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A Loira do Cemitério
A Loira do Cemitério
A Loira do Cemitério
E-book241 páginas3 horas

A Loira do Cemitério

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Sobre este e-book

Um mito que sobrevive há gerações, A loira do cemitério é uma lenda popular que ronda o interior do Maranhão. Trata-se de uma bela mulher que costuma dar seus passeios nas proximidades do cemitério, onde fica a pedir carona a algum motorista desavisado.Quem foi esta mulher macabra? Se ela realmente existiu algum dia, vamos descobrir, lendo a biografia desta enigmática criatura, minimamente construída pelo autor que, mais do que criar uma história para um fantasma, montou um cenário à sua volta, descrevendo tudo sobre a região em que os canaviais figuram como pano de fundo.Um romance envolto numa prazerosa sombra de medo onde se destaca um bom enredo, apresentado por meio de uma excelente narrativa.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento4 de jul. de 2019
ISBN9788578015138
A Loira do Cemitério
Autor

José Maria Soares Viana

É maranhense, 75 anos , poeta, músico e compositor. Publicou pela Quártica três livros: HISTÓRIA E ESTÓRIAS DE SERENATAS (2008, sua biografia através da sua memória musical), CHICO PEDREIRA - O AGENTE ESPECIAL (2009, sua segunda ficção) e O VALE O OURO BRANCO(2010, seu primeiro livro escrito ).A LOIRA DO CEMITÉRIO é sua quarta publicação pela editora.O escritor possui ainda um livro não publicado: A ILHA DAS PIRANHAS.

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    A Loira do Cemitério - José Maria Soares Viana

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    Copyright desta edição © 2011 by José Maria Soares Viana

    Direitos em Língua Portuguesa reservados a Quártica ® Editora. 

    ISBN - 978-85-7801-513-8 (2019) 

    ISBN - 978-85-7801-203-8 (versão impressa) 

    Conversão: Cevolela Editions 

    Image460

    QUÁRTICA ® EDITORA 

    CNPJ 32.067.910/0001-88 - Insc. Estadual 83.581.948

    Av. Presidente Vargas, 962 sala 1411- Centro

    20071-002 - Rio de Janeiro - RJ

    Caixa Postal 150 - 20001-970 - Rio de Janeiro - RJ

    Telefax: 2223-0030/ 2263-3141

    site: www.litteris.com.br

    Sumário

    Capa

    Apresentação

    Prefácio

    Capítulo 1

    Capítulo 2

    Capítulo 3

    Capítulo 4

    Capítulo 5

    Capítulo 6

    Capítulo 7

    Capítulo 8

    Capítulo 9

    Capítulo 10

    Capítulo 11

    Capítulo 12

    Capítulo 13

    Capítulo 14

    Capítulo 15

    Sobre o Autor

    O terror dá asas aos pés.

    Virgílio

    Para minha esposa Marly,

    companheira, ouvinte, leitora.

    Para meus filhos e netos,

    (em especial José Viana Filho, pela sugestão do tema).

    Para todos os moradores da região do vale do Pindaré que foram vítimas da lenda da loira do cemitério.

    PREFÁCIO

    Uma lenda pode sobreviver no decorrer por várias gerações. Pode, inclusive, ser um marco para contar a história da formação de uma nação. Há diversos exemplos em nossa cultura e na de outros países. No folclore popular, adaptadas para o cinema e ou em clássicos da literatura, elas estão lá: lendas urbanas, rurais, infantis, mágicas, surrealistas, de terror...

    A loira do cemitério é mais uma lenda popular, criada no interior do Maranhão, mas precisamente em Santa Inês. A loira aparece sempre na estrada do cemitério da cidade, pede uma carona para quem passa em algum veículo motorizado, e, ao passar por ela, o condutor pode apostar que a loira está de carona. Uns dizem que ela era uma menina que foi atropelada na estrada, outros falam que ela morreu de alguma doença, outros que foi assassinada pelo pai.

    O que o autor fez neste livro foi dar uma biografia e tornar real a estória dessa lenda local. José Maria Viana coloca como pano de fundo, a história da criação do seu município (que nos remete aos canaviais da região do vale do Pindaré) e cria, dá vida a uma estória de terror. Ao mesmo tempo em que você pode se deliciar lendo um belo romance (com um pouco de drama, um pouco de terror e com um peculiar humor), você aprende um pouco sobre a região.

    Quem conhece a obra do autor, já poderia imaginar que sua terra natal, seria muito bem descrita em um próximo romance seu. O Livro é uma oportunidade para quem, filho da terra, quer ver em uma obra literária a história da sua cidade ser descrita. Podendo ainda, ver uma versão de uma lenda local ser lida em prosa pelo país a fora.

    Quem não conhece nenhum dos seus romances e tampouco sabe sobre essa lenda, tem uma bela oportunidade de ler uma estória concisa, de suspense e terror, bem como, também conhecer um pouco dessa região do Maranhão. O leitor poderá passar adiante uma lenda que não se sabe quem a criou, para quantos contou e nem quando vai acabar, como outras tantas pelo mundo.

    Vanessa Mendes

    Professora de Inglês e Literatura

    Rio de Janeiro, 2011.

    1

    A menina agonizava sobre a rústica esteira, usual artesanato confeccionado com palhas extraídas dos olhos de tenras palmeiras do coco babaçu — planta abundantemente encontrada no Vale do Médio Pindaré, pois que cobrem, em quase cem por cento, as boas terras maranhenses. Ela, uma adolescente de apenas quinze anos (embora parecesse contar mais que isso), ardia em febre, mortal afecção maligna oriunda de malária, o mal terrível que, por crônica infelicidade, ao longo dos anos tornava palustre a fértil região.

    Todos a tratavam pelo carinhoso diminutivo Mina, porquanto, na pia batismal ela recebera, originalmente, o nome de Osmina. Inacreditável, porém, é o fato de que, até poucos dias antes, Mina tinha sido uma bela, saudável e espevitada jovem que não somente auxiliava sua mãe nos afazeres domésticos, como ainda lavava roupas e tomava banho no igarapé próximo dali. Mas, agora (ó quadro triste e cruel!), a pobre jovem criatura, trêmula e desassossegada, jazia sobre a grosseira e miserável enxerga, com alguns poucos panos a cobrir-lhe os encantos, esvaindo-se em frio, intermitente e mortal suor que lhe empapava os longos cabelos louros. Ali, numa indescritível e impiedosa agitação, mas certamente agarrada por puro instinto a um tênue e sutil lume de existência, Mina rolava sobre si mesma, enquanto também expelia pelos cantos da boca uma estranha matéria espumosa, alvacenta e viscosa.

    O quadro era terrificante, gravíssimo, dir-se-ia irreversível. Sua família era toda aflição. Os pais e os cinco irmãos rodeavam-na, clamorosos, sem nenhum recurso a que se aterem. Portanto, a desventurada adolescente Osmina, tudo fazia crer, dentro de pouco sucumbiria à mingua, à mercê de um imerecido infortúnio, da perseverante inexistência de adequados recursos... Soçobraria — da mesma forma que tantas outras criaturas humanas — vítima do funesto impaludismo, doença fatal que grassava o então quase inteiramente despovoado Vale do Médio Pindaré.

    Similarmente a algumas (ou muitas) outras que em busca de trabalho chegavam ao local numa crescente frequência, a necessitada família de Osmina também viera de diferente Região do País... (Porém, no caso em particular, uma vez observadas as características pessoais daquela gente, o curioso observador provavelmente seria forçado a admitir que a família de Mina procedera do estado cearense, das terras de Iracema, climaticamente incomparáveis à quente e úmida região pré-amazônica.) Aqui, na realidade, o lugar possuía seu doce chamariz compreendido no imenso canavial — extensa propriedade de uma sólida companhia açucareira.

    Não muito distante, no povoado onde se localizava a sede industrial — com a moderníssima usina — da companhia, contava-se com um pequeno e precário atendimento aos doentes (às expensas da empresa), constante de um enfermeiro prático e mais alguns atavios apropriados aos primeiros socorros. Seria lá o horizonte da saúde de Osmina? A salvação de sua vida? Era uma saída, uma velada esperança, sim. Mas como transportá-la ao local? Em costas de animal seria totalmente impossível, pois a doente não resistiria. Na rede! Sim, na rede, seria possível... Eles eram cinco irmãos. Mas, incluindo o próprio pai, seriam seis. Logo, sem mais alternativa, era a única saída. E, quem sabe, Mina poderia ser salva!...

    Nesse afã, cada membro da aflita família procurou cumprir sua parte na urgente tarefa. João, o filho mais velho, volteou o corpo e foi ao encontro do monte de madeiras roliças que seriam utilizadas na construção da futura casa da família. Ali ele escolheria um caibro forte que serviria de suporte para a rede. Os demais irmãos — Efigênio, Tarquínio, Anísio e Viriato —, com o auxílio dos próprios genitores, Joaquim e Januária — respectivamente, seu Quincas e dona Janu, para os conhecidos —, cuidariam dos outros encargos inerentes ao penoso e iminente mister.

    Concentrados no que tentavam realizar com a máxima rapidez possível, eles não ouviram o apito (penoso e ainda longínquo) da locomotiva — nova, lustrosa e moderna maria-fumaça — que vagarosamente arrastava seus muitos vagões pejados de cana de açúcar, valioso produto ali cultivado com exclusividade pela companhia. O som rouco do apito da locomotiva novamente fez-se ouvir, agora sim apercebido por todos os membros da família de Mina.

    — O trem!... — alvoroçado, gritou Viriato, o irmão mais novo. — Ele pode!...

    — É mesmo, ele pode levar!... — sequenciou Anísio, o quarto dos filhos de dona Janu com seu Quincas.

    — Vamos pedir para ele levar a nossa irmãzinha doente!... — concluiu Tarquínio, o terceiro do clã.

    — Ele não leva... Não vai levar! Não adianta insistir. É ordem do capataz da companhia. Aquele homem... — falava Efigênio, o segundo rebento de seu Quincas com a esposa.

    — É ruim que nem bosta de porco... Feito a peste!... Ele não vai levar, não! — confirmou João, o mais velho dos cinco. — Por isso, vamos...

    — Não custa nada a gente tentar!... — suplicou Viriato.

    Os dois irmãos mais velhos aquiesceram; e todos juntos cuidaram da remoção de Osmina, improvisando uma frágil padiola da própria esteira. À vista daquele quadro tão triste e incomum que no decorrente instante vivia aquela pobre moribunda, talvez o maquinista, levado por uma íntima compaixão repentina, chegasse a acionar os freios da locomotiva, parando-a. Os pais também iriam: seu Quincas faria os sinais pedindo parada; dona Janu, sendo mãe, ao lado da irrequieta Mina procuraria (ainda que fosse em vão) acalmar a filha.

    Os estertores convulsivos da moribunda tornavam-se mais frequentes e mais intensos! Osmina parecia estar próxima do próprio fim. Aos prantos, sua família achava isso. A mãe, em compreensível desespero, procurava enxugar o suor que, a olhos vistos, de forma intermitente, jorrava da fronte da infortunada criatura. Estavam, pois, já à margem da ferrovia. Mina continuava suspensa. Os irmãos não a tinham baixado ao chão à beira da estrada, na esperança de que assim fosse mais fácil da doente ser avistada pelo condutor da máquina. Como que numa fugaz — porém esperançosa — tentativa de auxiliar o ferroviário, eles elevariam a improvisada padiola um pouco mais...

    A locomotiva se aproximava soltando golfadas de fumaça negra, enquanto seu Joaquim, tendo nas mãos a própria enxovalhada camisa que antes tirara, freneticamente acenava pedindo parada. Os irmãos de Osmina suspenderam a rústica padiola, elevando-a o suficiente para que a agonizante adolescente fosse avistada... O trem bufou, resfolegou... Expelindo uma fumaça ainda mais negra que antes, tempo em que também emitia estridentes rangidos de ferros em atritos e, num meio-forte sacolejo, indicava que sofrera um acionamento de freios.

    A locomotiva, era certo, iria parar. Ao presenciarem o tão almejado fato, os familiares de Osmina reavivaram as esperanças. A máquina — que, por andar lentamente, era empurrada com violência pela longa fileira de não-sei-quantos vagões repletos de cana de açúcar — emitiu mais rangidos, agora acompanhados de uma chuva de fagulhas e, consequentemente, muito mais sacolejos.

    — Ele vai parar! — animado, quase alegre, gritou Viriato, o mais novo.

    — Que Deus nos ajude! — Uníssonos, segundaram os quatro, que ora sustentavam a esteira transformada em rústica padiola.

    Enquanto isso, a mãe, dona Janu, suspendia os olhos para o céu num contrito e mudo agradecimento a Deus. De sua vez — também de forma simultânea —, seu Quincas ia lentamente cessando os movimentos com a camisa, já quase certo de que o trem pararia.

    Era a salvação de Osmina! Naquele momento, todos da família acreditavam nisso. Algo que parecia ser um milagre estaria acontecendo ali, naquele exato instante! Os familiares de Mina também criam nesse admirável fato. Claro! Visto que, por expressa determinação do capataz — um indivíduo ruim e malvado, um verdadeiro tirano, segundo era notoriamente sabido à volta de muitas léguas —, aquela locomotiva até então jamais parara, sob nenhum pretexto, para quem quer que fosse.

    Aquilo e muito mais seria, de algum modo, explicável?... Sim! É que, numa pouco ou nada compreensível omissão, os administradores — que, lá do povoado da sede, gerenciavam a totalidade dos negócios da companhia — davam carta branca àquele homem, poderes dos quais o malvado tirava proveito para administrar tudo à sua estranha vontade, ao seu distinto modo de ver e fazer as coisas.

    Logo, como o brilho do poder chamusca as pupilas dos mais prepotentes, o capataz chegava ao ponto de, propositadamente, confundir responsabilidade assumida com propriedade adquirida. Em outras palavras, aquele espécime humano de tão ínfimas ideias tinha como seus todos os bens contidos na verde vastidão daquela herdade!

    A companhia... Ah, a companhia!... Bom... Essa — é compreensível, até certo ponto — tinha lá seus princípios e seus precípuos interesses, ali materializados em incontáveis verdes hectares — milhares deles — do imenso canavial! Por conseguinte, ao capataz — que prestava uma péssima assistência por aquelas bandas — pouco ou nada importava a saúde e a doença daqueles que, igualmente à família de Osmina, iam chegando ao lugar... Porquanto essas pessoas não tinham nenhum vínculo que as ligasse à empresa da qual ele, por pura ignorância e um crescente quinhão de prepotência, julgava ser o seu legítimo proprietário.

    Desse errôneo e inadmissível modo, não era de admirar quando, sem cerimônia, Eutanásio Carrasco do Amor Divino (esquisito e contrastante nome!), cinicamente, tratava por meu, minha, meus, minhas, quando não — mais raramente — por nosso, nossa, nossos, nossas todos os produtos, coisas e mais o que fosse ou que procedesse do extenso quinhão do patrimônio da companhia, compreendido naquela vasta área de verde e frondoso canavial por ele administrado.

    Tanto era que os componentes da pequena comunidade escrava local, contida na também não muito grande senzala, há muito cultivavam o costume de, em todos os momentos, chamarem o capataz de O senhor seu Carrasco. Nessas oportunidades, o maldoso e prepotente administrador, inflado de pretensão e convencimento, exultava de prazer.

    Os maus hábitos de Carrasco tomavam dimensões extremas quando o tal indivíduo, num desenfreado sadismo, projetava seus olhares libidinosos e carregados de desejo sobre as jovens da comunidade negra... Ainda por cima, uma confiança tão chocante quanta presunçosa e antipática não deixava que Carrasco ficasse, nem um pouco preocupado com o fato de que esse seu comportamento canalha há muito vinha reavivando a chama de um profundo e compulsivo ódio nos moços varões da senzala...

    Por todos esses motivos — que representavam apenas uma diminuta parcela da verdade a respeito do senhor seu Eutanásio, uma verdade que a pesarosa família de Mina conhecia apenas por ouvi dizer, já que há tão pouco tempo chegara ao lugar —, ninguém ali acreditava no que via. O trem estava parando!... E, inacreditavelmente, o fazia para levar uma pessoa doente!... Então, seria tudo mentira o que diziam daquele homem, do capataz, que eles não conheciam sequer de vista?!...

    Agora, todavia, a máquina resfolegou muito mais forte que antes; o rolo de fumaça negra quadruplicou-se em consistência e volume, escurecendo as mais próximas verdes folhas do canavial; os não identificáveis rangidos agudos também aumentaram em demasia, tornando-se mais ensurdecedores; o atrito das rodas travadas sobre os trilhos também gerou nervosas labaredas instantâneas, nada comparáveis com as pequenas fagulhas de segundos atrás e, sofrendo um sacolejo menor que os anteriores, logo o trem emitiu alguns últimos ratifo... Ratifo... Ratifo... Prenunciando que de imediato pararia totalmente.

    — No stop!... No stop!... No stop!... (Não parar!... Não parar!... Não parar!...) Ô diabos!... To follow!... To follow!... To follow!... (Seguir!... Seguir!... Seguir!...) Seu maldito!... Don’t go!... Don’t go!... Don’t go!... (Não para!... Não para!... Não para!...) Gringo infeliz! — dirigindo-se ao maquinista em altos brados, com todas as forças que possuía — e ele as possuía com abastança —, surgiu Carrasco, articulando as únicas palavras que estropiada e precariamente pronunciava do idioma inglês, decoradas a muque (sabia-se à larga) especialmente para os momentos iguais ao de então. Além das feições transtornadas (não obstante, vermelhas acobreadas), ele, inclusive, segurava na mão direita uma arma de potente calibre, enquanto que na esquerda brandia um terçado facão rabo de galo.

    — Não para! Não para!... Siga!... Siga em frente!... Seu gringo amaldiçoado! — repetia o capataz, agora em legítimo português, certamente para que também fosse entendido pelos surpreendidos e mais que espantados familiares da enferma Osmina.

    Pela precisão com que irrompera na via férrea, Eutanásio dava mesmo a entender que, de maneira paralela, por entre as leiras do canavial, vinha acompanhando o trem em sua marcha lenta e lerda. Era como se, secretamente, Carrasco viesse escoltando a locomotiva. (Era, na verdade, notório o fato de que essa forma de trabalho do capataz seria exatamente o que o credenciava — com um imenso prestígio — junto aos superiores da administração geral da companhia, sobretudo.) As armas, o rifle e o terçado, ajudavam-no como removedores de empecilhos, tinha-se como certo.

    Com uma altura acima de média, louro, mortiços olhos azuis, testa ampla e um acelerado processo de calvície, Sir Smith, o maquinista, era um típico e autêntico bretão. Ele fora contratado desde quando a companhia principiara a sua mobilização patrimonial. Vieram as instalações da maquinaria industrial, a construção da estrada de ferro, a montagem da locomotiva e dos respectivos vagões sobre os trilhos... Sir Smith, na verdade, viera com o progresso e, como parte deste, ali ficara empenhando sua técnica, sua competência, até o pleno funcionamento de tudo aquilo. Na sede da companhia, Sir Smith ainda contava com uma grande e moderna oficina de manutenção, a que seu filho — um deficiente visual — vigiava diuturnamente, por mais incrível que isso possa parecer. Desse modo pouco — ou nada — comum, o inglês não carecia de mais ninguém para auxiliá-lo em suas funções. Estranha mesmo era a teimosia daquele competente gringo — impertinente súdito da Rainha — em não querer falar o português, nosso idioma.

    A inexplicável ojeriza do maquinista em não falar a nossa língua trazia raiva ao nada cordato capataz e, de certo, fora mais um motivo que levara Carrasco a decorar — a martelo — algumas palavras da língua de Sir Smith — stop e follow (don’t go), parar e seguir, mais precisamente —, necessárias ou mesmo indispensáveis aos esporádicos contatos diários entre ele e o maquinista.

    Naquele instante, ele olhou fixamente para cada um dos familiares da moribunda e sentenciou colérico:

    — Meu trem não vai levar nenhum doente, não, diabos! — E demorando as vistas sobre a convulsiva pessoa de Osmina, Carrasco determinou ainda com mais ódio na voz: — Nem que o Satanás me mande e Deus me peça!... Ouviram bem?

    Era óbvio que todos os familiares da enferma Osmina tinham ouvido tudo o que Carrasco, o mau capataz, acabava de dizer. Como não ouvir, se aquele pedaço de maldade falava aos gritos? Como não, se, após tudo aquilo, eles continuavam paralisados pela surpresa? Não, não havia como a família de Mina não ter ouvido as afiadas palavras do desumano capataz, pois, se todos eles ainda continuavam sentindo na carne os dolorosos efeitos daquilo! Uma coisa, porém, tinha ficado bem clara: em consequência de tamanha decepção, agora suas boas opiniões a respeito daquele homem brutal estavam sendo violentamente refeitas e, sem dúvida, àquelas alturas elas já se diluíam como gelo em água quente.

    Bom... As palavras de

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