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Gritos no Deserto: Contos
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Gritos no Deserto: Contos
E-book239 páginas3 horas

Gritos no Deserto: Contos

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Sobre este e-book

Os contos que compõem 'Gritos no Deserto' foram escritos ao longo dos últimos dez anos, refletindo a evolução do processo criativo do autor nesse gênero. Eles incorporam ampla diversidade de estratégias narrativas, discursos, vozes. Os personagens, ora são focados detalhadamente, ora são meramente simbólicos, não sendo possível sequer lhes identificar o gênero. O enredo, em alguns casos, é linear, realista e, noutros, parabólico. Enfim, o autor recorre a diversas experiências narrativas, em busca do formato mais adequado para expressar o que chama de astúcias da imaginação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jul. de 2022
ISBN9781526000873
Gritos no Deserto: Contos

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    Gritos no Deserto - Admaldo Matos de Assis

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    Lua bonita

    Os galpões - vazios e silenciosos - lembravam catacumbas expostas ao luar. A maioria dos trabalhadores passava o domingo em casa; operários qualificados, trazidos da capital, tinham ido farrear num mísero povoado, distante légua e meia. Uns poucos, que ficaram no acampamento, se revezavam em duas mesas de jogo, à luz de candeeiros. Deles chegavam batidas na madeira das pedras de dominó e, de vez em quando, as vozes: Passo... Bati! É lá e lô!... Josino, mestre de obras, seu companheiro de alojamento, viajara devido a problema de saúde na família; a ele só restara a companhia de João Batista - apelidado de Gato - que vivia se esmerando em agradá-lo e servi-lo.

    Entre eles ardia pequena fogueira, perpassando-lhes os rostos com lampejos avermelhados. De botas longas, roupa cáqui, vestindo casaco - que a mãe lhe dera na partida, para evitar constipações - Artur escanchara-se na rede, estendida entre duas colunas de madeira, que sustentavam o alpendre. De cócoras, empunhando com a mão esquerda inarredável chapéu de couro e, com a direita, reluzente faca, Gato ora abanava o fogo, ora virava e revirava duas espigas de milho, assando-as de modo uniforme.

    Solidão, luar, silêncio, crepitar de fogueira, cheiro delicioso das espigas e a atmosfera de cumplicidade reinante encorajaram Artur a fazer pedido, inúmeras vezes esboçado mentalmente, mas nunca verbalizado.

    - Gato... - principiou, qual cego às apalpadelas -, há muito tempo queria lhe pedir um grande favor, mas não tive coragem...

    - Por quê? - soltou Gato, entre curioso e surpreso.

    - Você podia se ofender, achar que eu estava abusando de sua amizade...

    - Que abusando que nada, doutor!

    - Vou dizer o que é, mas aviso logo: se não quiser ou não puder me atender, a nossa amizade será a mesma. Combinado?

    - Combinado!

    - Desde que aqui cheguei - lá se vai quase um ano - não sei o que é mulher. Como engenheiro-chefe não fica bem me misturar com empregados em farras e nem correr o risco de pegar doenças do mundo. Procurar mulher por conta própria é difícil, porque não conheço ninguém, além de ser muito arriscado: basta ver o que aconteceu ao engenheiro Lázaro. Não é mesmo?

    - É...

    - Será que você, que conhece tudo aqui como a palma da mão, não podia descobrir alguma mulher para me desafogar? Não precisa ser nova nem bonita; basta ter saúde e ser descomprometida. Só lhe peço isso porque - você é homem, me entende - ando subindo pelas paredes...

    Sem titubear, mormente tratando-se de um pedido do engenheiro-chefe, Gato prometeu:

    - Vou fazer o possível e o impossível. Eu lhe devo um grande favor. U´a mão lava a outra, doutor!

    As menções ao grande favor e ao adágio popular - U´a mão lava a outra - decorriam de fato acontecido há meses, justamente quando os dois se conheceram. Artur se lembrava muito bem...

    Um dia, mal assumira a chefia das obras do açude Mandacaru, apareceu Gato, montando burra velha e cansada, na iminência de arriar junto com o dono. Alto, seco de carnes, sarará, olhos de felino, bigode ruivo, enorme faca embainhada e presa ao cinturão, apeou-se, tirou o chapeu de couro num gesto mecânico, confirmou ser Artur o engenheiro-chefe, apresentou-se - João Batista, seu criado, conhecido como Gato - e solicitou um particular.

    Seu objetivo fora pedir emprego, não importando a natureza e o salário. Perdera tudo que plantara, não conseguia trabalho nas fazendas castigadas pela seca, achava-se em petição de miséria. Saíra de casa sem deixar nada para a mulher e os dois filhos comerem - confessara-o de olhos molhados. Há mais de uma semana não dispunha sequer de fumo para enrolar um cigarro de palha. A voz embargada, o rubor da face denotando vergonha, a imagem de sertanejo alquebrado pela humilhação causaram imensa pena a Artur. Providenciara mantimentos - feijão, farinha, charque, fubá, sal - dera-lhe algum dinheiro e mandara-o voltar no dia seguinte, prometendo fazer o possível para atendê-lo.

    À noite consultara o capataz e o mestre de obras. Aquele dissera precisar de um vigia, mas ponderara ser inconveniente admitir um estranho para função de confiança. Este opinara contrariamente, por vários motivos: primeiro, a falta de referências alegada pelo capataz; segundo, o fato de ter ele, Gato, adquirido um cavalo com sela e arreios para o engenheiro-chefe anterior, poucos dias antes do seu trágico falecimento; terceiro, o bigode de saúva. Gato tinha bigode ruivo, lembrando a cor da formiga saúva, que o mestre de obras acreditava constituir sinal de torpeza gravado pela mão de Deus.

    Dessas objeções somente uma assustara Artur: a possível vinculação entre Gato e o assassinato do engenheiro Lázaro, de autoria ignorada e de evidente caráter passional, pois a vítima, além de sofrer doze facadas, tivera o pênis extirpado e posto na boca à guisa de chupeta. Apesar do temor e das opiniões contrárias, Artur não tivera coragem de negar o emprego, assumindo o risco de autorizar o contrato.

    Gato se revelara trabalhador dedicado, incansável, desprendido, enfim, pau pra toda obra, como se autodenominava. Apesar disso, o capataz e o mestre de obras se mantiveram desconfiados, insistindo com Artur para não se descuidar. Além das objeções anteriores, o apelido, Gato, poderia indicar - avisavam - jeito silencioso e brando na aparência, porém traiçoeiro como o do gato ao trucidar indefeso passarinho. Artur permanecera em guarda, não lhe saindo da cabeça a imagem putrefata do antecessor - tal como descreviam - semidevorado pelos urubus, a horrenda chupeta entre os lábios. Com o passar do tempo e reiteradas manifestações de amizade e gratidão por parte do vigia, o temor se fora dissipando, até se encorajar Artur ao pedido que acabara de fazer.

    Passaram-se semanas sem que o pleito fosse atendido. De vez em quando Gato dava-lhe satisfação, dizendo não estar esquecido. Supunha Artur que o vigia, apesar de todo empenho, enfrentava enorme dificuldade em encontrar uma mulher nas condições solicitadas. Uma noite, cansado de esperar, e estando a sós com o amigo, se julgou no dever de dispensá-lo do favor, para não mais constrangê-lo à busca do impossível.

    O vigia reagiu ofendido, como se Artur, em vez de querer poupá-lo, lhe estivesse presumindo o fracasso:

    - Doutor, promessa é dívida! Dentro de uma semana - juro! - o senhor vai ter o que quer, custe o que custar...

    Imaginando significar a expressão - custe o que custar - necessidade de recursos financeiros, Artur esclareceu, após longo rodeio, estar disposto a arcar com as despesas.

    - Deixe comigo, doutor; não vai lhe custar nada. Favor, com favor, se paga. Só preciso de dois dias de dispensa para tomar umas providências e pronto.

    Após a folga, na manhã do sábado, apareceu Gato, montado na velha e cansada burra, puxando um cavalo novo e selado. Com ar vitorioso, anunciou baixinho:

    - Vai ser hoje, doutor. O nome dela é Maria.

    Os dois partiram às cinco da tarde, nas respectivas montarias e a passo lento, pois o engenheiro não tinha o hábito de cavalgar, podendo ser acometido pelo que chamam dor de veado. Eles passaram sobre a base em pedra e cimento da futura barragem, tomando estrada carroçável, ao pé de longa montanha, que lhes sombreava o percurso. Artur seguia calado, saboreando o ar puro e a quietude da paisagem, recordando em que circunstâncias fora parar naquele fim de mundo...

    Aos vinte e quatro anos, filho mais velho de modesto funcionário público, conseguira se formar em engenharia civil, mas não arranjava emprego. O doloroso tempo de espera pelo exercício profissional e autonomia financeira interrompera-se com o chamado da construtora para assumir a chefia das obras da barragem Mandacaru, situada nas cabeceiras de rio temporário, a qual, depois de concluída, levaria de três a cinco anos para atingir o nível máximo, devendo alimentar sucessivas barragens a jusante e beneficiar, além das terras às margens, cerca de vinte povoados e uma cidade. De logo o avisaram ser de quase reclusão o regime de trabalho exigido pelo cronograma da obra, que a cidade mais próxima distava sessenta quilômetros,e a linha férrea, mais de cem. Os contatos com a sede da empresa se fariam mensalmente, através dos seus agentes pagadores e, eventualmente, por meio de motoristas de caminhões que transportassem equipamentos e material de construção. Aceitara o desafio forçado pela necessidade de sair do atoleiro profissional, porém, ao saber depois como morrera o antecessor, enchera-se de medo e cuidados, restringindo seus movimentos ao canteiro de obras.

    O mesre de obras Josino - cinquentão, prudente, vivido - tornara-se o conselheiro a quem recorria para esclarecer dúvidas. Se, por exemplo, queria adotar novo procedimento ensinado na faculdade, consultava-o antes, mesmo sabendo que ele fatalmente rejeitaria, esgrimindo o infalível argumento que lhe ditava o espírito conservador: Não se deve mexer no que está quieto. Num primeiro momento cedia ao conservadorismo de Josino, convencendo-o depois a testar a novidade e, no mais das vezes, logrando implantá-la. Desse convívio harmonioso nascera eficiente parceria e sólida amizade. Ao cabo de algum tempo, ele absorvera tamanha influência do mestre de obras que um dia se flagrara, diante de proposta inovadora do capataz, recusando-a: Nunca se deve mexer no que está quieto.

    Em plena solidão da caatinga, à medida que se adensavam as sombras da tarde, pássaros se recolhiam aos ninhos e as primeiras estrelas despontavam, um sentimento opressivo invadiu Artur, ressuscitando-lhe velhos temores e maus presságios. Ao seu lado, cabisbaixo, reflexivo, o vigia ora parecia triste, acabrunhado, ora distante, bem distante... Seu perfil magro e alto, a dureza do semblante e a descomunal faca peixeira presa ao cinturão davam-lhe ar sombrio e ameaçador. Movido pelo instinto de não dar as costas ao perigo, Artur reteve disfarçadamente o cavalo, deixando o outro seguir adiante. Essa providência atenuou-lhe a insegurança, embora continuasse a se lastimar por não trazer consigo o revólver calibre 38, municiado de seis balas e mais seis de reserva, com que lhe presenteara o pai. Da próxima vez, não o esqueceria.

    Era noite fechada quando Gato, parando diante de um lajedo, apontou uma casinha branca ao pé de frondosa árvore, distante uns cinquenta metros da estrada, e disse:

    - É ali.

    Artur esporeou o cavalo sem olhar para trás. A casa tinha um alpendre pequenino, duas janelas de frente e uma porta lateral; porta e janelas fechadas, deixando escapar, através de suas frinchas, luz trêmula e amarelecida.

    - Ô de casa! - chamou.

    Voz suave, mais parecendo de menina que de mulher, indagou:

    - Quem é?

    - Sou o amigo de Gato, Maria.

    Abriu-se a porta, surgindo vulto de mulher em roupas domingueiras.

    - Apeie-se e entre; vou guardar o cavalo - disse ela, tomando o cabresto do animal.

    A sala tinha paredes brancas, recém-pintadas por alguém sem experiência alguma. Em molduras toscas enfeitavam-na imagem de São Jorge lancetando o dragão, além de quadro em que se lia: A casa é pequena, mas grande o coração.

    Obsequiosa, humilde, olhos baixos de ré, Maria permaneceu calada ou monossilábica. Tinha cabelos ondulados, busto generoso, ancas salientes sob o vestido de chita amarela, salpicada de flores vermelhas e azuis. Além de quase muda, não permanecia junto dele, a todo instante arranjando pretextos para se ausentar: tirar a quartinha da janela, limpar a manga de um candeeiro, reabastecer outro, colocar traves nas portas, coar café... Ele não sabia o que dizer, mas se sentia seguro na casa - pequena, limpa, aconchegante - e se entretinha olhando a mobília pobre, as flores silvestres num vaso de louça barata, o telhado obscuro, as portas de madeira maciça e uma nesga da cama de casal sob lençol bem alvo, onde ansiava aplacar o sexo latejante.

    Na mesa, a ceia o aguardava sobre toalha axadrezada em azul e branco: carne de bode assada, cuscuz, bule de café fumegante e pedaços de rapadura para adoçá-lo.

    Percebendo haver somente um prato e um talher, Artur indagou-a se não ia cear, ao que ela respondeu que já o fizera. Ele então insistiu:

    - Maria sente-se, sente-se, por favor. Se você não sentar, eu não como. Ela o atendeu, obediente, dando a impressão de sentir-se lisonjeada.

    Seus rostos ficaram bem próximos e visíveis, pois a mesa era estreita, e, sobre ela, havia um candeeiro, cuja manga há pouco fora limpa. Artur pôde então lhe perceber a alvura dos dentes e a beleza do rosto, de quando em vez iluminado por um sorriso infantil, que abria duas covinhas nas bochechas, e o contraste da pele morena com os olhos verdes, esmeraldas recém-saídas da ganga bruta. Olhos que não se cansava de ver, rever e admirar.

    Como sobremesa lhe serviu umbuzada, cujo sabor ao mesmo tempo acre e doce ele tachou de divino - expressão que a fez sorrir, parecendo não a entender.

    Mais tarde, enfim, Maria o recebeu na penumbra oscilante do quarto, pudicamente metida numa camisola de algodão, sob lençol cheirando a alfazema - quieta, silenciosa, impassível - aceitando resignada a função de recipiente do homem que lhe haviam encomendado.

    Antes que a primeira claridade matinal se infiltrasse pelas brechas do telhado, ela o despertou, aprontou-lhe o cavalo, e se despediram com fugaz bom-dia. Gato já o esperava defronte ao lajedo, pitando seu eterno cigarro de palha. Regressaram no escuro, como dois ladrões. Gato perguntou se estava satisfeito; ao que Artur respondeu que sim, que Maria era bonita, nova, delicada, limpa e, de quebra, cozinhava bem. Tem uma coisa: ela não é mais moça e nem mulher da vida - arrematou.

    Mais tarde, no acampamento, Artur lhe deu uma boa quantia dizendo ser um presente destinado a Maria. A princípio o vigia não queria receber, alegando que favor não tem preço, mas Artur insistiu:

    - Não é certo eu comer e fornicar de graça. Além do mais, a pobrezinha teve despesas extras: o vestido, a toalha da mesa, a camisola e a roupa de cama, tudo era novo, e eu desconfio que a pintura da casa também.

    Cerca de um mês depois, no final da tarde, o engenheiro e o vigia percorreram o mesmo caminho, com destino à casa de Maria, aonde chegaram pouco antes do anoitecer. Nessa visita Artur descobriu duas coisas: a porta e as janelas estavam pintadas de azul e a árvore em frente à moradia se chamava juazeiro.

    Maria usava vestido e sandálias novos, pareceu menos tímida e lhe preparara deliciosa refeição, porém mais leve que a anterior: jerimum com leite, cuscuz de mandioca com manteiga, arroz doce, afora café bem quente e encorpado.

    Na cama ele foi mais afoito, beijando-lhe o rosto, sugando-lhe os mamilos e excitando-a com as mãos e os dedos até senti-la estremecer. Maria recompensou-o oferecendo-se descontraída à penetração, abraçando-o na hora do gozo, acolhendo sua cabeça entre os seios durante o sono e, de madrugada, na despedida, pondo-se na ponta dos pés para lhe estalar um beijo.

    Na terceira vez Maria saudou-o com nítido sorriso de alegria e uns olhos verdes longos e profundos, que ele interpretou como olhos de desejo. Na ceia lhe ofereceu milho cozido, canjica, pamonha e queijo feito com leite de cabra. Sem que Artur pedisse, se sentou à mesa e fez a refeição diante dele. Depois conversaram como jamais haviam conversado. Maria disse, com uma ponta de vaidade, que aqueles pratos haviam sido feitos com milho que ela mesma plantara, limpara e colhera. Este ano o inverno foi bom, graças a Deus! Também o queijo era de produção doméstica. Ela pareceu vaidosa ao narrar, detalhadamente, o processo de preparação e cozimento do milho, pamonha e canjica, bem como de feitura do queijo de coalho.

    Apesar de curioso por saber mais sobre Maria - se era solteira, casada, viúva; se tinha pai, mãe, filhos; por que morava sozinha à margem da estrada... - nunca a abordara sobre isso, observando pacto firmado com o amigo. Ela jamais demonstrou interesse em saber qualquer coisa desse gênero a seu respeito.

    Despidos sob os lençóis, cumularam-se de mil e uma carícia. Para felicidade dele, que se esmerava em alçá-la às culminâncias do sexo, houve um instante em que Maria deixou escapar dois gritos de prazer, cravando-lhe as unhas nas costas... Dormiram saciados. Na hora da partida - e num tom que mais parecia doce intimação para amiudar as visitas - ela perguntou:

    - Quando é que o doutor vem de novo?

    - Pra semana, sem falta - prometeu, acariciando-lhe a nuca.

    Uma semana depois, mal entrou na casa, Maria deu um pulo de alegria, agarrou seu pescoço - qual menina travessa escalando uma árvore - e lhe salpicou o rosto de beijos. Artur tomou-a nos braços arrebatado por crescente desejo, afagando-a, cheirando-a, beijando-a. Cada um se entregou à tresloucada posse do outro, numa viagem sem roteiro, limites, freios, controles, e se possuíram como animais - selvagens, famintos, no cio - até se acharem exaustos, suados, pegajosos, caídos no chão.

    Após repousarem, Maria providenciou água morna, se lavaram e cearam juntos, não mais um diante do outro, porém lado a lado, como recém-casados. Entre uma colherada e outra, se beijavam, entre uma garfada e outra, diziam palavras doces, o tempo todo se lançando olhares ternos.

    A lua cheia convidou-os a armarem a rede sob o alpendre e nela se recostarem, abraçados, juntinhos os rostos, aquecendo-se. Se os verdes olhos de Maria davam-lhe ao rosto ar profundo, dramático, sedutor, os sorrisos - exibindo covinhas nas bochechas - lhe adocicavam o semblante. Maria lembrava-lhe - pela doçura e matutice das palavras, gestos e sorrisos - uma flor silvestre, dessas que vicejam ao sol e à chuva, dotadas de singela, mas resistente beleza, que as tornam aptas a competir com rosas aristocráticas, encasteladas em vasos de cristal. Feliz, ele contemplava os contornos suaves dos morros, as imagens eretas da caatinga bravia, os galhos do juazeiro prateados pelo luar, a natureza em festa como se lhes comemorasse as núpcias.

    Mesmo sem vocação para o canto - e sem saber por quê - ele se pôs a entoar baixinho músicas que lhe afloravam à memória, começando por Luar do Sertão. A última principiava assim: Lua bonita, se tu não fosses casada / Eu preparava uma escada / Pra no céu te beijar, te beijar... Embora dessa modinha soubesse mais alguns versos, desentoou de propósito, parou de cantá-la, voltando à primeira, pois uma sombra de tristeza, de repente surgida nos olhos de Maria, se espalhou por todo semblante, qual nuvem de chuva encobrindo a lua.

    Mergulharam num silêncio profundo, como se cada um quisesse apenas escutar o coração do outro...

    Olhando despretensioso para as bandas do lajedo - ponto habitual de encontro com Gato - Artur teve a impressão de

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