Maria no desígnio de Deus e a comunhão dos santos: Na história e na Escritura. Controvérsia e conversão
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Sobre este e-book
O Grupo de Dombes nos brinda com a descoberta de um caminho no qual católicos e protestantes podem ser companheiros: há divergências que devem ser reconciliadas, temas que devem ser aprofundados, mas que não devem ser considerados causa de separação e contenda. A solução é dialogar. A Secretaria do CONIC tomou a iniciativa de sugerir a edição desta obra na certeza de que a reflexão sobre Maria de Nazaré, em lugar de ser um obstáculo ao progresso do movimento ecumênico, pode ser recebida como um motivo de aprofundamento e esclarecimento dos conteúdos da fé cristã e um fator de maior comunhão entre as Igrejas.
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Maria no desígnio de Deus e a comunhão dos santos - Grupo de Dombes
Primeira parte
Uma leitura ecumênica da História e da Escritura
Apresentação da primeira parte
Rompendo com seu costume, o Grupo de Dombes publica separadamente a primeira parte de um documento intitulado Maria no desígnio de Deus e na comunhão dos santos, cuja segunda parte aparecerá logo que possível. Esta publicação em dois tempos se explica por várias razões.
Primeiramente, o assunto é relativamente novo no debate ecumênico; não figura ainda na ordem do dia de nenhum dos grandes diálogos interconfessionais mundiais atuais. Esta situação obrigou o Grupo a avançar num ritmo mais lento e a desenvolver mais longamente certos elementos atinentes ao tema. Por causa disso, o trabalho ainda não está totalmente acabado. Contudo, a primeira parte parecia suficientemente madura para uma publicação imediata. Pareceu que, para responder a uma legítima expectativa, o Grupo devia a seus leitores e aos membros de nossas Igrejas dar a conhecer em datas mais ou menos regulares os passos dados.
Melhor ainda, esta parte, primeiramente informativa e que tece em seguida a releitura bíblica no quadro das confissões de fé, vale por si mesma e prepara o terreno à parte que tratará do contencioso ainda existente. Esta parte não é conseqüentemente o simples anúncio e menos ainda o prefácio de um outro documento. Constitui um todo e, para retomar uma expressão de Irineu, é realmente Maria na sinfonia da salvação que ela nos apresenta e esta sinfonia não é inacabada.
Decidindo pela publicação desta primeira metade, o Grupo faz aliás seus leitores partilhar de sua própria caminhada. Fiel a seu princípio ecumênico,¹ tentou nesta primeira parte fazer uma leitura comum da história e da Escritura, antes e em vista de examinar e até mesmo superar o contencioso que perdura, e propor iniciativas concretas de conversão aos cristãos e às Igrejas envolvidas.
Se o Grupo de Dombes caminha em seu próprio ritmo, um dossiê seguindo outro, não se quer menos à escuta de seu tempo para responder às urgências que se manifestam; ora parece-lhe que atualmente uma tal urgência se verifica em razão de uma volta desordenada de piedade mariana mal fundamentada, que não faz senão exacerbar em vez de apaziguar as tensões que permanecem a respeito de Maria entre nossas Igrejas, que nascem até no seio da própria Igreja. Sabendo que muitas destas atitudes provêm de uma ignorância da história e de uma leitura controvertida da Escritura, pareceu-lhe oportuno não esperar o fim de seu trabalho para contribuir para um esclarecimento.
O título dado a esse documento assinala duas entradas que se cruzam como um eixo vertical e um horizontal. Maria no desígnio de Deus procura situar a Virgem no mistério da obra salvífica em razão de sua proximidade com o Filho de Deus que se tornará seu filho. Maria na comunhão dos santos quer retomar seu lugar na Igreja do céu e da terra na companhia dos santos de todos os lugares e de todos os tempos que são os fiéis: a mãe de Deus é a irmã dos que crêem. Uma mesma salvação está se operando no mistério da encarnação e na universalidade da redenção. Maria na encruzilhada deste duplo movimento é sua testemunha e manifestação. O documento explorará em sua segunda parte as condições e as conseqüências do encontro destes dois eixos.
Tínhamos de escrever juntos a história de nossa fé e é juntos que percorremos esta história para dela extrair os ensinamentos.
Se estas exposições tomam um espaço mais importante quantitativamente do que nos documentos anteriores, não é porque o assunto seria mais central aos olhos da fé. É preciso recordar com insistência que Maria jamais foi uma causa de separação entre as Igrejas. Ao contrário, ela se tornou sua vítima, até mesmo sua expressão exacerbada. Nela se polarizam e nela se refletem numerosos outros fatores de desunião. Foi exatamente por isso que o Grupo havia escolhido tratar desta figura emblemática da fé e da tradição cristãs, nem que fosse para verificar, num caso concreto e eminentemente sensível, seu próprio método e a proposta de conversão eclesial que baliza todos os seus textos. Num ponto delicado que põe em jogo a sensibilidade e a piedade de uns e de outros, poder-se-ia dizer uma palavra comum e provocar uma conversão mútua? Um avanço de reconciliação neste ponto terá desde então repercussões sobre outros pontos.
Nosso Grupo está de acordo em dizer que o desígnio de Deus — revelado pela Bíblia e acolhido pela fé que se regula
(regula fidei) e se articula
conforme os três artigos do Credo em Símbolos — liga concepção virginal e maternidade: aquele que morreu sob Pôncio Pilatos nasceu da Virgem Maria.
A fé da Igreja indivisa, presente hoje em cada uma e cada um de nós, faz a unidade da Igreja e realiza a comunhão das Igrejas em seu próprio mistério de integridade: a salvação operada pelo Cristo não é obra de persuasão humana, mas do poder de Deus. E eis que a estéril dá à luz e que a Virgem concebe e nisto os pobres já são evangelizados. Haveria em algum lugar, na aurora do terceiro milênio, uma confissão de fé no Cristo Salvador que recusaria esta fidelidade ao Evangelho?
Maria nas confissões de fé não é diferente de Maria na Escritura. Se os evangelhos da infância são para os sinópticos o que é o prólogo para o evangelho de João, menos uma história ou uma pré-história de Jesus que uma afirmação do aniquilamento daquele que será soberanamente elevado e chamado de Senhor na glória de Deus Pai (cf. Fl 2,6-11), é juntos que escutamos o anúncio feito a Maria e seu Magnificat, já que é juntos que confessamos Jesus concebido do Espírito Santo e nascido da Virgem Maria
.
O Grupo trabalhou tanto mais na serenidade quanto sabia fazer a diferença entre o que requer a fé e o que permite a devoção. Essa distinção fundamental vai estruturar todo o texto. Se alguns puderam escrever na Idade Média: De Maria jamais se dirá o bastante!
, não é menos importante distinguir a liberdade da devoção, nos limites da regra da fé, do único necessário, cujo Satis est
é lembrado pela Confissão de Augsburgo (1530/1580), o que basta para que haja Igreja e unidade eclesial: a pregação justa do Evangelho e a administração fiel dos sacramentos
. A hierarquia das verdades
do Vaticano II retoma em grande parte a mesma preocupação. O ponto de partida, como se verá, situa-se na confissão comum da fé, como a expressam os Símbolos da Igreja antiga. Tanto o Símbolo dos Apóstolos como o Niceno-Constantinopolitano (381), ambos explicitamente apresentam Maria, opondo-a a Pôncio Pilatos, como o nascimento à morte, como a participação no mistério da encarnação à cumplicidade na paixão.
Os resultados positivos nesta fase são um sinal encorajador para o passo que seguirá e que já está bem iniciado. Como constatar-se-á, o sumário do segundo volume mostra a amplidão e a delicadeza do campo que resta a cobrir. Mas desde agora é possível dar testemunho do estado de espírito que animou os quarenta membros do Grupo durante estes cinco anos de trabalho. É a alegria dos pioneiros que dominou, não obstante até o risco assumido de se aventurar num continente que os grandes diálogos interconfessionais até hoje ainda não haviam abordado. Alegria também de descobrir que o contencioso não segue forçosamente as linhas fortificadas das separações confessionais. O cristão pode ter sentimentos e atitudes pessoais de respeito, até mesmo de veneração pela mãe de seu Senhor e Salvador.
A lista dos participantes nestes trabalhos mostra uma totalidade de homens. Isso não quer dizer que o texto tenha sido elaborado sem participação feminina. A morte nos privou da presença de uma parceira, France Quéré. A questão da participação de ambos os sexos não se põe, contudo, só para um tema que implica uma mulher. Vale para qualquer capítulo da fé. O modo de cooptação de um grupo privado e a necessidade de uma continuidade num trabalho empreendido não fazem senão suspender para o momento a oportunidade desejada no Grupo e fora dele de uma participação feminina regular.
O Grupo sempre pôde trabalhar com uma serenidade que não excluía nem o rigor do debate, nem a confrontação das convicções, graças a uma fraternidade tecida ao longo dos anos e reforçada por uma vida espiritual nutrida pela oração dos monges da abadia cujo nome traz o Grupo com gratidão, humildade e responsabilidade, já em breve completando sessenta anos.
É, portanto, com confiança e na expectativa de reações, que a continuidade do trabalho poderá levar em conta num diálogo frutuoso com os leitores, que entregamos a presente obra a sua reflexão.
Perdoar-nos-ão sentir certa vaidade, no interior mesmo de nossa gratidão para com Deus, por termos sabido tecer uns com os outros este tecido que contudo se rasga e ainda nos dilacera, porque se a Virgem Maria é uma nota necessária na sinfonia da salvação, esta nota não faz imediatamente a harmonia entre nós. Contudo, fazer juntos esta constatação é totalmente diferente de uma declaração de fracasso. É um ato de memória (anamnese) criador de arrependimento e de esperança. Reconhecer juntos o que ainda nos divide é de certo modo falar no passado. Colocando neste primeiro quadro não a palavra fim
mas a expressão a seguir
, dizemos a nossas Igrejas respectivas: eis o que ontem nos dividia. Como será amanhã, já que o futuro se faz do hoje de nossa fé?
Alain Blancy e Maurice Jourjon
Co-presidentes do Grupo de Dombes
1 Cf. Pour la communion des Églises, l’apport du Groupe des Dombes 1937-1987, Centurion, 1988, que contém todos os documentos precedentes, exceto o último, que constitui um segundo volume, Pour la conversion des Églises, Centurion, 1991.
Introdução
1. Depois de mais de cinqüenta anos de paciente trabalho ecumênico no domínio doutrinal e após o aparecimento de seu último documento apelando para a conversão das Igrejas, o Grupo de Dombes julgou que uma audácia doravante lhe era possível: abordar o tema da Virgem Maria. Na tradição de nossas Igrejas este tema é particularmente conflituoso, ao mesmo tempo por seu valor em relação com a fé cristã e pelas reações afetivas opostas que constantemente provocou. Tentamos, então, propor um processo de conversão no espírito de nosso documento anterior, Para a conversão das Igrejas.¹
2. Instruídos por nossos trabalhos anteriores, quisemos começar pelos testemunhos da história, antes de propor uma leitura comum da Escritura sobre Maria. Importa, de fato, esclarecer entre nós o lugar de Maria na tradição do primeiro milênio que nos é comum e em seguida de que maneira ela se tornou o lugar de uma divergência crescente desde o tempo da Reforma (capítulo I).
3. A seguir, ativemo-nos a exprimir tudo o que nos une numa mesma confissão de fé em que Maria encontra o lugar que lhe compete na economia cristã da salvação. É por isso que escolhemos o quadro dos três artigos do Credo para apresentar Maria como criatura do Pai, a exemplo de todas as outras criaturas, como a mãe do Filho vindo a se encarnar em nosso mundo e como aquela que, presente na oração da comunidade de Pentecostes, pertence pelo Espírito à comunhão dos santos que é a Igreja. É neste quadro que releremos os testemunhos da Escritura concernentes a Maria (capítulo II).
4. É só então que abordaremos os quatro principais pontos de divergência entre nós: Maria cooperou
ou não para nossa salvação? Maria permaneceu sempre virgem ou teve outros filhos, irmãos e irmãs de Jesus? O que são os dogmas definidos do lado católico, a Imaculada Conceição e a Assunção? É legítimo, enfim, invocar Maria na oração para pedir sua intercessão junto de Deus? (capítulo III).
5. Proporemos, finalmente, a nossas Igrejas algumas balizas de conversão confessional na esperança de que Maria não seja mais um obstáculo entre nós (capítulo IV).
6. Nossas leituras da história, do testemunho da Escritura, de nossas convergências como das divergências que permanecem, serão evidentemente feitas com um cuidado ecumênico e no quadro eclesiológico. A perspectiva do apelo à conversão estará presente em cada um de nossos capítulos. Ela não significa a intenção de negar todas as nossas diferenças, mas exprime o desejo de compreendê-las em sua ótica e de respeitá-las na sensibilidade de uns e de outros.
7. Temos consciência de que, estando entre os primeiros a encetar um diálogo interconfessional aprofundado sobre o tema de Maria, nosso trabalho não poderá ser senão um desbravamento de terreno. Nosso objetivo é suscitar outros trabalhos e participar de uma evolução de nossas Igrejas para uma atitude pacificada. Esta situação nos obrigou a desdobramentos mais longos e mais técnicos que não tínhamos desejado, mas que nos pareceram necessários para uma justa abordagem do tema; pois é um absurdo que um desacordo maior entre os cristãos tenha surgido a respeito da mãe de seu Salvador.
1 Paris, Centurion, 1991.
I
As Lições da História
I. Maria na Igreja antiga
8. Nosso estudo sobre o lugar de Maria na Igreja antiga cobre praticamente o primeiro milênio: tratará primeiramente das confissões de fé, a seguir dos principais escritos dos Padres da Igreja e, finalmente, de uma literatura totalmente particular, a dos apócrifos
do Novo Testamento que desempenhou certo papel no desenvolvimento da devoção mariana, na liturgia e no culto.
1. Maria na confissão da fé
9. Nos documentos mais antigos como nos mais solenes, Maria está muito menos presente do que nos Evangelhos: ela está ausente na pregação dos apóstolos (querigma cf. At 2,14-36 etc.), ausente nas mais antigas confissões de fé e não está no centro dos primeiros concílios ecumênicos. Que se passa?
10. Os Símbolos de fé conheceram uma lenta gênese até o início do século III quando encontramos os primeiros Credos da Igreja. Contudo, bem antes disso, vemos os diferentes elementos dos futuros Símbolos se organizar e se estruturar em fórmulas de alguns autores. Inácio de Antioquia (cerca de 110) é a primeira testemunha que nos dá várias seqüências cristológicas diretamente tiradas do querigma apostólico. Suas fórmulas mencionam o verdadeiro
nascimento de Jesus antes da menção do mistério pascal: Nosso Deus, Jesus Cristo foi, segundo o plano divino, trazido no seio de Maria, saído do sangue de Davi e também do Espírito Santo
.¹ Assim a menção da concepção virginal de Jesus, filho de Maria, entra nas confissões da fé no início do século II: e não sairá mais.
11. Irineu é o primeiro Padre da Igreja que sugere explicitamente, pelo ano 180, a presença de Maria na pregação dos apóstolos. Sua exposição do querigma apostólico contém, de fato, as linhas seguintes a respeito de Eva e de Maria: Era preciso (...) que uma virgem, fazendo-se a advogada de uma virgem, destruísse a desobediência de uma virgem pela obediência de uma virgem
.²
12. A autoridade e a honestidade de Irineu, seu apoio na tradição das Igrejas da Ásia Menor e mormente de Policarpo, a presença do mesmo tema Maria-Eva por duas vezes em sua grande obra Contra as heresias, tudo isso leva a confiar nele quando situa Maria na economia da salvação em nome de uma