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AS GUERRAS DE JUQUINHA: e outras guerras
AS GUERRAS DE JUQUINHA: e outras guerras
AS GUERRAS DE JUQUINHA: e outras guerras
E-book617 páginas9 horas

AS GUERRAS DE JUQUINHA: e outras guerras

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Sobre este e-book

"... história conflituosa, cujos personagens protagonizam cenas de ação, que misturam drama e humor, com imaginação, sarcasmo e mordacidade, agregando elementos que vão do policial ao lírico, do rural ao urbano, do amoroso ao escrachado, com muita naturalidade literária.
O autor lança mão de uma linguagem elíptica, original, com falas típicas do interior, entrecortadas, bem ao estilo caboclo de ser no interior do Brasil. A história, que poderia ter um desfecho traumático, é repleta de peripécias fanfarrônicas, e tem um final feliz. Porque o bem, ao fim e ao cabo, vence o mal.
"As Guerras de Juquinha e Outras Guerras" é um clássico (regionalista?) que deixa para a posteridade exemplos de vida a serem seguidos, porque resgata valores e desconstrói alguns estereótipos da sordidez humana. Parabéns pelo presente, Manuel".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento3 de nov. de 2019
ISBN9788540027268
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    AS GUERRAS DE JUQUINHA - Manuel de Jesus Lima (Mané Poeta)

    Manuel de Jesus Lima (Mané Poeta)

    I

    O estilingue contra

    a metralhadora

    II

    Histórias (cabeludas) do reino de

    Horrorizilha da Fantasia

    Goiânia-GO

    Kelps, 2019

    Copyright © 2019 by Manuel de Jesus Lima (Mané Poeta)

    Editora Kelps

    Rua 19 nº 100 – St. Marechal Rondon

    CEP 74.560-460 – Goiânia-GO

    Fone: (62) 3211-1616

    E-mail: kelps@kelps.com.br

    homepage: www.kelps.com.br

    Revisão final

    Professora Doutora Lizandra Caires do Prado

    Diagramação

    Victor Marques

    victorhumberto.marques@gmail.com

    Ilustração da capa

    Júlio Quinan

    julio@agenciainspira.com.br

    CIP – Brasil – Catalogação na Fonte

    Dartony Diocen T. Santos CRB-1 (1º Região)3294

    Registrado perante o Escritório de Direitos Autorais da Fundação BIBLIOTECA NACIONAL do Ministério da Cultura, em 12/06/2008, sob o nº. 433.244, Livro 811, Folha 404.

    DIREITOS RESERVADOS

    É proibida a reprodução total ou parcial da obra, de qualquer forma ou por qualquer meio, sem a autorização prévia e por escrito do autor. A violação dos Direitos Autorais (Lei nº 9.610/98) é crime estabelecido pelo artigo 184 do Código Penal.

    Impresso no Brasil

    Printed in Brazil

    2019

    ESTE LIVRO É UMA HOMENAGEM A

    JOSÉ SERAFIM DE LIMA (ZÉ BRANCO).

    GARIMPEIRO, PEDREIRO, CARAPINA, PESCADOR

    E AGRICULTOR SEM-TERRA E SEM-VINTÉM,

    ELE PASSOU A VIDA TRABALHANDO.

    A POBREZA E O EXTREMADO AMOR À PROLE

    MANDARAM-NO PARA LONGE DO TORRÃO QUERIDO,

    DANDO-LHE COMO ÚLTIMO REPOUSO

    UM LUGAR ESTRANHO.

    MAS ELE CARREGOU MINAS NO CORAÇÃO

    POR ESTE MUNDO AFORA

    E A AMOU COMO POUCOS,

    ATÉ O DERRADEIRO SUSPIRO.

    ÓRFÃO DO BERÇO E DA VIDA,

    ELE NÃO TEVE TEMPO DE SER CRIANÇA,

    NUNCA ME CONTOU UMA PIADA

    E JAMAIS ME DEU UM BRINQUEDINHO

    (ENSINOU-ME A FAZÊ-LOS),

    MAS DEIXOU-ME UM GRANDE E ETERNO LEGADO:

    O AMOR POR MINAS GERAIS.

    OBRIGADO, MEU PAI.

    Ao Pai-Criador, que nos ama e nos perdoa.

    A JOHN HUGHES e GERALDINHO NOGUEIRA, ambos já falecidos. O primeiro é o autor da famosa série de filmes ESQUECERAM DE MIM, de cuja temática me vali, e o segundo, a meu ver, o maior cômico caipira brasileiro (que ainda faz muitos rirem, de queixos caídos, com um humor da mais fina qualidade, inobstante as vicissitudes do cotidiano, ou mesmo, em razão delas), influenciou-me em algumas passagens da saga do curumim guerreiro. Não fossem eles, este romance jamais seria parido, permanecendo nas minhas entranhas, em gestação eterna, como, na verdade, sempre esteve, tal um ovo gorado ou um carnegão que nunca vem a furo.

    À minha mãe, GERALDA FRANCISCA DE SOUSA, hoje ‘lá no Alto’, como ela dizia dos que DEUS chama para junto d’Ele. Dona de muita verve e uma memória prodigiosa, foi ela quem me iniciou na arte da astuciação de causos. E à irmã mais velha, CELENITA (Fiinha), a minha primeira Mestra, que me ensinou a garatujá-los no papel.

    Aos meninos e às meninas do meu tempo, um tempo sem televisão, jogos eletrônicos, computador, Internet, Estatuto das Crianças, rock, drogas etc., e aos pequenos de agora, que têm tantas coisas e não têm quase nada.

    Ao moleque que ainda há dentro de mim, e aos manos e manas, mineiros e goianos (quatro ‘já se foram’), que nunca desacreditaram do dom que recebi de DEUS. Muito me vali das lembranças das nossas traquinagens, nós que tínhamos tão pouco, mas tínhamos o mundo inteiro.

    Aos meus amados filhos, BRUNO EUSTÁQUIO, IURI DANIEL, IGOR MANUEL e ERICH ADAM; às filhas diletas do meu coração, ADRIANA, RAQUEL e MICHELE. E aos cidadãos e cidadãs brasilienses e brasileiros que, assim como eles e elas, não barganham os seus votos – nem as suas consciências –, por nenhuma porcaria, graúda, média ou miúda.

    À doce e encantadora JÚLIA MARIA, a primeira netinha. Grande campeã enxadrista, hoje com dez anos, ela trouxe a graciosidade e o charme feminino para uma família cheia de machos. E ao primeiro netinho, GABRIEL, o Assoviador. Aos seis meses, ele começou a fazer biquinhos sonoros e, ao mesmo tempo, relevou-se um futuro cracaço de bola (quem viver, verá), ‘descoberto’ ao dar um ‘elástico’ no olheiro vovô-coruja. Verdade!

    À TERESINHA, minha querida esposa, há mais de quarenta anos ao meu lado, emprestando-me ânimo e fé, para superar os tantos reveses.

    Ao amigo JOÃO ELIAS ANTUNES DE OLIVEIRA, incentivador e confrade de maior brilho.

    Aos colegas e amigos do Tribunal de Justiça do Distrito Federal.

    Ao meu saudoso padrinho José Ribeiro Santana, JUCA PATUREBA, com quem aprendi a gostar de catiras e de folias, e a todos os catireiros e foliões de Reis do Brasil.

    Ao povo do Sertão brasileiro, tão forte na sua aparente fraqueza...

    Assim como as madeiras nobres, as pessoas de bem encontram-se em acelerada extinção no nosso país. Mas...

    POR DEUS E TODA ESSA GENTE, AINDA BOTO FÉ NO BRASIL!

    Meu caro Manuel de Jesus Lima, muito obrigado por A Guerra de Juquinha e Outras Guerras, que você gentilmente me enviou e que comecei a ler com a maior admiração. Você combina a literatura telúrica de um Guimarães Rosa com um comovente humor e uma notável empatia pelo personagem.

    Seu livro, não tenho dúvida, filia-se ao melhor da literatura brasileira.

    Receba os parabéns e o abraço do

    Moacyr Scliar

    "Manuel de Jesus Lima construiu um romance dos mais interessantes neste As Guerras de Juquinha e Outras Guerras. Lembra muito Diderot, quando realizou uma paródia de Dom Quixote, tornando-se precursor do pós-modernismo (quase duzentos anos antes desse). Manuel, porém, parodiando um filme, indicado nos detalhes, não permanece somente nesse ponto, aprofunda o trabalho com a linguagem, utilizando vários níveis: o erudito, o regional, o policial, o jurídico, o marginal... Desse modo, trava um embate com a palavra, tornando-a tão viva como se essa fosse mais uma de suas brilhantes personagens. Apresenta uma metáfora do pequeno lutando contra o forte, encerrando uma lição de vida. Além disso, este livro presta-se inteiramente à arte cinematográfica, tanto pelo diálogo bem elaborado, quanto pelas cenas de efeito e as personagens marcantes. Carrega uma mensagem poderosa, onde a alegria, o bom-humor, a simplicidade, a inocência, a arte, a natureza são as verdadeiras raízes da felicidade, que devem ser cultivadas no dia a dia de cada um.

    Romance denso, que reagrupa valores esquecidos ou perdidos, atualizando-os, exsurge dos problemas porque passa o homem hodierno, e é tão atual como uma crônica jornalística e tão perene quanto um épico.

    Sem sombra de dúvida, este romance constitui-se em um marco na literatura nacional".

    Elias Antunes

    Brasília – DF

    "... história conflituosa, cujos personagens protagonizam cenas de ação, que misturam drama e humor, com imaginação, sarcasmo e mordacidade, agregando elementos que vão do policial ao lírico, do rural ao urbano, do amoroso ao escrachado, com muita naturalidade literária.

    O autor lança mão de uma linguagem elíptica, original, com falas típicas do interior, entrecortadas, bem ao estilo caboclo de ser no interior do Brasil. A história, que poderia ter um desfecho traumático, é repleta de peripécias fanfarrônicas, e tem um final feliz. Porque o bem, ao fim e ao cabo, vence o mal.

    As Guerras de Juquinha e Outras Guerras é um clássico (regionalista?) que deixa para a posteridade exemplos de vida a serem seguidos, porque resgata valores e desconstrói alguns estereótipos da sordidez humana. Parabéns pelo presente, Manuel".

    Silvério da Costa

    Chapecó - SC

    Mosaico de Tipos e

    Acontecimentos do Brasil

    Literatura não é simplesmente linguagem; é também vontade de figuração, o motivo para metáfora que Nietzsche certa vez definiu como o desejo de ser diferente, o desejo de estar em outro lugar.

    Harold Bloom

    Prezado Manuel,

    Terminando de ler, neste fim de semana, As Guerras de Juquinha e Outras Guerras, não poderia deixar de expressar meu prazer diante de uma leitura tão agradável, que merecidamente arrebatou o prêmio da Fundação Cultural Pedro Ludovico Teixeira.

    O prazer estético de As Guerras de Juquinha e Outras Guerras não se esgota na leitura, porque sendo um livro de fôlego, bem costurado estilisticamente, remete-nos a novas leituras e, nesses novos mergulhos, vamos descobrindo que o autor realizou uma metáfora da própria vida, ao fundir em sua narrativa elementos da vida urbana e rural, provando seu ecletismo no uso da linguagem.

    Com foco em diversas situações e ambientes, aqui vemos o autor fundindo realidades aparentemente incompatíveis, mas que guardam sintonia, diria verdadeira simbiose. Este trabalho procura refletir sobre o homem em sua condição primária, que, buscando superar as suas fronteiras psicológicas, humanas e espirituais, deblatera-se com seus valores, com seus antagonismos, com suas lutas interiores e externas. É o ser em plena beligerância diante das contradições do mundo, com seus relacionamentos tempestuosos e suas contingências, que tanto nos desmoronam.

    Vejo-o trilhando os bons caminhos de uma literatura que capta o sentido provincial de que nos falou Tolstoi, de se valorizar a aldeia para se atingir o universal. Na linha do que você competentemente escreveu, posso situar este trabalho no nível de um Carmo Bernardes, de um Bernardo Elis, que tanto exploraram esse imaginário rural e urbano e deram, como você, uma plasticidade cinematográfica ao texto, como bem detectou Elias Antunes.

    As Guerras de Juquinha e Outras Guerras é um mosaico de tipos e acontecimentos de nosso Brasil, literariamente bem explorados por você, que não se descuida da dicção, transitando com versatilidade entre o erudito e o coloquial. Livro do melhor quilate.

    Ronaldo Cagiano

    Cataguases - MG

    Conversa pra Boi Dormir

    e Outras Abobrinhas

    Como venho fazendo, não é de agora, mal raiou 2011, no comecinho de janeiro, chispei para Paineiras, Minas Gerais, onde o meu pai nasceu... Fui rever os parentes e amigos e curtir a tradicional Folia de Reis, nas belíssimas vozes e representações das crianças do Coralzinho São Rafael. Mas tive de satisfazer-me com a primeira parte do programa, pois uma tromba d’água desabou sobre a região, encharcou estradas, derrubou pontes e impediu a saída dos ternos de Reis locais e os das comunidades vizinhas. Fazer o quê?

    Nada, senão estacionar naquela praça e ficar assistindo, um eito de tempo, o chicoteio do vento e da chuva contra o para-brisa do veículo, enquanto recordava a primeira vez que levei o meu pai à sua aprazível cidadezinha. Já idoso, ele se surpreendeu ao dar de cara com o prédio da prefeitura, no lugar em que deveria estar a última morada de sua mãe e de outros parentes, o cemitério. Tantos anos passados, eu me achava no mesmo local, a indagar dos meus botões – que nem eram botões, mas zíperes – onde foram parar os restos mortais daqueles entes queridos, enquanto empenhava-me em detectar remotos traços fisionômicos dos Lima (vovô Josino, que era negro) e dos De Paula (vovó Ana Severina, loira, olhos azuis), nas figuras dos raros passantes.

    No afã de acelerar as horas, que se arrastavam, molengas, passei a rabiscar estas palavras. Dias depois, em casa, eu desandaria a acrescentar, cortar, desentortar, esculpir, burilar..., afrouxa de cá, arrocha de lá, no eterno fazer/refazer de carpinteiro, oleiro, ferreiro e ourives, muito semelhante ao ofício dos escribas. Ao final, resultou este arremedo de prefácio, que relutei em conceber, destinado à terceira edição – e, presentemente, à quarta, após a última super-remexida – de As Guerras de Juquinha e Outras Guerras. Tivesse algo a dizer, eu acreditava, o livro o faria por si e por mim... Lá estava, então, perto de onde fora sepultada a avó que não conheci pessoalmente – só através de uma espécie de retrato falado, feito pelo meu pai, pois ela não deixou, sequer, uma fotografia –, cujos despojos teriam sido trasladados para o cemitério novo, mas ali, também, não os localizamos.

    Voltemos no tempo. Aos vinte e três anos, incomodado por coabitar com o padrasto, o meu pai deixou Paineiras (ele que, aos nove, perdera o seu para a terrível Gripe Espanhola, que mataria milhões de brasileiros) e seguiu pra São Gonçalo, atrás de diamantes nas barrancas do Abaeté. Durante dezessete anos, ‘garimparia’ somente xibiozinhos mixurucas – fazendo a alegria dos capangueiros – e a cafuza que seria a minha mãe. O casal gerou onze filhos, sete em Minas e quatro em Goiás, motivo de rusgas intermináveis entre os irmãos: mineiros versus goianos. Todos queriam ser mineiros, uai. A ‘nossa’ conquista do Oeste, verdadeira odisseia, iniciou num caminhão pau-de-arara e findou num carro de boi, dois meses depois – uma viagem, hoje, feita em poucas horas. Era o ano de 1952 e a minha mãe deixou as Gerais ‘interessante’ (grávida). Em princípios de agosto, já no novo destino, nasceu Maria das Graças. Goiana ou mineira? Após desenvolver melhor o dom da fala, ela batia os pés e jurava ser uma legítima filha da Terra de Tiradentes, argumentando, com razoável lógica: se uma gata dá à luz dentro do forno, ela não pare bolos (goianos, no caso), e, sim, gatinhos (mineiros).

    Como tantas famílias órfãs da fortuna, deixáramos Minas Gerais em busca de melhor sorte nos sertões goianos. Lá estabelecidos, à medida que mãe e filhos, alguns, em tenra idade, batalhávamos na roça, de sol a sol, principalmente, na lavoura cafeeira, o nosso patriarca construía casas e currais nas fazendas da região. Em meio à labuta, a primogênita, Celenita, que não passara do terceiro ano primário no interior mineiro, alfabetizava os mais novos, usando um caco de lousa, literatura de cordel e opúsculos de modinhas caipiras, adquiridos de um mascate de livros e um ror de bugigangas, graças aos recursos advindos do que apurávamos com a venda de mudas que produzíamos no quintal e a soca do café – os grãos varridos do chão, ao final de cada jornada diária –, que eram o nosso salário.

    Seis anos depois e um pouco mais pobres, vimo-nos na ex-Capital, a Cidade de Goiás, ou Goiás Velha, como até hoje é conhecida, carinhosamente. Mas ainda não seria daquela vez que experimentaríamos algum alívio na situação de extrema miserabilidade da família. Ao contrário, as privações aumentaram e a fome virou uma triste realidade no nosso cotidiano. Vinte e um anos após perder o status de principal metrópole do estado para Goiânia, a mais que bicentenária urbe vivia uma longa debacle, neologismo recém-incorporado ao nosso Idioma pela francófila elite local, no lugar de decadência, quem sabe, por doer menos. Só que filigranas linguísticas não enchem barrigas, nem cobrem a nudez dos desprovidos de tudo: o meu pai não encontrava serviço e, se achava, era mal remunerado. Não é fácil falar destas coisas nos bonançosos tempos atuais, esse assistencialismo desbragado, eu diria, impudico, que se propõe exterminar as carências dos desvalidos jogando-os no ócio deletério, embotando a sua vocação empreendedora e arrasando-lhes o restinho de brio e autoestima, transformados em moedas de troca no promíscuo ‘mercado eleitoral’ brasileiro. E tomem cotas, as ditas ‘ações afirmativas’ – ou seja, a velha e famigerada ‘mãozinha’ –, visando ‘facilitar-lhes’ o acesso às universidades e aos cargos públicos; e dá-lhes casas, lotes, bolsas, vales e cestas disso e daquilo, com direito a um troquinho perverso: obesidade, diabetes, colesterol e pressão arterial nas grimpas... E hospitais-sucatas entulhados de miseráveis. Ante tal descalabro, quando nem o santo desconfia de tanta esmola, um antigo ditado ficaria melhor assim: Me engana, que eu gosto. Quanto a mim, apesar dos pesares, a mudança seria crucial. Mesmo taludo (treze anos), pude frequentar uma escola de verdade, não ligava que a merenda do recreio fosse só um caneco de leite em pó fervido, quente e doce, não raro, queimado, que me desandava as tripas numa caganeira do cão, e nem me chateava com a falta de uniformes e materiais escolares essenciais. Acostumado a viver com quase nada, aprendi a contornar o problema: colegas menos carentes doavam cadernos usados, com algumas folhas em branco, outros emprestavam livros (não havia biblioteca na escola) e, com cotozinhos de lápis que sumiam entre os meus dedos, ia copiando os trechos recomendados nas aulas. Já andar descalço enchia-me o saco! Um tanto por vergonha – eu era um rapazinho – e outro tanto por doerem-me os pés, feridos no cascalho pontiagudo e nas pedras irregulares e candentes das ruas e becos da vetusta cidade. Pior, empenhado em economizar os sapatos (quando os tinha) e fazê-los durarem o dobro do tempo, bolei um estratagema: usava um de cada vez, a manquitolar, pois as ‘havaianas’, hoje em voga, tardariam a chegar por lá e eu raramente dispunha de uma mísera precata, de couro ou pneu velho, com que pudesse, ao menos, forrar a planta do pé descalço. Muitas meias-solas depois, descartado o primeiro sapato – àquela altura, um caco –, o outro entrava em ação; para despistar, usava uma tintura ou um emplastro no pé desprotegido, fingindo que o machucara e, por isso, não podia calçá-lo. Ironia do destino: não sei se por compulsão, ou inconsciente desejo de vingar as humilhações sofridas pelo pai, um dos meus filhos chegou a colecionar uma centena de pares de calçados, das marcas mais badaladas.

    Embora sofressem iguais dissabores, colegas e parentes, até irmãos e primos, não perdiam o ensejo e me aporrinhavam, tirando sarro, pegando no pé, botando ‘rabos de foguete’, apelidos aviltantes e outras expressões e ‘brincadeiras’, que definiam, antigamente, a ignomínia hoje chamada de bullying. Mesmo eu, com a decantada pureza de ‘santinho do pau oco’ (fui vítima e vilão, santo, nunca), ria daquelas situações surrealistas. Ou fazia de conta, pra mixar o ‘barato’ dos gozadores? Talvez... Como buli no assunto, digo que se me rejeitaram em razão da condição social – o que pouco me incomodava, afinal, eram pobres quase todas as pessoas do meu convívio –, igualmente, o fizeram devido à cor da minha pele e ao nome, que odiei, por dizerem ser nome de bobos. Descoberta a condição de xará de gente famosa, nos esportes (grande Garrincha), na política, na literatura e nas artes, e que até Ele é Mané (Emanuel, Deus conosco), vangloriei-me por ser mais um. Quanto às alcunhas, inclusive, as que denegriam e difamavam, relevei-as, ignorei-as, ou, como se dizia, levei ‘na esportiva’. Muitas vezes, ‘com a avó atrás do toco’, rebatia no mesmo tom, sem apelar, pois, tanto mais se chia, mais o trem pega. Pelo menos, havia um consolo, no interior, praticamente todos tinham (ainda têm) um ou mais apelidos, via de regra, pejorativos, quando não, ultrajantes. Trata-se de questão sociocultural, faz parte da nossa índole gaiata (nem sempre cordial) e nada mudará isso: leis, governos, partidos, religiões, escolas, mídias, MP, PM, cadeia, caça às bruxas, puxões de orelhas, porradas, pau de arara, beliscões no traseiro, choques elétricos nas ‘partes’, Sua Excelência o juiz antipetista de Curitiba, ora ministro, Sua Santidade o Papa Chico... Nada e ninguém. Nem Deus, que está acima de tudo e de todos e nos fez tais como somos, bonachões e um tanto levianos. O que não chega a ser um infortúnio ou motivo de lamentações, achando não nos restar um fiapo de esperança. Explico: apesar de os políticos pouco ou nada fazerem, senão, roubar, trapacear, mentir, e, ainda assim, votamos neles, cientes da decepção futura; apesar das nossas mazelas, das injustiças e da violência, cada dia maiores, nunca deixaremos de ser um povo alegre, gozador e festeiro (não, necessariamente, feliz), capaz de rir dos próprios infortúnios ao cunhar uma frase que define esse estado de espírito, à perfeição: ‘A coisa tá preta...’ Neca! ‘A coisa tá branca...’ Nem pensar! Vejamos: ‘A coisa tá vermelha e preta...’ Rubro-negra? Credo, armados de paus, bandeiras e processos, um monte de ongs, a mídia e a urubuzada em peso cairão em cima de mim! Vamos lá: ‘A coisa tá cor-de-rosa...’ Complicou, de vez, eu ia caçar briga com meio mundo. Enfim, achei!: ‘A coisa tá ruim, mas nóis ri, assim mesmo’. Antes que venham mais besteiras, é melhor não esticar o assunto, relembrando que, se não guardei mágoas, nem me insurgi contra os apelidos (nem mesmo, entoei loas em homenagem às santas mãezinhas dos que os esgoelavam ao me verem passar, tampouco, os ataquei com palavrões, pedradas, ou expus as ‘vergonhas’ em público: ‘Aqui, ó, pra sua irmã boazuda!’), no que concerne à cor da pele, cabem ressalvas, sim. Com efeito, embora a minha fosse ruiva, tirante a sardenta (hoje, reconheço, um tanto quanto desbotada), sofri soez discriminação racial, principalmente, após despertar-me para o amor: da parte das claras (por apresentar-me sempre como afrodescendente e não negar a condição de neto de um negro e de uma cafuza, ou tapuia, como ela gostava) e, mais ainda, da parte das escurinhas, que me viam branco. O chato é que, chegado nelas, eu vivia quebrando a cara: ‘Sai fora, branquelo, vai caçar uma branquela! Ocê não se enxerga?’ Por onde andava, me achincalhavam, sem um pingo de dó no coração: ‘Galego’; ‘Bazé’; ‘Coró-de-pau-podre’; ‘Coalhada sem tempero’; ‘Calango albino’; e, de todos, o que mais doía: ‘Alemão batata, come queijo com barata!’. Alemão, eu? Esconjuro! A propósito, respondam a essa perguntinha, sem pé, nem cabeça, os que defendem a política de cotas, com unhas e dentes: quando vão criá-las pros brancos, nos corações das negras?

    Para se fazer uma ideia de quão precárias eram as condições em que sobrevivíamos, em todo o tempo que coabitei com meus pais, o nosso banheiro era o mato e não havia em casa energia elétrica, água encanada, fogão a gás... Na velha Capital, aliás, nem casa tínhamos, nós que chegáramos a possuir três choças (casebres) lá nos cafundós da roça. ‘De favor’ ou ‘de aluguel’, no curso de sete anos moramos em dez endereços (algumas vezes, despejados, por inadimplência). Apanhávamos a água nas fontes, corgos, chafarizes e cisternas, em baldes, latas e potes levados na cabeça ou nos ombros, forrados com rodilhas de pano de saco, ramos verdes em cima, senão, chacoalhava e nos dava um banho pelo caminho. A iluminação provinha de lamparinas a querosene – uma evolução e tanto para quem viveu nos jurássicos tempos da candeia – e a comida, a minha mãe preparava em uma trempe ou fogão a lenha, buscada cada vez mais distante. Menos mal que não carecia socar o arroz no pilão, pois o adquiríamos limpo, em ‘medidas’, nos balcões das máquinas – ou ‘máchinas’ – beneficiadoras, se a grana dava, claro. Já as trouxonas de roupas sujas, as ‘de fora’ e as ‘de casa’, eram lavadas no Bacalhau ou no ‘rio’ da Prata e passadas com ferro a brasas, sopradas a cada minuto, pra não apagarem, fagulhas e cinzas se esvoaçando ao redor. Por trabalhar durante o dia, eu fazia os deveres de casa após retornar da escola, noite alta, sonolento e faminto: sentado no meio-fio, para aproveitar a claridade da rua, sob postes de aço eletrificados, principalmente, nas estações chuvosas (até a calçada dava choque), ia ‘devorando’ os livros e estapeando miríades de insetos atraídos pela luz, os quais, por seu turno, viravam chamarizes de pássaros noturnos, sapos, cobras... Quando a Lua despontava na crista do morro Cabeça de Touro e os seus alvos e tépidos raios redesenhavam os contornos da Igrejinha de Santa Bárbara e derramavam-se, preguiçosos, sobre o casario lá embaixo, eu me transfigurava: embriagado com tanta beleza, que jamais veria igual em nenhum dos lugares por onde tenho andado, deixava a Matemática num canto, invocava a musa dos meus impossíveis sonhos e virava o Mané Poeta. Já nem tinha fome. Ao som dos acordes de um violão, que algures o bardo apaixonado ponteava no ensaio da seresta, debulhava uma cascata de versos nos cadernos da escola, copiados, mais tarde, nos álbuns que muitas garotas (e alguns marmanjos) costumavam trazer consigo. Os jovens de hoje, infelizmente, não apreciam tanto poesias, musas e luares mágicos... Preferem embriagar-se com outras coisas.

    Descoberta a aptidão para as letras, passei a desfrutar de convivência estreita com uma plêiade de intelectuais da nunca suficientemente decantada ‘Atenas Brasileira’. Dentre todos, pontificava uma velhinha desinquieta e estuante de garra e de vida, recém-retornada de São Paulo, após uma ausência de quarenta e cinco anos: Ana Lins dos Guimarães Peixoto Bretas, já em plena construção da saga portentosa de CORA CORALINA. Como muitos da minha geração, passei a gravitar ao redor da grande Mestra, que adorava o assédio dos discípulos. Bom datilógrafo e apenas razoável aluno de Gramática, coube-me a honra de colocar em letras de fôrma o primeiro livro dela, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais, e verter para o Português da época um ou outro vocábulo que a Poeta – que não chegara a concluir o curso primário, nos primórdios do século vinte – teimava em grafar de forma arcaica.

    Vem daí o meu projeto de escrever, ao menos, um livro digno deste nome, que somasse algo à nossa literatura. Mas, como tantos jovens de hoje e de sempre, eu não lograria conciliar, por muito tempo, os afazeres da escola com a necessidade de suar no batente e ajudar no sustento da numerosa família. Comecei como vendedor de rua (ó o boooooolo de arrooooooz!), depois, furador de valas, ajudante de pedreiro, aprendiz de carapina, marmiteiro, padeiro; encarei vários biscates, quando sem ocupação regular, tais como: consertador de guarda-chuvas, apanhador de frutas e limpador de quintais e de cisternas; virei guarda-noturno, copeiro, garçom, empregado doméstico, operador de transmissores, sonoplasta, redator, locutor (sofrível) e outros – só não fui engraxate, nem trabalhei nas Casas Pernambucanas –, até aportar em Goiânia, atrás de novas oportunidades. Ali, quando julgava ter experimentado todo o leque de possíveis ofícios e profissões a que poderia aspirar, o Exército convocou-me, aos vinte e três anos, para servir em Brasília. Embora refratário, virei soldado... Beirando quatro anos de quartel, sempre na tropa, não sofri punições. Ao contrário, laureado com medalhas e honrarias afins, posso gabar-me de ter cumprido o serviço militar obrigatório, e trinta e tantos meses como voluntário, com distinção e brilho. Nunca prendi, torturei, censurei, dedurei ou assassinei alguém! Isso era possível, sim, mesmo no tempo do general Médici, os chamados ‘anos de chumbo’. Engajado, quis trilhar a carreira militar, mas o injusto desligamento do curso de sargentos, já em Caçapava-SP, sob a infundada suspeita de simpatizar com ‘ideologias alienígenas, contrárias aos interesses da Pátria’, no jargão dos que mandavam e desmandavam, matou o meu sonho; sequer, me facultaram o direito de defesa... Não havia alternativa: os insatisfeitos aderiam, eram proscritos (‘Brasil: ame-o ou deixe-o’), ou viravam clandestinos, pra fugirem ao rigor da repressão, com os ora sabidos e reprováveis excessos. Disso, fui poupado. Com o tempo, descobri que o quartel não era o meu forte, fora uma ilusão passageira, decorrida da premência de abraçar uma carreira, à época, promissora, por parte de um jovem paupérrimo, ingênuo, prenhe de sonhos e ideais, pouca escolaridade e bastante influenciado por leituras ufanistas, tipo a revista Seleções do Reader’s Digest, que ainda prega o riso como terapia, o civismo como devoção e a morte pela pátria como honra e dever de todos, preferencialmente – no caso de Tio Sam –, dos índios, negros, latinos e outros imigrantes, mas isso não é da minha conta. O que me importa, e nunca esquecerei, ficou plasmado no meu caráter, a vida inteira: no Exército, salvo as exceções de regra, conheci e convivi com pessoas maravilhosas, e aprendi com elas, dentre outras tantas sábias lições, que o grande guerreiro é generoso e não tripudia sobre um inimigo vencido. Desmotivado, pedi baixa, prestei concursos públicos e virei burocrata. (Não se cobravam diplomas naqueles idos, e sim, conhecimentos, o que era justo e democrático, pois dava idênticas oportunidades aos concorrentes, mesmo, aos autodidatas, os sem-canudos, como eu. No fim, selecionados os mais capazes, prevalecia o mérito, para a satisfação dos contribuintes, que pagam os salários de todos e têm o direito de cobrar o que lhes é devido, na forma de serviços públicos qualificados. Nada disso se dá no humilhante, paradoxal e controvertido sistema de cotas, que não passa de mal disfarçado racismo chapa-branca, ao propor ‘ajudar’ as minorias, quando, de fato, as discrimina: ‘Ao contrário do bordão oficial e do que ensina a Constituição, não SOMOS TODOS IGUAIS, vocês são menos iguais. Por isso, não se esqueçam: hoje, damos a mão, amanhã, colhemos os votos’. Mais explícito, não precisa).

    Os anos passaram... Já casado, abracei um novo ofício, o de pedreiro, coincidentemente (ou circunstancialmente?), a opção da maioria dos homens da minha família. Certo dia (era 1995), a sete meses do quinquagésimo aniversário, com a prole quase criada e a aposentadoria chegando, fiz um balanço da vida: àquela altura, orgulhoso pai de quatro guapos mancebos, construíra duas casas e plantara e vira crescer e frutificar um quintal com dezesseis variedades de árvores... Tempo para um comentário e um desabafo. O comentário: segundo o presidente da época, FHC, quem se aposentava antes dos 50 anos era vagabundo. Escapei, por um triz: tinha 51 e atendia a todos os requisitos vigentes. O desabafo: radicado há meio século, praticamente, quando me apresentei ao Exército, na terra onde é supernormal roubar ou furtar qualquer besteira, desde energia e água (‘gatos’), a tampas de bueiros, cestos pra lixo, lâmpadas, fios elétricos e telefônicos, a coisas graúdas, como grilar, invadir, parcelar, apossar-se, ganhar do governo, assaltar o Erário e os recursos da educação e da saúde, enfim, ‘se dar bem’, nunca grilei, invadi, parcelei ou apossei-me (de um palmo de terra que seja), nem roubei, furtei, ganhei do governo ou ‘me dei bem’, de uma ou outra maneira, a saber, sem a contrapartida do mérito. Também não caiu do céu o patrimônio que amealhamos, a duras penas, o casal e os filhos, nem veio de heranças, dinheiro sujo ou prêmios lotéricos (mesmo sendo eu, há décadas, um apostador contumaz, compulsivo e azarado), muito menos, resultou de ‘apoios eleitorais’ (barganhas por votos), ou o direito de nos indignarmos contra o que nos enche a cara de vergonha. Tudo o que temos é fruto, unicamente, do nosso trabalho árduo e honesto.

    Sem pejo, afirmo que enfrentei o desemprego e o subemprego, recebi salário mínimo por mais de um quadriênio, morei em quartinhos de fundo e em decrépitos barracos de madeirite e sofri todo tipo de privações. Nunca me sobrou tempo pra encangar grilos. Recém-saído do Exército (onde fui atleta, pouco mais que esforçado), passei nas provas escritas de um concurso da Telebrasília (atual OI), com louvor, mas, depauperado, no apogeu dos vinte e sete anos, ‘bombei’ no exame médico e perdi a vaga para a fome. Não tardou a surgir nova oportunidade e, bem alimentado por uma alma generosa (Carmem, da Assessoria de Imprensa do Ministério das Comunicações, biênio 72-73, esqueci o seu sobrenome, as suas saborosas e recheadas marmitas, jamais! Deus lhe pague, amiga, em que lugar você estiver), aproveitei-a, vieram outras e outras, cheguei onde estou, e posso falar, com justo orgulho, de peito aberto e cabeça erguida: se conquistei bons empregos, foi por merecimento; se tive duas casas, elas custaram o meu sangue e o meu suor, pois as construí com o próprio esforço, tijolo por tijolo, prego por prego! Cansado de pagar aluguel, economizei, adquiri os lotes em prestações e comecei a edificar – enquanto coabitávamos com o transtorno das obras –, a primeira, em Goiás, no entorno de Brasília, quando recebi a oportuna e substancial ajuda do meu já velho pai, mas, na outra, na cidade de Brazlândia, Distrito Federal, dos alicerces às lajes e destas ao telhado, gastei quinze anos da minha vida, nos finais de semana, horas vagas, licenças, férias, não raro, à noite, avançando pelas madrugadas, com o uso de materiais de segunda mão ou negociados em ‘promoções’ e ‘pontas de estoque’ das lojas do ramo. Só me valia de outros profissionais quando havia urgência e o dinheiro dava. Vencido o sufoco, eu e minha esposa adquirimos mais três imóveis, usando as nossas poupanças, ou por meio de financiamentos diretos com as construtoras. Faltava-me, assim, concretizar o antigo sonho, o projeto do livro, para a plena realização pessoal. Como primeiro passo, firmei um trato comigo mesmo: ou o faria antes dos cinquenta anos, ou não o faria, jamais.

    E tal se deu... No dia 1º. de novembro daquele longínquo 1995 – ufa! – cravei a palavra ‘fim’ sob o último parágrafo de As Guerras de Juquinha... Último parágrafo? Nada, aquilo não passava de um esboço, que, ao longo dessas mais de duas décadas, venho virando e revirando, como uma massa de bolo, à procura do ponto de arremate, o qual ainda não achei. Todavia, assino embaixo do que outros já disseram sobre o ato de escrever assemelhar-se ao de parir, por bulir com as nossas entranhas e sangrar e doer um absurdo. Em 1998, após oferecê-lo (na versão da época) a inúmeras editoras e inscrevê-lo em não sei quantos concursos literários, obtendo quase sempre um rotundo NÃO como resposta – às vezes, nem isso –, finalmente, vi o romance editado, como vencedor da Bolsa de Publicações Cora Coralina, de Goiânia. Alguma dúvida de que aquela que foi a minha Mestra, um dia, se transformaria no meu Anjo da Guarda?

    Eu mal sabia que o pior ainda viria, a divulgação e a venda do livro. Sob o impulso do sucesso inicial (vencera um renhido certame literário), fui à luta. E à lona. Ostensivamente ignorado pela mídia, e desconhecido no meio cultural brasiliense, fiz um lançamento, por minha conta e risco, na área externa do colégio dos meus filhos, onde, enquanto os aguardava até o término das aulas, engendrei e rascunhei parte do texto. Não apareceu vivalma (nem mortalma, que eu saiba). Como nunca entrego os pontos, corri atrás das livrarias... E a decepção foi maior. Umas disseram topar o desafio, sob condições dignas de um mecenas às avessas: aceitam os volumes, em consignação, desde que o autor arraste duzentos ou mais ‘convidados’ para as tardes/noites de autógrafos e arque com todas as despesas da divulgação e do bufê. Ou seja, as espertalhonas recebem a mercadoria em suas estantes (mercadoria mesmo, é como elas veem a cultura), mas exigem a parte do leão, cabendo ao autor uma merreca de 10% do total apurado, ou menos, e os exemplares não vendidos de volta. No meu caso, depois de despender uma pequena fortuna com hotéis, transporte e – porque, ainda hoje, é tal e qual – bancar do próprio bolso a segunda e a terceira edições (presentemente, a quarta), privar-me, por tanto tempo, do convívio com a família e os amigos, cair na depressão, enfim, queimar milhões de neurônios e dar o sangue e a saúde para concretizar a tarefa ingrata. Ante realidade tão kafkiana (melhor diríamos, macabra) e esta modalidade nada dissimulada de trabalho semiescravo, fazer o quê? Nesse entretempo, na Confraria das Vaidades, os seus membros e ‘membras’ seguem degustando os deíficos chazinhos, sonhando com o Nobel e afagando os próprios e imortais umbigos.

    Osso duro de roer, não esmoreci. Sabia que o meu trabalho tinha valor e merecia ser lido. Como, há tempos, disponho de outros recursos (graças!) e não dependo do que escrevo para viver, procurei dezenas de entidades filantrópicas ou culturais, em Brasília, Goiás, Minas, ofereci o livro (tudo o que fosse auferido com a sua venda) e dispus-me a comparecer às solenidades de lançamento, porventura, organizadas, assumindo todos os custos. Não houve uma resposta, mesmo nestes termos: ‘Fulano, obrigado pela oferta. Dei-me ao sacrifício de folhear o seu livro e concluí que ele não vale nada, nem pra fazer caridade’.

    Três anos depois da publicação e de toda essa via crucis, revoltado e doente, eu entregaria os pontos. A Universidade de Brasília promoveu um evento, em 2001, com a participação de escritores dos países de Língua Portuguesa. Num ato de extremo e inútil protesto – por não conseguir vendê-los, nem doá-los –, decidi fazer uma fogueira com os livros (o promotor do concurso reteve parte do milhar de exemplares, que doou a bibliotecas e escolas públicas, com outros, brindei amigos e parentes). Firme no propósito insano, encomendei faixas adequadas à situação e contatei os órgãos da mídia local e os aqui representados. Alguns asseguraram o comparecimento... Entretanto, na data aprazada, eu sofreria novo revés, talvez, o mais cruel: sequer um fotógrafo se fez presente! Passou em branco, assim, um fato que teria mostrado ao mundo a nossa ingrata realidade cultural, onde os ricos adquirem livros como objetos de decoração e os pobres, tão carentes do Saber, pra livrarem-se das amarras da ignorância e da miséria, mal podem sonhar com estes ‘artigos de luxo’. Em suma, não me sobrou alternativa, senão, cumprir a ameaça. Expostas as faixas em pontos bem visíveis do pátio daquela que é uma das mais celebradas universidades sul-americanas, escrevi num calçadão próximo, usando os próprios volumes, a famosa frase de Monteiro Lobato: UM PAÍS SE FAZ COM HOMENS E LIVROS. Como nem isso chamou a atenção dos congressistas, ou de quem quer que fosse, espalhei álcool em cima e, banhado em lágrimas, taquei fogo no meu primeiro, tão sonhado, premiado e, na hora, jurei, único livro. Num momento de dor tão aguda e dilacerante, quase insuportável, faltou-me até a solidariedade dos professores e dos graduandos do Curso de Letras da instituição patrocinadora, ainda que, antes de cometer a loucura, eu tenha feito chegar às mãos de muitos deles um exemplar autografado. Além dos raros curiosos circulando pelo local, que esbravejaram, furibundos, contra o maluco incendiário de livros (consola-me crer que não entenderam a cena patética), só um dos meus filhos estava presente, para acalentar o choro paterno. Da mesma forma que os irmãos, cada qual no seu tempo, o Igor era, à época, um brilhante aluno da UnB, onde os quatro ingressaram em disputadíssimos cursos (todos foram aprovados no primeiro vestibular ou no chamado PAS), superando obstáculos, como o fato de morarmos longe da escola, em média, cento e vinte quilômetros, ida e volta. Tudo (mais méritos deles), sem passarem pelos temidos cursinhos ou a humilhação das cotas, que não pleitearam, mesmo sendo afrodescendentes, como os seus pais e a maioria dos filhos e filhas da nossa Nação mestiça. (Sim, concretizei o antigo sonho, ao casar-me com uma neta de negros, ainda que ela tenha a pele clara e os olhos encantadoramente azuis). Fruto típico dessa mescla de raças, o nosso caçula vem passando por uma metamorfose: nasceu com a cútis branquinha e os cabelos loiros da avó materna, porém, lisos como os da bisavó cafuza e espetados como os do pai (antes de despencarem); cresceu, amorenou-se, a cabeleira encrespou e hoje é idêntica à da mãe e às de outros ascendentes e colaterais de ambos os lados. Diante de tudo isso, haveria coisa mais relevante para estufar de orgulho o peito deste autodidata, que pouco frequentou a escola?

    Incontáveis... E, desde que este arremedo de prefácio virou quase um resumo autobiográfico, confesso que, enquanto amargava as piores privações que um ser humano pode experimentar – bem antes de encontrar a pessoa com quem compartilharia os últimos quarenta anos, e os que, se a Deus aprouver, vierem daqui em diante –, assumi outro compromisso, comigo e com Ele: faria o possível e o impossível para livrar os meus futuros filhos das adversidades com as quais me defrontava. Asseguro que fome eles não passaram, outras carências, certamente. Com efeito, no que deveria ter sido o melhor período na vida do casal, os primeiros quatro anos, tivemos o pior, morando num cortiço que perdurava na Quadra 04 de Sobradinho-DF e não mais existe, senão, em fotos e na nossa memória (porque não dá para esquecer), num barraco de madeira, caindo aos pedaços, e cheio de goteiras, coabitando com lesmas, pulgas, baratas, ratos e a incrível cadela Dagmar, que não quis mudar-se com os donos ou os que vieram e se foram depois, inclusive, nós, optando por viver ali o resto dos seus dias. Não tínhamos televisão (nem um radinho de pilhas) e a quinquilharia, apelidada de ‘móveis’, adquirimos de segunda ou terceira mãos, constituída da tralha mínima de cozinha: um fogão enferrujado, uma minigeladeira, com mais de quinze anos, uma mesinha capenga e as cadeiras, três panelas e meia dúzia de pratos, além de um guarda-roupas de duas portas, todo torto, uma cama ‘solteirinho’ rangedeira, dividida equitativamente, eu ficava com trinta centímetros, a Teresinha com outros trinta e vinte eram da barriga dela (taí o resultado da falta da TV) e um berço, onde dormiam os dois filhos mais velhos, cada qual com a cabeça prum lado. Eles aprenderam a brincar e a dar os primeiros passinhos na nossa nesga de quintal, à beira da fossa a céu aberto que servia a todos os barracos. Ao par disso, nos duros anos de 1976 a 1980, eu ia de um emprego a outro (três, simultaneamente), prensado em ônibus bolorentos, como ‘sardinha na lata’, fazendo contorcionismos para abrir uma ‘clareira’, onde pudesse manter-me de pé e folhear uma apostila (era o meu único tempo). De olho no próximo concurso, datilografava resumos em tirinhas de papel, dos dois lados e ia desenrolando, uma a uma, durante as viagens. Tanto sacrifício, em troca de salários abomináveis, com os quais mantinha a própria família e a da minha mãe, sem qualquer renda e criando um casal de filhos menores, e três netos, que ela adotou ao nascerem, porque os pais não os assumiram. Não acabou: o meu almoço era uma marmita fria e não dormia mais de quatro horas a cada vinte e quatro, saindo de casa antes das seis da manhã e retornando de madrugada, isto, quando não passava a noite em hospitais públicos (não tínhamos o direito de sonhar com um plano de saúde), para uma simples marcação de consulta ou fazer companhia à minha esposa, a um filho ou a algum parente em tratamento médico. Ajuda? Além da solidariedade dos vizinhos ainda mais pobres e de um ou outro ente querido, tivemos, sim, o socorro providencial de Deus, que jamais nos faltou, na forma de duas fornidas cestas de alimentos, mensalmente, pelas mãos generosas dos mantenedores do CENTRO ESPÍRITA BEZERRA DE MENEZES, de Sobradinho. Sem nada exigirem em troca ou propalarem aos quatro ventos a boa ação, eles praticaram a caridade, conforme Jesus ensinou. E nos livraram da fome, merecendo a nossa eterna gratidão! Obrigado, amigos! Que Ele os ilumine sempre e continuem agindo da mesma forma, toda vez que um carente bater às suas portas, como nós fizemos um dia...

    Liberto desse espinho, cravado na garganta, é hora de cessarem as ruminações e ‘tudo o que a musa antiga canta’, pois, eu quero pedir licença ao leitor e narrar a segunda parte da história da família que Deus me deu, glória maior da minha vida e em cujo seio me reconforto, nas travessias mais árduas. Começo pela TERESINHA, miúda, porém, dona de muita fé, fibra e pavio curto, o suficiente para tolerar-me nesses anos todos: determinada, ela graduou-se em Letras no interior paulista, estudando em casa e viajando, a cada mês, a fim de submeter-se às provas, ao passo em que trabalhava fora e cuidava, bem demais, do lar e dos filhos pequenos, o mais novo ainda lactente; sem contar outras proezas, antes e depois, como preparar-se, enfrentar e passar em dois concursos consecutivos do Tribunal de Justiça local... Como não desejo perder de vista um dos propósitos destes, com o perdão da palavra, prolegômenos, passo a falar de um quarteto de denodados campeões e alguns de seus mais assinalados feitos, os nossos eternos pimpolhos, Caburé, Sapitoco, Cheirinho e Pequerrucho, maiores motivos de alegria da família, parentes e amigos, e exemplos para toda a juventude. O primogênito, BRUNO EUSTÁQUIO, 42 anos, esposo da musicóloga ADRIANA e pai da Júlia Maria, cursou Geologia na UnB, fez mestrado no INPE (São José dos Campos-SP) e doutorou-se pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul; hoje, é Consultor Sênior da Petrobras, onde ingressou por concurso, quinze anos atrás (o mais novo a ascender ao relevante cargo na história da nossa maior empresa, ultimamente, tão enxovalhada por alguns dos seus pares, mancomunados com empresários bandidos e a politicalha corrupta que a tomou de assalto, pelas mãos dos que deveriam velar por ela). O segundo, IURI DANIEL, 41 anos, nutricionista e bacharel em Direito, recém-casado com a advogada MICHELE, fez parte da Polícia Civil de Goiás e hoje, sempre através de concurso, é Policial Rodoviário Federal, lotado em Brasília. O terceiro, IGOR MANUEL, 37 anos, igualmente, bacharel em Direito, pós-graduado, casado com a médica RAQUEL, pai do GABRIEL e de outro netinho, vindo por aí, cheio de pressa, debutou no serviço público nos quadros do Supremo Tribunal Federal, de onde passou ao Tribunal Superior do Trabalho, ao Tribunal de Justiça do DF e, sempre pela via dos concursos, após uma temporada na Advocacia-Geral da União (AGU), virou Consultor Legislativo da Câmara dos Deputados. Finalmente, o caçula, ERICH ADAM, 30 anos, solteiro, outro Geólogo, mais um que não deixou a peteca cair: em meados de 2014, após estudar apenas dois meses, concomitantemente com o mestrado na UnB, ele enfrentou um renhido concurso para Perito Criminal da Polícia Federal e, aos 25 anos, sagrou-se em primeiro lugar, em todo o país, na área de Geologia; concluído, com méritos, o curso de formação (outra parada duríssima), concretizou um sonho de infância, ao tomar posse no cargo, que exerce na capital tocantinense. Falar nisso, palmas e mais palmas, que eles merecem, mãe e filhos!

    Voltemos às nossas abobrinhas... Quase livre da depressão, mas, às voltas com as sequelas de uma cara e malsucedida cirurgia de catarata – feita no mais afamado hospital oftalmológico de Brasília, a laser –, como visão turva e fraca, ardores e ressecamentos, que limitaram a minha capacidade visual, drasticamente, mesmo com o uso contínuo de remédios, lamentei o gesto tresloucado e promovi uma varredura no texto, verdadeira operação pente fino, disposto a enxugá-lo e, se possível, melhorá-lo. Esse ata de cá, desata de lá, desengarrancha aqui, desentorta ali, poda um trecho, estica outro, para clarear os esconsos meandros, escoimar as incorreções mais escancaradas e facilitar o trânsito dos eventuais leitores. Se mal não comparo, fiz igual o garimpeiro, que bateia a vida toda, atrás da sorte grande (que nunca tive), ou, mais propriamente, do jeito da matuta, ao preparar o feijão do almoço, antes de levá-lo ao caldeirão e à fornalha: peneirei, peneirei..., à medida que soprava o pó e catava os ciscos, os grãos carunchados, os chochos e os podres. Após tantas peneiradas (releituras), como o feijão (texto) foi escasseando no fundo da peneira e não dava mais uma cozinhada, juntei alhos e bugalhos e inteirei com outras receitas, maturadas em minhas vivências, mundo afora. De tal sorte, na faina intensa que virou o meu modo de aprender, nos últimos vinte anos, não passei um dia sem esmiuçar as arteirices e maquinações do Juquinha, enquanto juntava uns trocados para bancar as sucessivas publicações.

    Destarte (reporto-me à 2ª. edição), de remexida em remexida, demão em demão, aconteceu: tal uma Fênix rediviva, ressurgiu das cinzas um calhamaço com mais de 250 páginas. Ânimo renovado, contratei a Editora Itatiaia, de Belo Horizonte, que fez um trabalho primoroso, pela bagatela de vinte mil reais, levando-me a crer – ingenuamente, os fatos corroborariam – que, com

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