catação, com dente de ouro, da carteira de identidade ou com a sacola de roupas. Atentar. A tentar. Um encontro. Uma acolhida. As autoras destacam a importância do cuidado ao acolher a outra – a diferente – para não relacionar a diferença a nós próprias e nos colocando como norma – privilégio da branquitude. Portanto, é preciso perguntar-se sobre as perspectivas teóricas-éticas-estéticas-políticas-metodológicas em que baseamos nosso fazer, sobre como estamos implicando nosso corpo e como produzimos relações de saber e poder no processo de acolher.
Ademais, o que diferencia a nós, operadoras das políticas públicas de assistência social, daquelas que as acessam? Daquelas que dela necessitam? Tendemos a pensar que são os privilégios e as vantagens raciais, articulados com outros marcadores sociais (como classe, gênero, sexualidade, idade, deficiência etc.), que configuram vivências múltiplas, singulares e coletivas. Vivências que em alguns corpos podem ser de opressão e violência; em outros, de manutenção de hierarquias e das desigualdades sociais.
Considerando as afirmações de Lia Schucman², que diz que no Brasil aprendemos a ser racistas e propagamos o mito da democracia racial, e as de Grada Kilomba³, que ressalta que as pessoas brancas não se veem racializadas como brancas, se veem como pessoas, nós nos perguntamos: como a branquitude produz nossos modos de (não) acolher?
Partindo das pesquisas e escritos de Muller e Cardoso (2017), Schucman (2012) e Carone e Bento (2014), entendemos a branquitude como a identidade racial da pessoa branca que ocupa uma posição privilegiada na sociedade marcada pelo colonialismo e que implica vantagens materiais e simbólicas em detrimento das não brancas. A branquitude é considerada um lugar de poder, um lugar de fala (RIBEIRO, 2017), em que o silenciamento atua como estratégia de manutenção de privilégios e do racismo estrutural.
Conceição Evaristo (2017, p. 102) alerta, poeticamente, que dizer algum dá conta do acontecimento. Palavra alguma, seja ela falada, escrita, consagrada, repudiada, inventada, nada diz tudo. Por isso várias, muitas
. É denúncia que nos convoca a deslocar a hegemonia de um jeito único de contar histórias e de operar a política de assistência social, que se materializa em acolhida, em atendimentos, em reuniões, em relatórios, em visitas domiciliares nas quais discussões sobre os efeitos das intersecções dos marcadores sociais na forma de vivenciar a questão social permanecem invisibilizadas.
Como bem apontam Oliveira et al. (2019, p. 145), a assistência social, assim como outras políticas públicas, é produzida, pesquisada e escrita principalmente por pessoas brancas e que, por isso, necessita "ser situada a partir do paradigma da branquitude que a constitui, para assim, pensarmos as implicações raciais envolvidas em