Duras prisões
De Sérgio Kuns
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Duras prisões - Sérgio Kuns
OS RATOS
Tarde ruim, quente, abafada, como têm sido todas as tardes das últimas semanas. O mau cheiro é insuportável e vem de um esgoto a céu aberto que passa bem ao lado de minha janela. Fechar pouco adianta, pois restam apenas alguns vidros quebrados e, mesmo que não estivessem...Fechar a janela com um calor desses? Em tardes quentes assim a situação é crítica: uma mistura de esgoto doméstico com restos de animais que ali pereceram: cães, gatos, ratos e, às vezes, gente, de categorias que não a difere muito dos ratos. Quando chove muito, o valetão transborda e leva essa mistura indigesta para dentro de alguns barracos. Mas mesmo essa indesejável vala tem suas utilidades: é comum que viciados sejam executados, ou algum delator, dedo-duro, e ali é um ótimo lugar para desovar as vítimas. Raras vezes a polícia por aqui pisou e, quando os vi, não vinham em operações policiais, e sim tratar de negócios com a escória que domina a área. É gente que vive na fronteira de mundos opostos: frente à sociedade garantem a lei e a ordem mas, quando escurece, e às vezes mesmo de dia, mantêm sujos negócios com o tráfico. E para os traficantes é muito conveniente que a polícia não apareça por aqui, mas para isso há um preço a se pagar, o arrego, muito mais alto do que o salário de qualquer policial. É negócio bom para todos. A nós resta dizer bom-dia aos traficantes, na esperança de que isso nos faça viver mais tempo, se é que isso vale a pena por aqui.
Se eu tivesse o que fazer não estaria aqui, deitado, suando e pensando em coisas que não posso mudar. São duas e meia, três da tarde, não sei ao certo, e os ratos estão fedendo...Acho que tudo fede nesse maldito lugar... É frustrante olhar para isso: uma peça única, um cubículo, com duas janelas e uma porta que tem uma taramela como tranca. Tudo o que posso chamar de mobília se resume a uma cama, um guarda-roupas, uma pequena mesa com duas cadeiras, uma pia velha e um aparelho de TV, esse último emprestado. A cama ganhei do Benê. Mas afinal, o que eu havia de esperar? Na verdade, existe algo que me difere dos ratos que apodrecem nessa maldita vala? Acho que eles ainda estão em melhor situação, apodrecem, mas pelo menos estão mortos enquanto.
Vou à janela e observo o mesmo cenário de sempre: crianças encardidas, seminuas, brincam na água suja o dia inteiro. Com um calor desses é uma diversão e tanto. Muitas não vão à escola. Enquanto isso, suas mães jogam conversa fora, apoiadas onde ainda resta alguma cerca. Falam sobre tudo o que diga respeito à vida dos outros, sempre no sentido negativo, temperado com maldade, enquanto seus barracos estão entregues às moscas, o que, aliás, não falta por aqui.
Será que sou diferente delas? Não falo mal da vida alheia, não falo, mas penso, como faço agora. Mas que me interessa se o Inácio dorme à porta de casa toda noite, e só acorda com as crianças encardidas que o cutucam com varas em meio a gargalhadas? D. Tereza se importa, pelo menos é o que parece, já que todo santo dia dá à vizinhança a mesma notícia, sempre com generosas pitadas de seu veneno. Teria D. Tereza algum motivo para odiar Inácio? Ora, Inácio é um alcoólatra infeliz, inofensivo...Sinto pena dele, no entanto D. Tereza parece sentir prazer quando espalha, de porta em porta, que ele chegou de madrugada e caiu tão logo passou o portão. Será que D. Tereza é melhor que Inácio? Será que ambos são melhores que os ratos que se desmancham na água podre? E como fedem os ratos...Mas D. Tereza também tem um cheiro ruim, acho que não toma banho. O Inácio eu tenho certeza. Passa as noites bebendo nos bares, acorda com o sol na cara, arrasta-se até seu quarto e dorme o resto do dia. À noite, o ciclo prossegue: acorda e vai ao bar, e quase não se alimenta. Acho que não sobra tempo para banho. Já D. Tereza teria tempo para banho se parasse de rodar a vizinhança falando da vida dos outros. Seria melhor pessoa se cheirasse bem?
Penso que meu cheiro também não é dos melhores. Deve fazer uns trinta e cinco graus, quem sabe quarenta, e tenho a impressão que meu suor retém o cheiro dos ratos podres. Um pequeno espelho mostra que meu rosto não é melhor que meu cheiro: barba por fazer, cabelos bagunçados e a pele enrugada, com sulcos, ora paralelos, ora cruzados, dando um aspecto... Não sei, talvez de couro de crocodilo. Sim, estava parecendo isso, um crocodilo escuro, preto.
Tento afastar essas ideias com um sacudir de cabeça, mas novamente penso nos ratos que habitam e morrem no valetão. Se eu fosse um crocodilo poderia viver junto a eles e, talvez, me sentisse melhor do que me sinto agora. É até engraçado pensar num crocodilo vivendo naquela água podre em meio aos ratos...
O dia caminha, o calor não diminui e, quanto mais a noite se aproxima, mais penso que Inácio se prepara para mais uma noitada entre bebidas e cigarros. Inácio está cada vez mais magro e quase não se alimenta. Ele só tem trinta anos. Acho que não vai viver muito.
LEMBRANÇAS
Tenho uns cinco, seis anos talvez, e observo tranquilamente outras crianças que brincam no terreiro ao lado de casa. Todas são maiores que eu, umas poucas mais claras também. Jogam futebol. Às vezes passam o dia inteiro jogando, e boa parte da noite. Alguns vão à aula no período da tarde, mas os outros nem perto da escola passam.
Meu pai diz que eu vou estudar, para não acabar como ele: pobre e frustrado. Não entendo muito bem o que ele quer dizer. Diz que somos pobres e reclama muito disso, não entendo o porquê. Acho que ser pobre para ele é diferente de para mim.
Minhas irmãs estão