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As pedras me chamam: as cracolândias como espaços de exceção permanente nas capitais brasileiras
As pedras me chamam: as cracolândias como espaços de exceção permanente nas capitais brasileiras
As pedras me chamam: as cracolândias como espaços de exceção permanente nas capitais brasileiras
E-book425 páginas8 horas

As pedras me chamam: as cracolândias como espaços de exceção permanente nas capitais brasileiras

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Sobre este e-book

O livro procura identificar o Estado de Exceção permanente que permeia a Cracolândia e como o direito paradoxalmente pode "cuidar" e reprimir a vida dentro das "paredes" dessa grande "cidade" inserida, no enfoque da presente pesquisa, das metrópoles. De acordo com a complexidade apresentada por esse espaço urbano, os resultados parciais são presenciados na necessidade de reformular a análise da aplicação e da centralidade do Estado frente à cracolândia, pois, diferentemente do que se percebe, os mecanismos normativos estão incrustrados (e não ausentes!) nas relações e nas tensões da cracolândia, mediando práticas de repressão e cuidado das pessoas que usam tal espaço.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de mai. de 2021
ISBN9786589602231
As pedras me chamam: as cracolândias como espaços de exceção permanente nas capitais brasileiras

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    As pedras me chamam - Giordano Leonardo Alves

    Giordano Leonardo Alves

    AS PEDRAS ME CHAMAM:

    as cracolândias como espaços de exceção permanente nas capitais brasileiras

    Conhecimento Editora

    Belo Horizonte

    2021

    Copyright © 2021 by Conhecimento Editora

    Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta publicação poderá ser reproduzida, seja por meios mecânicos, eletrônicos ou via cópia xerográfica, sem autorização expressa e prévia da Editora.


    Conhecimento

    www.conhecimentolivraria.com.br

    Editores: Marcos Almeida e Waneska Diniz

    Revisão: Responsabilidade do autor

    Diagramação: Reginaldo César de Sousa Pedrosa

    Capa: Waneska Diniz

    Foto capa: Paulo Whitaker

    Livro digital: Lucas Camargo e Gabriela Fazoli

    Conselho Editorial:

    Fernando Gonzaga Jayme

    Ives Gandra da Silva Martins

    José Emílio Medauar Ommati

    Márcio Eduardo Senra Nogueira Pedrosa Morais

    Maria de Fátima Freire de Sá

    Raphael Silva Rodrigues

    Régis Fernandes de Oliveira

    Ricardo Henrique Carvalho Salgado

    Sérgio Henriques Zandona Freitas


    Conhecimento Livraria e Distribuidora

    Rua Maria de Carvalho, 16 - Ipiranga

    31140-420 Belo Horizonte, MG

    Tel.: (31) 3273-2340

    Whatsapp: (31) 98309-7688

    Vendas: comercial@conhecimentolivraria.com.br

    Editorial: conhecimentojuridica@gmail.com

    www.conhecimentolivraria.com.br

    Elaborada por Fátima Falci – CRB/6-nº700

    Para meus amados Dirceu, Sinhá e Beto

    (in memorian) uma vez mais.

    AGRADECIMENTOS

    Frente aos inúmeros percalços que uma pesquisa para uma monografia apresenta, dentro das dificuldades em vários âmbitos como no ato da leitura, da orientação, e da própria confecção, deixar de agradecer a quem demonstrou um apoio incondicional a esse período de dedicação, seria impossível.

    Gostaria primeiro de agradecer a Deus, sem qualquer observação religiosa. Deus seria uma pura energia que me guiou até aqui, que está nessa monografia como esta em tudo que existe no Universo e que, como é o proprio universo, damos o nome a essa pura energia que faz fluir o mundo. À Deus, visto assim, principalmente nesse momento de inúmeras incertezas e medos de pesquisa e da vida ou dessa fase da vida como um todo, que significou uma rocha e, por ser a própria rocha, apresentou refúgio e completo amparo, uma fonte inesgotável de coragem contra o revolto mar da existência.

    Agradeço de maneira eterna a minha família, um porto seguro que reforçou o vínculo e o meu engajamento com a pesquisa. À minha mãe, Magna Elizabet dos Santos e ao meu pai, Sebastião Leonaldo Alves. Ao meu irmão Alessandro Ramalho. Eterna gratidão a todos vocês!

    Agradeço a meu tio Valter pelo incentivo desde criança aos estudos, a minhas tias maternas Dapaz e Zaninha e a meu tio paterno Dirceuzinho, e meus primos e avós maternos ainda vivos Taozinho e Nedina e minha tia Pretinha, que com uma simplicidade única alimentaram minha personalidade de maneira tão bela! Para os que já se foram, sei que em algum lugar vocês estão torcendo por mim e querendo sempre o meu bem, como agora. Por isso, lembro de vocês aqui. Um abraço apertado para a sempre e uma eterna gratidão por fazer parte dessa família tão bela.

    À minha namorada Paula Amorim, que com seu carinho não me deixou desanimar e com seu sorriso me fez acreditar e conseguir terminar essa pesquisa, me ajudando a segurar a barra mais pesada da minha vida. Aos meus amigos/irmãos de infância Àdamo Cristian, Alan Alves, José Augusto, Uanderson Pereira e Deivison Santos, que tiveram a paciência e a compreensão das minhas ausências no período de pesquisa e da faculdade. Afinal, amigos de infância são para toda a vida e, deixá-los de fora desses agradecimentos jamais seria possível.

    Agradeço imensamente aos meus amigos Robson Generoso e Bruna Machado, por todos os diálogos e pela companhia vivenciados por quase cinco anos, na espera do retorno para casa ou antes das aulas.

    E, também, agradeço aos meus amigos Tiago Geisler, Ian Santos e Vagner Ventura, pela hospitalidade, diálogos filosóficos e companhia.

    Na verdade, todos vocês são a minha família, sem exceção!

    Não poderia deixar de mencionar o ambiente universitário que proporcionou os mais valorosos diálogos sobre a pesquisa. O primeiro congresso, na UFMG, aos demais congressos, GP’s de discussão, a visita a São Paulo e Porto Alegre e Recife nos congressos de sociologia jurídica. Sem tais espaços de enorme contribuição acadêmica, de descobertas que aumentaram meu senso crítico de maneira inestimável, essa pesquisa jamais teria saído do ideário e aparecido assim no papel.

    Sem tais espaços de discussão, como o foram da UFMG, da UNISINOS, a UFPE e principalmente à PUC, ambientes de congressos inesquecíveis, o espaço de exceção permanente não teria a riqueza de material que poderia sonhar um dia ter nessa linha de pesquisa. Minha eterna gratidão!

    Aos meus professores do ensino infantil, fundamental e médio. De Dona Neide à Dona Déia, dos teatros de Dona Aparecida e dos pedidos de produção de texto de Dona Fatinha e Dona Vilma. Dos ensinamentos inesquecíveis de Cecir Diamantino e de Orestes Duarte, e todos os demais professores destes anos.

    Ao próprio espaço da PUC Minas Serro, no qual meus maiores medos, esperanças, cansaços, felicidades, temores, conhecimentos e experiências, durante cinco anos, foram moldados e reformulados, transformados e descontruídos, traçados e reconfigurados. Não tendo tomado a decisão de fazer universidade na a PUC e no Serro, teria esse que fala perdido uma carga gigantesca de conhecimento e de experiência de vida! Ao espaço academico da PUC Serro, meu enorme obrigado.

    Não poderia me esquecer nunca do Eterno Quilombo, essa sala incrível que passou por minha vida e que eu passei por ela. Se o Quilombo não fosse unido, se a Sala Quilombola não fosse e não tivesse esse nome, retirado das aulas e dos eventos sobre esse povo que apresentou o rizoma que alimenta uma amizade verdadeira, essa pesquisa não estaria completa.

    São tantos que seria impossível falar aqui de cada um, então, um abraço completo a todos, e, em especial aos mosqueteiros Tiago Heverton e Santiago Coelho, amigos desde o início, quando entrei um mês atrasado nessa sala maravilhosa, e que, juntos até o último dia, fundamos essa irmandade que nunca irá se acabar entre nós três. Como eu disse, são muitos então, o abraço vai completo para todos, sem que se possa esquecer qualquer um do eterno Quilombo! É uma felicidade ter sido parte dele, e, deixá-lo é triste, mas, a vida é feita de começos e recomeços, e as memórias felizes permanecem, sempre!

    Aos professores do campus, corpo administrativo e a todos os meus amigos que ali fiz fora do Quilombo. Um especial abraço e agradecimento, claro, ao Gil Hermenegildo, que fez a fagulha do pensamento crítico acender e perpetuar em todos os âmbitos da pesquisa.

    Ainda, agradeço ao meu orientador José Emílio pela oportunidade de execução dessa pesquisa com seu zelo e atenção, arte de um pesquisador nato. Somente com o incentivo à pesquisa é que o pensamento crítico pode criar raízes profundas no Direito e o que torna o curso da PUC Minas, coordenado pelo meu orientador, como um dos melhores das universidades privadas de todo o país.

    Por fim, não poderia jamais deixar de citar os autores que foram o farol para tal pesquisa, o norte indizível dessa esperiência avassaladora e desafiadora, que formaram meu pensamento jurídicoe, sociológico e filosófico.

    À Zygmunt Bauman, meu primeiro contato efetivo com a sociologia, que veio parar em minha mente quase sem querer, após uma palestra em uma das tantas semanas jurídicas que ocorrem no campus Serro. À Tanieli Rui e Luciene Raupp, fios de Ariadne que me guiaram na análise e na travessia da Cracolândia.

    À Michel Foucault e principalmente, dentre todos, a Giorgio Agamben e suas reflexões contemporâneas que contribuíram de maneira única, fundamental e definitiva para a esta pesquisa e, por ser um desafio em sua densa leitura, significou meu principal interesse ao mundo do Estado de Exceção e a uma vertente crítica do direito na contemporaneidade.

    Um eterno abraço e um forte sentimento de gratidão a todos e a quem eu esqueci, um grande pedido de desculpas. E lembre-se, em tempos sombrios como são estes que eu escrevo o presente trabalho, no qual o Brasil passa por um dos momentos mais delicados de sua frágil democracia de pouco mais de trinta anos de idade, e, claro, em sintomática crise dos trinta como se apresenta, resistir e lutar é tarefa de qualquer pessoa, não apenas da área jurídica. O Direito pode ser uma área que acaba por conservar inúmeros aspectos que evitam os critérios da luta, mas, em seu interior, é possível alcançar um campo de resistência, de conflito, contra as arbitrariedades, contra as mazelas do mundo, do Brasil, da frágil democracia tupiniquim.

    Lutar é tarefa da humanidade como um todo. Lutar é algo ineremente humano. Portanto, não se pode jamais abaixar os olhos e temer. É preciso lutar! Em qualquer espaço, em qualquer momento que for possível. Lute! Como disse Agamben em sua obra Profanações: A profanação do improfanável é tarde política da geração que vem. Portanto, que se profane sempre, quando for necessário!

    No mais, muito obrigado a todos!

    Um dia, a humanidade brincará com o direito, como as crianças brincam com os objetos fora de uso, não para devolvê-los a seu uso canônico, e sim, para libertá-los definitivamente dele. (AGAMBEN, 2004, p. 96).

    "Uma semana depois chegou o crack

    Gente rica por trás, diretoria

    Aqui, periferia, miséria de sobra

    Um salário por dia garante a mão-de-obra

    A clientela tem grana e compra bem

    Tudo em casa, costa quente de sócio

    A playboyzada muito louca até os ossos

    Vender droga por aqui, grande negócio."

    (RACIONAIS MC’S, 1993).

    LISTA DE ABREVIATURAS E SIGLAS

    Sumário

    PREFÁCIO

    Gil Ricardo Caldeira Hermenegildo

    1 INTRODUÇÃO

    2 A DINÂMICA CONTEMPORÂNEA DAS METRÓPOLES BRASILEIRAS

    2.1 A indeterminação na periferia do capitalismo

    2.2 O discurso da metrópole brasileira: mercadoria na empresa de gestão dos indivíduos

    2.2.1 Política x Gestão: a cidade como negócio

    2.3 Não vivemos numa selva de pedra? Então, tô nessa. Só os leões sobrevivem: o direito na rua

    3 CAMINHANDO PELAS RUAS: A BIOPOLÍTICA VISTA DO CENTRO

    3.1 O poder, o saber, e a guerra

    3.1.1 O poder soberano

    3.1.2 O poder disciplinar

    3.1.3 O poder regulamentar: entre a biopolítica e a governamentalidade

    3.2 A manutenção do Poder Soberano na modernidade: o racismo

    4 O ESTADO DE EXCEÇÃO PERMANENTENAS ESQUINAS

    4.1 A biopolítica na ótica de Agamben

    4.1.1 A bíos e a zoé: nas tramas da bíos da zoé

    4.2 O poder soberano e a produção da vida nua abandonada:a decisão soberana na zona cinzenta da indistinção

    4.3 O Homo sacer e o Estado de exceção

    4.4 O Estado de Exceção permanente na figura do campo

    5 TÁ A FIM DE CONHECER O QG DOUTOR? OS PERCURSOS ATÉ (E NA) CRACOLÂNDIA

    5.1 Fumo desde que o crack existe: uma história do crack

    5.2 Os pedreiros, as paneladas e o proibicionismo: uma história do crack no Brasil

    5.3 Não leva a mal, não. Se você olhar de perto vai ver que aqui ninguém é feliz! A cracolândia como espaço de exceção permanente

    5.3.1 Eu sempre quis trabalhar aqui, zé! Conflitos e interações no mercado cracolândia

    5.3.2. A gente tem mais dinheiro e estrutura, eles têm mais liberdade: cuidados e conflitos no mercado cracolândia

    5.3.3. A cracolândia anda. Não adianta maquiar o minhocão: bricolagem e territorialidade itinerante

    6 DA POSSIBILIDADE DO BANDO ESCAPAR AO TRECHO CONCLUSIVO QUE NÃO CONCLUI

    REFERÊNCIAS

    PREFÁCIO

    Na primeira década do século XXI, a implementação de políticas públicas de inclusão social e redistribuição de renda, permitiram com que os espaços acadêmicos e universitários pudessem ser ocupados por estratos sociais que tradicionalmente eram excluídos do acesso à educação. Tais medidas tornaram possível às universidades tornarem-se mais plurais, incorporando em suas práticas e mentalidades novos modos de vida e perspectivas acerca da realidade.

    Essa nova conjuntura Brasileira provocou impactos significativos no modo como a teoria do Direito elencava seus métodos e objetos de estudo. Se anteriormente havia o predomínio de teorias substancialmente herméticas e desconectadas da realidade fática, a presença de grupos historicamente subalternizados estimulou que outras temáticas fossem problematizadas. Na atualidade, temas anteriormente impensáveis no Direito como reflexões antirracistas, feministas, etc, encontram cada vez mais pesquisadoras e pesquisadores dispostos a confrontar os dogmas tradicionalmente estabelecidos no campo jurídico.

    Nesse contexto de desestabilização dos dogmas jurídicos encontra-­se o trabalho do pesquisador Giordano Leonardo Alves. Atento às mudanças do seu tempo, o autor produziu um texto conectado com o que há de atual no terreno da sociologia jurídica. O autor preocupou-se em identificar a relação existente entre os processos contínuos de exclusão social promovidos em nossa sociedade e o papel do Estado e do Direito nesse contexto.

    Tendo como principais referencias teóricas os escritos de Michel Foucault e Giorgio Agamben, Giordano utiliza como pressuposto de análise a compreensão de que o Direito é um fenômeno social. Isto é, o fenômeno jurídico como síntese das dinâmicas sociais ocorridas no contexto em que se encontra inserido. Desse modo, as estratificações sociais presentes na sociedade brasileira influenciam a maneira como o fenômeno jurídico se materializa, seja nos âmbitos da criação, interpretação ou aplicação do Direito.

    Em uma passagem central de seu texto, o autor problematiza quais são os sentidos e os papeis exercidos pelo Direito na atualidade. E, para tanto, recorre à interpretação biopolítica da sociedade. Termo inicialmente desenvolvido por Foucault, biopolítica é um modo de organização e funcionamento das sociedades típicas da Idade Contemporânea. Derivada das revoluções burguesas do século XVIII e das revoluções industriais ocorridas a partir do século XIX, o biopoder tem como objetivo instaurar e preservar as sociedades a partir de enquadramentos economicamente centrados. Em outras palavras: Busca-se, a partir de estratégias de poder específicas, garantir o funcionamento da sociedade com base nos interesses do capitalismo liberal.

    Para alcançar os objetivos propostos, a biopolítica preocupou-se em cooptar o ser humano de modo a reduzi-lo a uma mera ‘engrenagem’ no interior dos processos sociais, tratando-o como mera força produtiva e negando os meios necessários para o desenvolvimento de suas singularidades. Esses processos contínuos de assujeitamento somente foram possíveis por causa das tecnologias de poder desenvolvidas nesse período, a saber: Poder disciplinar, poder regulamentar e poder soberano.

    Surgido primeiramente na história, o poder disciplinar foi condição de possibilidade do capitalismo industrial. Com o objetivo de viabilizar uma intensificação da exploração de mão de obra e mitigar as resistências às opressões do período, essa tecnologia de poder atuava sobre o sujeito enquanto indivíduo. Seu método era de promover um contínuo condicionamento do corpo, a partir de constantes controles do tempo e dos comportamentos, além de uma permanente vigilância. Desse modo, produzia-se sujeitos ‘dóceis politicamente’ e ‘úteis economicamente’.

    Outra tecnologia indispensável na biopolítica é o poder regulamentar. Diferentemente da disciplina, a regulamentação incide sobre a população. A partir de movimentos contínuos de compreensão (estatística), e de controle dos processos sociais, por meio dos dispositivos jurídicos, busca-se inserir nos processos sociais coletivos a racionalidade econômica liberal. Desse modo, fenômenos coletivizáveis como natalidade/mortalidade, doenças, criminalidade, etc, passam a ser tratados como fenômenos rentáveis economicamente; ou seja, modos de produzir riquezas. Nesse sentido, defenderá Foucault, não é interessante que esses fenômenos sejam combatidos, mas estabilizados. Pois, dessa maneira, torna-se possível a sua exploração econômica.

    Por fim, há a tecnologia de poder soberana. Sendo um legado dos regimes absolutistas da Modernidade para o Liberalismo contemporâneo, o seu funcionamento difere das tecnologias anteriormente abordadas porque seu objeto não é a preservação da vida, mas a promoção da morte. Sendo seu instrumento a prerrogativa do uso da violência pelo Estado, seu objetivo é a preservação dos ditames liberais a qualquer custo. Mesmo que, para alcançar essa finalidade, seja necessário recorrer ao uso da violência de forma desamparada dos parâmetros legais.

    É em relação ao poder soberano que Giordano Alves concentra suas reflexões teóricas. Usando como base as reflexões de Agamben referentes às violações sistemáticas do Direito pelo Estado em prol da economia, o autor apresenta de forma competente e inteligente como o Estado Brasileiro trata os dependentes químicos que frequentam os espaços sociais denominados de cracolândias. Uma de suas teses é de que, assim como ocorriam como os campos de concentração dos regimes totalitários, a cracolância é um espaço em que o ‘estado de exceção’ torna-se regra. Isto é, onde as normas jurídicas de preservação da vida são suspensas e o poder arbitrário do Estado se manifesta na sua totalidade.

    Com muita destreza, Giordano percebe que da relação entre cracolândia/cidades e violação do Direito/preservação do Direito emergem questionamentos importantíssimos: Seriam as violações do Direito um fenômeno nuclear do Estado Democrático de Direito? Qual são as relações existentes entre Democracia e Autoritarismo? Como esboço de resposta, poderia ser afirmado que entre os regimes totalitários e democráticos, não há somente rupturas, mas também vínculos de continuidade.

    Essas e outras questões surgem quando se lê o belo trabalho de Giordano Alves. Fruto de muito empenho e dedicação (que tive o privilégio de acompanhar), este livro é a prova do quão bem-sucedido foi em sua empreitada intelectual. Friso, ainda, como foi exitosa a maneira como Giordano assimilou e incorporou os autores aqui mencionados nas suas reflexões. É perceptível a presença da postura combativa, disruptiva e de desconstrução que Foucault e Agamben tanto valorizam. Pois, caminhar ao lado desses autores, é jamais parar de pensar. É perguntar incessantemente: Por que é desse jeito? A quem essa dinâmica beneficia? Quem sai prejudicado? É possível fazer diferente? Em suma: É usar o pensamento crítico como uma caixa de ferramentas e, com ousadia e coragem, pensar fora dos ditames estabelecidos.

    A mim, cabe agradecer ao Giordano a parceria acadêmica que pudemos estabelecer no decorrer dos últimos anos. Desde nossas prosas (presenciais e virtuais); como monitor de minhas disciplinas ou pelas nossas participações em congressos acadêmicos, pude aprender bastante e acompanhar o excelente pesquisador que se tornou!

    Ainda, desejo que o saber consolidado neste livro possa alcançar o maior número de pessoas possível. E que as futuras leitoras e leitores do seu trabalho sintam-se contaminadas e contaminados pela potência do seu pensamento!

    Gil Ricardo Caldeira Hermenegildo

    Especialista em Filosofia pela UFMG.

    Mestre em Direito pela PUC Minas.

    Professor Assistente II da PUC Minas nos campi Serro e Barreiro.

    1

    INTRODUÇÃO

    A cracolândia é um espaço situacional na cena urbana. Para o bem e para o mal, é um espaço multifacetado, dinâmico, fluido, e, paradoxalmente, detectável, e por isso é de humanidade que tal espaço é permeado. A cracolândia é um microcosmo incrustrado dentro das principais metrópoles do Brasil e do mundo.

    Por isso, na cracolândia as coisas acontecem no sentido objetivo: as manchetes, os boletins de ocorrência, até mesmo as pesquisas acadêmicas não conseguem identificar completamente o lugar e o não-lugar que pertencem a este ambiente, cuja categoria do outro é de forma cotidiana destituída (AUGÉ, 2005).

    As imagens e os sons apresentados em documentários, filmes, reportagens, nas decisões jurídicas ou policiais, não são capazes de capturar o lugar em si, uma vez que a cracolândia se torna um personagem citadino, uma espécie de criatura que se modifica todos os dias na metrópole.

    Acessível e inacessível; transitório e permanente; vulgar e sagrada; estatística palpável do cálculo citadino e fio descontrolado em seu desenvolvimento. Paradoxal. Similar a sua mãe urbana, seu surgimento espontâneo remete a um espaço incontrolável, todavia visível. Um movimento constante do espaço no espaço da cidade.

    E, como em outros espaços, pessoas transitam pela cracolândia. E não só transitam: transformam, destroem, recriam, usam, compram, vendem, prendem, salvam, perdem-se, tornam-se indiferentes, encontram-se. Vivem e morrem. Matam e são mortas.

    São corpos dinâmicos e assim, políticos. Tais corpos políticos, como se define um corpo que se preze na contemporaneidade, se misturam a este espaço urbano na aplicação de normas explícitas e implícitas, ao deixar marcas humanas por meio de um cachimbo, uma arma, uma droga, um remédio. Cuidando e sendo cuidado, reprimindo ou sendo reprimido, no fluxo ou fora dele, alimentando-se ou alimentando.

    Essencialmente sobrevivendo.

    Ali, as pessoas perdem e ganham identidades, subjetividades, de acordo com a dinâmica do tráfico, do uso, da interação e intervenção estatal, mercadológica e da vizinhança. Ali, os corpos enfrentam modos de viver e de morrer, refletidos na repressão ou no cuidado, comuns na gestão deste espaço. Pessoas e corpos são reflexos e criadores deste espaço público (por isso político) e assim também são múltiplos, variados e dinâmicos.

    Por isso, na cracolândia as histórias cruzam-se, perdem-se. Nascem. Embora o panorama de abandono fomente a captura do seu dinamismo com a aplicação da exceção, suas histórias formam lutas capazes de estabelecer social, política e juridicamente, os corpos e o seu próprio espaço.

    Local de fricção e conflito, na cracolândia um funcionamento bélico é estabelecido aos corpos que nela sobrevivem. Afinal, em um cotidiano no qual inúmeras pessoas sequer sabem se irão viver o dia seguinte, o imprevisível fornece as doses para o néctar da guerra urbana permanente.

    É o sobreviver em uma guerra. Uma guerra silenciosa da política que não se vê, ou que abre uma fresta da porta ao quintal jornalístico de forma esporádica. Nos embates noticiados, a relação entre degredo e mutilação da dignidade dos usuários e a carga repressiva dos contingentes de agentes do Estado são o foco das histórias anônimas dos combatentes.

    Apesar disso, é no dia a dia que essa guerra permanente acontecesse, no silêncio cômodo que a guerra se enlaça. Uma guerra de interesses (imobiliários, estatais, religiosos, do tráfico, dentre outros), de histórias, de personagens e de situações nas quais os objetos são personificados e as vidas são coisificadas, nos termos de Rui (2014).

    Sobre o calor do asfalto, pessoas e objetos se trocam e uma guerra é travada. Espaço, sujeitos, e guerra. Lugar + individuo = guerra (urbana). Tal dialética inclusive remete ao prefácio de Os Sertões de Euclides da Cunha, feito por Ricardo Oiticica (2001), no qual se rememora no sertão de Canudos, a luta (guerra) entre o exército da república e os sertanejos de Antônio Conselheiro.

    Espaço, personagens e luta. Terra + Homem = Luta. Cracolândia + Pessoas = guerra (urbana). Uma tríade dialética do sertão urbano das grandes metrópoles do século XXI. Esse cenário é constante na peça do subdesenvolvimento latino.

    Com esta definição violenta, o paradoxo da cracolândia faz com que esta seja o espaço de maior visibilidade e complexidade das metrópoles brasileiras na atualidade e ao mesmo tempo abandonada. Uma possibilidade de gestão, a cracolândia é o argumento central para a visualização da condição da própria cidade, por se tratar de um lugar envolvido nas práticas do urbano.

    Em verdade, o acontecimento cotidiano é influenciado de maneira mútua entre a cidade e a cracolândia, e, sobre os escombros desta relação, capazes de encobrir a guerra nas esquinas e no fluxo, que pulsa a vida e a morte observadas na metrópole, no caso do trabalho, brasileira.

    Portanto, a cracolândia vive e morre, dia e noite. As pessoas ali vivem e morrem, são mortas ou colocadas em vida. Os conflitos espalham-se, iniciam-se, acabam-se, em continuidade.

    Neste paradoxo caminho que o presente estudo pretende seguir. Para tentar apresentar como esse lugar e essas pessoas perpetuam-se em conflito, em transformação. E nada como um objeto jurídico como o Direito, tão ordenado, tão oposto (?) à cracolândia, para, como seu oposto, apresentá-la em sua melhor aparição, em uma espécie de dialética.

    Com tais diretrizes, a presente pesquisa tem por objetivo principal, identificar a cracolândia e seus personagens em conflito constante na cidade e em seu interior, sobre o olhar dos mecanismos jurídicos e dos poderes estatais e mercadológicos (soberanos), na formação de um estado de exceção permanente que produz, pela atuação soberana em uma vida que pode ser passível ou não de morte.

    Em outras palavras, o objeto da presente pesquisa é apresentar se nas cracolândias das capitais brasileiras, o estado de exceção permanente permeia e desenvolve a guerra que fundamenta a dinâmica deste local urbano. Tal espaço dentro das dinâmicas da cidade, configura a relação intrínseca entre os mecanismos jurídicos estatais, os códigos sociais e as formas como os indivíduos dentro ou fora deste local são afetados ou não por esse conjunto de práticas e de conflitos.

    Por objetivos específicos, o trabalho tem por interesse de estabelecer uma visão da cidade e da metrópole no século XXI, e o modelo de gestão de problemas sobre a administração do urbano na indeterminação criada pelo capitalismo financeiro; fundamentar as relações da cidade com a abordagem de Foucault sobre o poder; estabelecer a figura da exceção permanente e do campo, de acordo com os escritos de Giorgio Agamben; fundir o histórico da cracolândia na cena urbana.

    Deste modo, o tema problema do presente trabalho é colocado da seguinte forma, podendo ou não ser respondido ao final da análise: Como é possível o surgimento do estado de exceção permanente na cracolândia, em pleno Estado Democrático de Direito, e como o direito consegue influenciar a produção da vida nua nas metrópoles?

    Em tal sentido, a hipótese trazida à tona pode ser estabelecida do seguinte modo: a ordem social no urbano possuí um potencial dinâmico que paradoxalmente é capturado pela aplicação da exceção permanente em espaços como a cracolândia, sendo este fenômeno legitimado pelas práticas jurídicas e auxiliadas pela manutenção da suspensão dos direitos dos indivíduos que permeia tal espaço urbano. Ou seja, a hipótese buscará confirmar a captura do espaço da cracolândia na urbanidade e como tal situação destitui a humanidade das pessoas em seu interior.

    Como marco teórico, o estudo, como já visto de forma implícita nas linhas até aqui expostas, carrega o seguinte propósito: como marco teórico tem-se a abordagem da gestão de problemas e da cidade como negócio, fundamentos para se compreender a metrópole brasileira; a abordagem do poder de Michel Foucault e do estado de exceção permanente de Giorgio Agamben; a etnografia e as abordagens de campo como as de Tanieli Rui.

    Antes de apresentar a estrutura dos capítulos, é preciso apresentar a impossibilidade de construção um ponto final sobre assunto tão complexo. Construir um ponto de partida já é complexo. Sem tal responsabilidade, a análise fatual e teórica torna-se mais específica no objetivo do trabalho, e se descontrói uma tentativa de fechar um raciocínio almejado por inúmeras teses e dissertações, as quais não conseguiram (e nem quiseram) terminar o tema.

    Ao visualizar a impossibilidade de ponto final, o presente trabalho se coloca como uma das tantas vozes a falar, de maneira inconclusiva, sobre esse espaço, essas pessoas e suas lutas urbanas.

    É o interesse de um método narrativo da realidade, que talvez possa ser sintetizado na frase do personagem Escritor do filme Stalker (1979) de Andrei Tarkovsky: Ora, alguém escreve porque está atormentado. Porque duvida de si. Fonte do tormento e das dúvidas, de curiosidade e receio, a cracolândia e suas vozes se concretizam nesta frase, de tal dúvida, de tal tormento. A dúvida, inclusive de alcançar uma conclusão, é tarefa do presente estudo.

    Assim, o primeiro capítulo visa identificar a realidade das metrópoles brasileiras, ou melhor, a dinâmica dos centros urbanos no Brasil. Ao analisar a perspectiva da indeterminação dos centros urbanos na chamada periferia do capitalismo, na qual o funcionamento social é posto de maneira completamente diversa dos grandes centros urbanos ao sul do Equador, esse capítulo buscará o discurso da metrópole brasileira.

    É dizer: como a gestão dos indivíduos e dos espaços urbanos estão no cálculo estatal e do mercado, e como o aspecto político destes espaços e destes corpos é afastado nesse modelo, mecanismo produtor da cidade como negócio. Tal contexto vai expor o direito nas ruas e nos espaços da rua, como a Cracolândia, para discorrer sobre como a ideia moderna de indeterminação capitalista repercute nas práticas jurídicas que engendram sobre a população urbana.

    A cidade como negócio, campo no qual os modelos administrativos de gestão de problemas estatais afastam os sujeitos do espaço político e jurídico da atuação pública, cria mecanismos de controle populacional voltados à maximização das relações capitalistas em todos os âmbitos dessa cidade.

    O direito funciona assim, como objeto do negócio citadino. Mais importante portanto se coloca o direito na rua, para se formar uma tentativa de escapar do disposto tão somente nas legislações, costumes ou jurisprudências, para se advir o real funcionamento deste direito (na rua).

    No segundo capítulo, uma análise sobre o pensamento de Michel Foucault, sua genealogia e as suas indagações sobre o poder e o seu desenvolvimento no decorrer dos tempos, será o ponto de convergência teórica. Uma análise sobre a biopolítica e sobre os dispositivos de poder como o poder soberano, disciplinar e regulamentar, serão cruciais para se escrutinar as práticas individuais e populacionais na cidade. A observância do racismo biopolítico irá conectar a estrutura estatal no espaço da cracolândia.

    Dentro da mesma linha de pensamentos, Giorgio Agamben e sua discussão de paradigmas de estado será o segundo ponto teórico. Sua teoria sobre a evolução do termo definido por ele como estado de exceção permanente dentro da lógica democrática e do Estado Democrático de Direito, pensado por intermédio de sua análise do poder soberano na atualidade e das vidas passíveis de morte e passíveis de vida, fundamentam o corpo analisado por sua teoria: o corpo do homo sacer, o receptáculo da vida nua.

    Essa teoria será a espinha dorsal do trabalho, e sobre ela será definida o principal enfoque da relação entre Cidade x Cracolândia, e Cracolândia x indivíduos.

    No terceiro capítulo, o espaço da Cracolândia será o foco. Suas interações como um espaço da cidade, no qual as práticas estatais se manifestam, se repercutem e se desvelam, funcionará como exemplo considerável da perspectiva principal que se almeja demonstrar: A forma como determinados espaços são em verdade abandonados e não esquecidos quanto à aplicação de dispositivos jurídicos em seu interior e, na contemporaneidade, alguns espaços podem se tornar ambientes nos quais a exceção permanente da aplicação do direito se torna regra.

    Para tanto, um histórico da substância

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