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Além das Origens
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E-book313 páginas4 horas

Além das Origens

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Sobre este e-book

Dominar a arte das Letras, desencadeando cuidadosamente pensamentos, sentimentos e seus questionamentos no leitor, fazendo gerar neste uma expectativa pelo que ele tem nas mãos. Isso é algo facultado a bem poucos autores.Além das Origens, por meio da reunião de vários textos, propõe-se a não simplesmente narrar algo para o leitor, mas a levá-lo de forma consciente por entre as suas páginas, promovendo mais que uma aventura, provocando uma reflexão e, por conseguinte, um posicionamento claro acerca da vida e de tudo que a cerca. É o discernimento das palavras que conta, seu movimento, sua entrega, seu grau de interferência em cada um de nós.
IdiomaPortuguês
EditoraLitteris
Data de lançamento1 de ago. de 2019
ISBN9788537402665
Além das Origens
Autor

José Maria Dias da Silva

Nascido em 23 de abril de 1942, em Santa Maria Madalena, no Estado do Rio de Janeiro, o autor é graduado em História e Pedagogia, pós-graduado em História Econômica e Metodologia do Ensino Superior. É também especializado em Ciência Política e Mitologia Grega. Professor do Município do Rio de Janeiro, lecionou em diversas entidades de ensino da zona oeste. Hoje, é professor da Escola Municipal Rubens Farias Neves, além de membro do Circuito Literário Conversa com Verso e do Instituto Campo-Grandense de Cultura.Zé Maria, ou “Professor Zé Maria”, como é carinhosamente chamado pelos amigos e alunos, é uma personalidade tranquila, de verve altaneira e introspectiva. Com seu jeito calado e, por vezes, arredio, passa equilíbrio, sobriedade e conhecimento.É autor de vários livros, como Transparência, Olímpica mitologia e Ave-Vida – todos de poesia; e dos romances Como uma lenda, Caminhos e reencontros e Agonia da Terra.

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    Além das Origens - José Maria Dias da Silva

    capa.jpg

    Copyright desta edição © 2015 by José Maria Dias da Silva

    Direitos em Língua Portuguesa reservados a Litteris Editora. 

    ISBN - 978-85-374-0453-9 (2019) 

    ISBN - 978-85-374-0266-5 (versão impressa) 

    Conversão: Cevolela Editions 

    Imagem da Capa: O Grito, 1893 de Edvard Munch

    440

    Litteris Editora Ltda. 

    Av. Marechal Floriano, 143 - Sl. 805 - Centro | 20080-005 Rio de Janeiro - RJ 

    tel (21) 2223-0030; (21) 2263-3141 

    litteris@litteris.com.br 

    www.litteris.com.br

    Sumário

    Capa

    Prefácio

    Primeira Parada

    Segunda Parada

    Terceira Parada

    Quarta Parada

    Quinta Parada

    Sexta Parada

    Sétima Parada

    Oitava Parada

    Nona Parada

    Décima Parada

    Décima Primeira Parada

    Décima Segunda Parada

    Epílogo

    Sobre a Capa

    Sobre o Autor

    Cogito, ergo sum — eis a questão. Desde que balbuciamos as primeiras sílabas, articulamos as primeiras palavras e no casamento da fala com a escrita rabiscamos as primeiras letras para formarmos outras palavras, começamos então a percorrer o longo caminho no mecanismo de juntarmos as palavras escritas. Agora codificadas, elas se juntam geram frases, cujos sentimentos e vidas geram livros. A articulação de símbolos, sons e sentimentos assim compactados, será definitivamente o segredo que faz detonar o saber, propagá-lo como um rastilho pelas memórias, produzindo emoções, confundindo e se perpetuando ao bel sabor dos talentos, os magníficos arranjos de fantasias que se confundem com realidades, realidades que se perderão como fantasias ou se edificarão como dogmas. Guiados por esses poderosos instrumentos de transformação, poderemos enfim dar asas aos nossos pensamentos, vivermos aventuras, desventuras, esperanças e sonhos.

    Quando tudo parece resolvido, por termos na caneta a varinha mágica que pode nos conduzir ao mundo da fantasia, ou debaixo dos olhos os livros das realidades mutantes, mergulhamos então, na impressionante e prazerosa tortura de vivermos enfurnados em perguntas e respostas para amenizar ou aprofundar nossas dúvidas. Nisso um assunto puxa outro, assim como de uma barrica se faz uma cuíca, de uma página se passa para outra à procura do livro. Abre-se enfim a trilha do infinito, as respostas não saciam mais a sede das perguntas, ao contrário, cada resposta abre um verdadeiro leque de outras tantas perguntas, tão intensas e necessárias que geram discutíveis certezas, como por exemplo: Aquele que se contenta com a certeza de uma resposta e a partir dela não tiver ânimo para gerar outras perguntas... perseguir outras respostas, estará alienado. Será?

    Essas cogitações fazem explodir outras sentenças: a arte de viver se perpetua na arte de juntar palavras, formar frases, ainda que ditas após outras e alhures, como aqui se configurou em significados outros e circunstâncias diferentes, pois elas se renovarão por si só, a cada nova intenção e novos tempos. À semelhança do giro da Terra, combinando com o sol a sucessão dos dias e das noites, nesse mesmo alucinante compasso de iminente tédio, o pensamento e a vida também giram para fugir deles, dando sentido ao envolvente ciclo da evolução: da criança ao velho, do trabalhador ao aposentado, da vida à morte. Claro que quando se morre antes do tempo, não haverá aposentadoria, nem velhice, com suas penosas ou compensatórias decorrências, ou seja, só a morte poderá evitá-las ou lhes dar continuidade. Que fazer? Cogitando nessas efemérides concluí: em qualquer estágio ou circunstância, assim como é inevitável que o rio se desfaça no mar, a vida, o livro, a aposentadoria, a velhice são inevitáveis... inevitáveis como a morte em seu ato final... ou não!

    Insisto que essa opinião, como qualquer outra é apenas circunstancial, isto é, admite réplicas que geram controvérsias. Válida ou não, ela nasce com a intenção de mostrar que a vida começa a se desfazer na aposentadoria e na velhice, antes de se desfazer na morte.

    Mas a que propósitos meus pensamentos vociferaram essas reflexões? As duas consagradas frases Cogito, ergo sum..., juntadas aleatoriamente poderiam em seu próprio novo contexto, produzir outros efeitos, responder novas perguntas. No entanto, foram apenas os suportes, pois as cismas que as ressuscitaram vieram antes de se juntarem, mais precisamente quando pensei ter terminado o último livro que tentei escrever. Eu explico:

    Explico o que aprendi de um sábio semianalfabeto, a me ensinar: ninguém jamais conseguirá escrever um livro... escrevem histórias, mesmo assim incompletas... todos que escreveram livros podem dizer, sem falsa modéstia, que tentaram escrever. Tudo isso, pensava e dizia meu avô, sem jamais ter conseguido ler um único livro. Apesar dessa carência indesculpável a pretensos ilustrados, a ele não careceu, tornando-se inigualável contador de histórias. Vale a pena abrir parênteses para breve reflexão: se não leu como aprendeu? E se sabia é porque aprendeu. Não há dúvida que a leitura seja a grande fonte do saber, daí a revolucionária importância da invenção da escrita. Mas, aqui ficou claro, que saber ouvir também o é. Certamente foi nessa fonte inesgotável, que meu avô saciou toda sede de sua sabedoria, sem pretensões a fixar certezas, o que supostamente a escrita pretende. Ele e as histórias se confundiam. Eu as ouvia encantado, nesse encantamento achava que meu avô já nascera velho, esses mistérios não cuidava em desvendá-los, o segredo lhe pertencia, era a arma de sua sedução e poder de persuasão. Seu saber me passava a certeza de que a vida era assim: os velhos seriam sempre velhos e os novos sempre novos, sem a tortura de ter que passar o tempo e mudar as pessoas. Nesse contexto, aposentadoria e morte nem passavam por minha cabeça, eu seria sempre criança, ouvindo sempre as histórias que vovô contava. Histórias que faziam dormir, despertar para a vida, em toda sua paz, em todo o seu fulgor, sem dúvidas e incertezas.

    Mas essa não é a questão ou pelo menos não é a fundamental. A questão é que naquele penúltimo trabalho, que pretendia ser um livro, havia decidido que era hora de parar. Até aí, nada demais, pois aposentadorias são inevitáveis! No entanto, cabe a ressalva de se dizer: o cara que se mete a escrever, seja ele escritor ou não, não tem direito a aposentadoria, em consequência, também não pode parar. Dizem os entendidos, que o máximo que ele pode fazer para se livrar do inimigo será aposentar a caneta, a máquina de escrever ou o computador, dependendo de seu estágio de evolução ou dependência psíquica. A propósito da controvertida importância dos escribas, que vagam seus pensamentos por páginas e páginas a se perderem sem eco, um empresário ou político, não sei bem, sentado em seu trono confortável e vulgar, referiu-se a uma plêiade de ilustres desconhecidos escribas, como um bando de desocupados e pobretões. No entanto, como reza a soberana sabedoria popular: o bem estará sempre acima do mal..., restará ao poeta ou escritor o consolo de ser o único ser a depois de morto se tornar imortal. Em alguns casos mais graves, se tornarem nomes de bibliotecas, escolas, ruas, praças, até bairros inteiros, por outras palavras diríamos que a morte consagra o poeta. A morte, o terror iminente de todos os seres vivos, e mais acentuadamente de nós, pobres mortais; no caso peculiar do poeta é tão benéfica que perde seu poder mortal e ganha incontido poder para imortalizá-lo. Como nada é perfeito, mesmo nessa glória tão desejada, haverá sempre um pessimista, espiritualista ou realista de plantão, alertando: esse não consegue descansar nem depois de morto! No meu caso, o drama do ser ou não ser tem a atenuante de eu já ser aposentado. Pelo menos, essa é a denominação que deram aos míseros proventos compensatórios, depois que fui julgado impróprio para consumo aos quarenta anos dedicados ao magistério. Quanto a isso, não há o que reclamar. Na inflexível lei de proteção ao consumidor, todo produto fora de validade deve ser retirado da prateleira sob pena de crime contra a saúde pública.

    Quer saber? A diferença entre o ser humano da dita esfarrapada melhor idade e a mercadoria degradada é, na prática, nenhuma. Pois se não somos afastados a bem da saúde, o somos em tese, a bem do serviço público. Como aposentadoria é o rótulo que o professor recebe, correspondente ao fora de validade, resta-nos como menos afortunados dessa esquálida benesse, a consoladora mensagem de nossos ex-alunos legisladores: Ao mestre com carinho para seu merecido descanso, mensagem digna de florida coroa fúnebre. Alguém mais bem informado no assunto dirá que o mal não está na aposentadoria, mas no descaso como é concedida. Vale lembrar que nossos representantes nas Assembleias Legislativas, por dois mandatos compreendidos em um período de oito anos, fazem jus a esse mesmo benefício com seus proventos substancialmente aumentados. Não creio que essas lições eles tenham aprendido nas escolas! Antes, porém, que a nossa prosa descambe para exaustivos debates sobre justiças e injustiças sociais, vamos retomar o fio da meada.

    Retomar o fio da meada é reafirmar que a minha decisão de não tentar produzir mais nada parecido com um livro, já estava tomada. Uma decisão paradisíaca ou quixotesca, na medida em que os conselheiros e consultores eram os próprios fantasmas de meus personagens esquecidos, da mesma sombra que luxuriava no abandono de seus efeitos. Decisão bela, fácil, sem prós nem contras. Até porque essa decisão certamente não teria que enfrentar nenhum protesto, nem conselhos, muito menos pedidos para que eu recuasse da ideia. O melhor mesmo seria parar e para ficar mais claro, por óbvias razões. Vamos conhecê-las em seus detalhes:

    Eis que no país de leitores, os livros que tentei escrever foram best-sellers apenas no reduzido círculo de minhas amizades, e mesmo assim, tendo a se considerar que muitos adquiriram e não leram, com o agravante ou atenuante de depois testemunharem serem ótimos — coisas de amigos. Em virtude dessa farta aceitação, os ditos-cujos fizeram de mim um autêntico campeão de vendas, pois para bancar suas publicações, vendi casa, carro, bicicleta, televisão e outras cositas mais. Tudo sob os auspícios dos gananciosos aproveitadores dessas desditas e de cobiçosos impostos oficiais. Sob esse manto de desilusões se remexe apenas uma vocação desenfreada para impulsionar as artes gráficas, contribuindo lamentavelmente para a degradação do ambiente, com a montanha de papel que uso para filtrar o pensamento e produzir a ideia, nem sempre compreendida pelo deserto de leitores que me prestigiam.

    Com tantas razões desfavoráveis, a difícil decisão de parar o que mal começara foi fácil... ou deveria ser.

    No entanto, esse melancólico deveria ser foi para o ar. Isso porque o destino do escritor, assim como no futebol ou no amor, se comporta e se descortina muitas vezes como uma caixinha de surpresas, está sempre aprontando alguma, com artimanhas as mais requintadas ou vulgares, nos levando, a nós pobres mortais, pelos caminhos da maneira e para aonde ele quer, nunca pelos caminhos da maneira e para onde queremos ir. Quero dizer que escrever nem sempre é uma escolha consciente e espontânea. Pode ser uma escolha inconsciente, empurrada por circunstâncias alheias à sua vontade. Se não vejamos:

    NAS MALHAS DO DESTINO

    Fora convidado para participar como jurado em importante concurso de poesia, digo isso, porque o referido goza de reputação nacional, com significativo prêmio em dinheiro ao vencedor. Em nossa comunidade, esses eventos ganhavam ares festeiros, com intensa e qualificada participação de candidatos a patrimônio cultural do país, assim como sugestões a futuros batismos de prováveis ruas, escolas e com mais certeza, simpáticas salas de leitura. Restará ainda, com maior dose de empatia e popularidade, ganhar um busto em bronze, pedra-sabão ou mesmo em mármore, representando augustamente em nobre salão de artes o vigor de sua verve. Quem viver verá!

    Como certas coisas nos levam a acreditar que nada acontece ao acaso, caberia ao meu grupo, formado por mim e mais dois membros, a missão de escolher através de pontuação o melhor intérprete do evento. Para nós, ligados às atividades artísticas e culturais da comunidade, com chances reduzidas de participação pela escassez desses eventos, o convite valia por uma distinção. Foi nessas circunstâncias que vim a conhecer uma senhora, anunciada pelo apresentador como Dra. Olívia — médica e poetisa. Considerando-se a forma como foi ovacionada pela plateia, compreendi a importância de seu trabalho, e confesso a frustração que senti por não reconhecê-la no status em que a reconheciam. Aliás, esse é um dos tributos que paga quem vive com a cara enterrada em jornais e livros, tentando plantar suas ideias nas areias movediças de uma folha de papel em branco. Torna-se semelhante a uma espécie de ET cultural, informado até a medula com as coisas do grande mundo, com as quais pouco tem a ver pessoalmente, mas alheio ao efervescente pequeno mundo que o cerca, do qual deveria fazer parte. Talvez essa cultura inútil possa justificar meus livros como ornamento de prateleiras e por certo aquela pasmaceira diante de alguém tão afinada com as coisas de seu tempo, de sua comunidade. O terceiro membro de nossa tribo ostentava o portentoso título de magistrado e, a exemplo de nós outros, também a alcunha de poeta. Acho que se encontrava no mesmo patamar de estar aquém daquele mundo efervescente e simples, que a Dra. Olívia nos mostrava.

    Naquele momento, minha mente foi atravessada pela providencial resposta ao questionamento anterior. Ali estava a razão pela qual um poeta não para, nem se aposenta: ser poeta não era uma profissão, mas uma ocupação abstrata... não é um exercício do corpo, mas uma manifestação da alma... o poeta não morre mesmo, principalmente depois de morto! Na verdade, se morto imortalizado, ele estará condenado a vagar suas penas em seus poemas, por imaginações disformes, comprometidas ou mal intencionadas, com o que comprometido e bem intencionado ele escreveu.

    Parecendo não compartilhar de minhas preocupações relativas ao status dos versejadores na sociedade estatutária e consumista dos nossos tempos, a bela senhora esbanjava vitalidade e alegria, absorvendo cada gota das distinções que lhes conferiam, as quais ela fazia questão de repartir conosco, em gestos simples e descontraídos.

    Para minha surpresa, passei a ser afetivamente envolvido pela sua simpatia. A cada intervalo das apresentações, passamos a trocar impressões, inflando meu ego na medida em que ela mostrava sempre muito interesse pelas minhas opiniões e com seu entusiasmo, me conduzia ao clima do evento.

    Concluído o primeiro ato, recolhidos ao camarim para aferirmos os resultados de nossas avaliações, tratávamo-nos enfim como velhos amigos, afinados nos gostos e nas emoções sobre o espetáculo que acabávamos de apreciar, com a difícil missão de julgar. Difícil para mim que não conseguia me despojar do pedantismo doentio de querer ver além da beleza humana, sem dispor de lente própria de visionário para tal. Para ela fácil pela sensibilidade plástica dos seus conceitos.

    De repente, a descontração que a acompanhara desde que fora convocada para a composição do júri a abandonou. Como uma ave que ferida se desequilibra em pleno voo, o mundo de fantasia em que parecia flutuar se desfez. Tornou-se séria e pensativa, me fitou longamente, parecendo procurar palavras para revelar alguma coisa mais importante do que até então conversáramos. Como a missão para a qual havíamos sido convocados estava concluída, agora envolvida por aquele repentino clima nostálgico, tornando-a menos receptiva, imaginei que fosse se despedir me desejando Feliz Natal e Boas Festas na passagem do ano, como era praxe nessas ocasiões.

    Mas, ao inverso desse comportamento esperado, pôs sua mão — suponho que a esquerda sobre minha mão direita — a qual com certeza permanecera esquecida sobre a mesa, retendo ainda entre os dedos, o lápis usado na marcação das notas concedidas aos intérpretes. Gesto espontâneo, simples, perfeitamente compatível com a despedida naturalmente despretensiosa de um encontro casual e inconsequente. No entanto, pelo sombrio ar de preocupação que substituiu em seu rosto o sorriso alegre de antes e o inesperado brilho de tristeza que se desprendeu de seus olhos negros, enigmaticamente afundados na beleza de seu novo rosto, tudo mudou. Dotado desses sedutores componentes, o gesto simples da sua mão sobre a minha, se revestiu de incrível força magnética que me paralisou, trazendo ao mesmo tempo uma aura diferente, profundamente transformadora em nossos sentimentos.

    Naquele recinto mais aconchegante e blindado da barulheira intensa que se espalhava pelos corredores, sua voz ganhou contornos mais suaves, era o lado poético da médica, que se mostrava intenso em suas atitudes mais simples. Nossas mãos permaneciam uma sobre a outra, tal como ela as colocara, imobilizadas como se não tivessem vida, formando apenas um objeto decorativo da própria mesa em seu respectivo ambiente. Foi nessa posição, que nem posso dizer de ternura, mas talvez de encantamento e devorado pela voracidade do tempo, na exata medida em que éramos convocados a voltar ao auditório, que me confidenciou:

    — Conheço o senhor já há algum tempo...

    — Por tudo o que fez e faz pela humanidade é justo que o Senhor seja muito conhecido — interrompi em tom de brincadeira.

    Compreendendo o espírito das minhas palavras, ela sorriu, sem perder a pose e o domínio de suas ideias, retificou:

    — Você... desculpe! É o hábito de outros tempos... li o seu livro e fiquei impressionada com seu jeito de escrever — concluiu, deixando na ingenuidade da frase uma mensagem indefinida.

    Por instantes invejei a perspicácia profunda da arte de Da Vinci, que conseguiu retratar o mistério oculto do sorriso feminino, mais ainda a profunda percepção da psique humana que consagrou a palavra de Freud.

    Sem esses recursos paralisei e ela ganhou espaço. Ficava claro que aquela mulher de atitudes tão leves e joviais carregava na alma, se não no coração, um segredo que a fazia levitar entre esse e outro mundo.

    No pêndulo das suas transições entre o céu e a terra, sorriu como se sofrer e se divertir fosse a face de uma mesma moeda. Só então retirou sua mão que permanecera pousada sobre a minha, o fez com despretensiosa pressão, mantendo a impressão anterior, como se ali estivesse um objeto de relativo valor ao invés de um ser vivo. Com absoluta naturalidade recuperou a espiritualidade descontraída da sua chegada triunfal, se apressando a me convidar para voltarmos ao auditório, me advertia como se fosse eu o responsável pelo prolongamento da nossa permanência no camarim.

    — Estamos atrasados, vão pensar que fugimos... — brincou.

    Ao retomarmos nossos lugares na bancada, para curtirmos o efeito das nossas decisões, meus sentidos e pensamentos, como sempre rebeldes, desafinados com o instante vivido, mal se formulavam se desintegravam, para se perderem em disformes devaneios. Nesse estado de mutações constantes, padecentes sempre das minhas deficiências congênitas ou adquiridas, regurgitavam dentro de mim e sem rumo, gravitavam em órbitas distintas daquele momento.

    Estava ao lado de uma leitora inteligente, entusiasmada, conhecedora enfim dos segredos da literatura. Além de todas essas virtudes, ela se supervalorizava em meus conceitos, por ter sido provavelmente, fora do círculo das minhas amizades mais próximas, a primeira a ter lido, se interessado e feito referências elogiosas ao meu trabalho, que não posso deixar de acreditar sinceras, posto que espontâneas.

    Nesse clima de envolvimento emocional, navegava novamente pelo reino das frases feitas e insubstituíveis: Um livro vale por um leitor assim como A eternidade cabe em um instante.

    Fazia por esse expediente, o exercício saudável, capaz de sem maiores danos justificar minha vaidade. Era perfeito que assim fosse, porquanto conhecer minha primeira leitora real, depois de tantos invernos em convívio solitário com as páginas das minhas cogitações, me fez sentir um autêntico escritor, tendo na essência do seu interesse, a recompensa que traduzia a imortalidade daquele instante. Às favas minhas frustrações pendulares dos supostos merecimentos, pois sentimento tão mesquinho em ocasião tão efusiva revelava apenas a fraqueza do meu egoísmo.

    Quanto a ela, se entregara por inteira ao lirismo das poesias reprisadas nas interpretações eleitas como as melhores, feliz por ver que a plateia apoiava com seus aplausos vibrantes as escolhas feitas. Um brinde à magia da simplicidade bela!

    NO OSTRACISMO

    Todo jato de simpatia que lhe brotava da alma era dirigida agora para o magistrado-poeta, a quem passei a considerar instintivamente como o terceiro membro do nosso corpo de jurados. Essa atenção que agora canalizava toda para ele me pareceu ser para ela uma espécie de remissão do pecado, por tê-lo parcialmente renegado no primeiro ato do programa. Não sei o que aquela preferência inicial significou para ele, para mim foi o recheio ideal do meu ego carente.

    Com certeza, ela seguia pelo seu jeito natural de ser, o princípio igualitário da justiça comportamental em relação aos pares. Atitude que a distinguia como excelente pescadora de amizades, tendo um peixe no cesto, tratava de fisgar o outro no anzol. Era a versão política da médica-poeta, que se intensificava no mais humano dos comportamentos, em relação a seus pacientes, aqui apresentados em outras versões. Difícil para mim era aceitar essa transfusão espontânea de atrações, agora esvaziando meu ego e nutrindo o dele.

    Sem nenhuma razão justificável, a não ser pelo nosso instinto egocêntrico, que se destrambelha de dentro para fora, destroçando nossas vaidades a qualquer sintoma mais visível de que fomos renegados a um plano inferior àquele que a intuição do egoísmo nos faz julgar merecedor, começava a ficar incomodado com a piora no meu estado de ansiedade, inconformado em dividir com outro aquela inesperada e envolvente atenção. Seria o caso de se criar a comovente metáfora de amizade platônica? Se me atrevo a tanto, é por já existir a instigante amizade colorida, que, no entanto, não se encaixava na minha recente psicose, mas sugeria a instituição da sua antítese, como forma de definir ou justificar tão inadequado infortúnio da minha parte. Reduza-se todo esse emaranhado de insípidas figuras emocionais às confusões de minha mente, transformando uma amizade circunstancial em um vendaval de abstrações sentimentais configuradas como ciúme, nem sempre saudáveis. Por outro lado, não posso deixar essa minha tentativa de fuga verbalizada, sem uma severa advertência, isso por ter sido intimamente advertido de que a romântica versão sentimental do amor platônico, no qual certamente me inspirei, e que é inconsistente no meu modo de ver, mas de qualquer forma presente em nossas sandices alternativas, não contemplava em sua essência a execrável figura do ciúme.

    Tornava-se cada vez mais difícil para mim, compreender o absurdo do meu próprio comportamento: pretender a exclusividade da atenção de quem mal conhecera, só por ter merecido dela a distinção de ter lido um de meus renegados livros. Mas, acima de tudo me expor à virulência de um ciúme sem nenhuma razão de ser, pelo simples fato dela exercer o livre e educado direito de tratar bem o seu próximo, era no mínimo uma indignidade da minha parte. Claro que precisava de alguma coisa que me tirasse daquela enrascada, antes que lhe parecesse um cão abandonado e perdesse a admiração tão arduamente conquistada. Revigorado nessa convicção reagi, entrei no clima festivo das reapresentações, dissolvi minhas frustrações num conceito conciliador, concluindo que: naquele transe fora momentaneamente atacado por um ciúme platônico, fugaz e inconsequente. Foi o que melhor consegui para me contentar.

    Como resposta a essa mudança de atitude, pelo menos assim me pareceu, com um movimento de súbita decisão, ela se voltou para mim:

    — Estou feliz por tê-lo conhecido numa oportunidade tão festiva e bonita!

    Tudo o que dizia ou fazia era espontâneo e natural, fazendo entender que todos deveriam sentir e pensar como ela, conseguindo isso sem incomodar ou se incomodar. Confiante nessa auto-estima continuou:

    — Tenho um projeto a ser desenvolvido. Desde que li seu romance, passei a considerar que você seria a pessoa certa para me ajudar...

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