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#Conversasliterárias: Notas de estudos literários e temas afins em tempos de pandemia
#Conversasliterárias: Notas de estudos literários e temas afins em tempos de pandemia
#Conversasliterárias: Notas de estudos literários e temas afins em tempos de pandemia
E-book340 páginas4 horas

#Conversasliterárias: Notas de estudos literários e temas afins em tempos de pandemia

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Sobre este e-book

Conversas literárias: notas de estudos literários e temas afins em tempos de pandemia, reúne textos, resultantes de pesquisas e conversas realizadas no projeto #conversasliterariaseafins, onde professores e pesquisadores de diferentes partes do país, compartilham durante lives via Instagram, suas experiências literárias e acadêmicas, durante o período de isolamento social em 2020, decorrente da pandemia da Covid-19. Todos os textos produzidos e presentes nessa obra, têm como objetivo preencher a lacuna presente na discussão acadêmica, ausente nos espaços da universidade, por conta das medidas sanitárias de prevenção a Covid-19.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento24 de nov. de 2021
ISBN9786558406594
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    Pré-visualização do livro

    #Conversasliterárias - Cristiane de Mesquita Alves

    PREFÁCIO

    Literatura na pandemia: o que aprendemos a mais

    Todorov, em seu livro Literatura em perigo (2009), nos diz que a Literatura pode muito. Ela pode nos estender a mão quando nós estamos profundamente deprimidos, tornando-nos muito mais próximos uns dos outros, e muito mais humanos. A Literatura pode transformar a vida de cada um de nós, a partir de dentro. Acrescentaria ainda, com muita ousadia ao texto do crítico búlgaro, que ela poderia nos tirar do abismo, do isolamento ou mesmo fazer com que nós nos encontrássemos, e nos encontramos, nos momentos em que fomos forçados pela crise sanitária instaurada no Brasil e no mundo pela pandemia da Covid-19.

    Digo isso porque, nesse contexto, a Literatura foi um meio para mim e para muitos outros de nos salvar do isolamento social. E não estou aqui me referindo à literatura de entretenimento ou simplesmente de passatempo, estou trabalhando com a argumentação todoroviana de que a Literatura pode muito para transformar nossa vida, em mais este cenário social, de passagem para a segunda década do século XXI, como fez em outros séculos anteriores. Não estenderei a discussão ou escreverei sobre suas funções, porém, mais uma vez, ela está aí: atemporal e, não é exagero dizer, apocalíptica.

    Começo essas falas introdutórias para apresentar ao leitor o livro #Conversasliterárias: notas de estudos literários e temas afins em tempo de pandemia, com algumas ponderações das falas em que eu participei junto aos meus alunos, aos seguidores, aos pesquisadores, aos professores, aos escritores das lives pelo Instagram no decorrer de 2020, para tentar, com base no texto literário e temas afins, levar as pessoas a refletirem mais, comentarem mais, tornarem-se muito mais humanas a partir das indagações, ou da própria companhia virtual de todos/todas os/as participantes nessa conjuntura pandêmica em que estamos vivendo.

    Não à toa autocito o nome da última conversa literária apresentada na derradeira live do ano para dar vida novamente ao título dessas notas primeiras que prefaciam este trabalho: Literatura na pandemia: o que aprendemos a mais. Não tenho intenção de sugerir com a titulação da conversa uma pergunta, está bem mais destinada a uma reflexão, para que todos nós pudéssemos pensar sobre o que aprendemos com essa atípica situação em que estamos sobrevivendo. Também pensar o porquê da Literatura, em especial, voltar intensamente ao palco das redes e plataformas digitais para promover o diálogo nessa circunstância em que todos/todas deveriam, por amor a si mesmo e ao próximo, se isolar.

    Muitas lives, muitos diálogos, conversas, compartilhamentos, recitais de poesias, leituras coletivas de obras clássicas e contemporâneas invadiram o espaço da virtualidade para promover discussões, para acompanhar você, para entreter você, para conscientizar você, para despertar também o poeta que há em você... a Literatura tudo isso pôde nessa pandemia.

    Diante disso, reafirmamos o pensamento de Todorov (2009). E reivindicamos o direito de que todo indivíduo deve ter acesso à Literatura, como todos os outros direitos essenciais à vida levantados por Antonio Candido em seu texto: Direito à Literatura (2004).

    Como Candido mesmo muitas vezes afirmou, a Literatura nos humaniza. E no contexto dessa terrível pandemia, essa característica marcante e intrínseca ao texto literário, a cada dia que sobrevivemos à infecção da Covid-19, ela se fez/faz presente. A Literatura nos possibilitou conhecer mais pesquisas, mais pessoas, mais grupos, além de nos proporcionar a participar da ideia do coletivo, mesmo estando, ou deveríamos estar, todos isolados. Mais uma vez, a Literatura não nos deixou ficar a sós, lógico, partindo do pressuposto de que não se está sozinho na companhia de um bom livro.

    E a leitura desse livro em grandes salas virtuais fez com que nos sentíssemos, nós e o nosso íntimo livro literário, às vezes, abraçados e acolhidos na sala de estar ou em nosso quarto, e de lá mesmo, tomando um café, sozinho fisicamente, diante do computador ou de um celular, dentro de nossa casa, já tínhamos uma plateia, uma multidão. Então, a Literatura em tempos de pandemia, invadiu nossa privacidade, e, muitas vezes, isso não nos importou, para não sentirmos o peso físico da solidão.

    Mas a pandemia permitiu que sentíssemos a solidão ao vivo, fôssemos, direta ou indiretamente, atingidos pelas tragédias que antes acostumávamos a ver apenas entre as entrelinhas das páginas de nosso livro. E alguns atreveram-se, e muito bem, a escrever sobre a dor, a melancolia do presente, já que enlutados de fato, infelizmente, não estamos da Covid-19.

    Nessa contextualização, alguns desses momentos de compartilhamentos ganharam vozes também na forma escrita, que proporciona, a você, ler e escutar mais uma vez esse momento de construção de conversa, de trocas e de conhecimentos, em alguns recortes presentes ao longo dos capítulos que formam este livro. Seria poético chamar de memóriasdo#?! Fique à vontade a decidir, mas estou feliz em deixar um pedaço desse momento, dessas experiências vividas ao longo desse ano na frente de um celular, mediando falas, lendo comentários dos internautas, emocionando-me com os emojis/emoticons, conhecendo novas pessoas de muitas regiões do Brasil, conhecendo os familiares delas, os animais domésticos, outros barulhos e ruídos das ruas das grandes cidades do país, as emoções, as companhias, a parceria de meus alunos e meus seguidores, tudo isso, registrado em alguns momentos nesse volume.

    Em especial, a duas companhias em duas outras cidades diferentes da minha, minhas alunas e organizadoras deste livro e das conversas literárias e temas afins que estavam e estão presentes nas lives, nas companhias pelas mensagens de WhatsApp, na minha vida: Akemi e Jaqueline.

    Obrigada a todos/todas os/as que participaram do projeto. Saúde e uma boa leitura.

    Cristiane de Mesquita Alves

    Profa. Dra. Adjunta do Instituto de Letras e Comunicação da Universidade Federal do Pará (ILC-UFPA)

    APRESENTAÇÃO

    Estudos de Literatura e temas afins em tempos de pandemia

    Este livro é uma reunião de estudos sobre a pesquisa literária e temas afins que foram desenvolvidos ao longo do atípico ano de 2020, por meio de lives pela plataforma digital do Instagram.

    São trabalhos resultados das apresentações e das falas dos pesquisadores convidados a participar do projeto intitulado #conversasliteráriaseafinsemtemposdepandemia, ou simplesmente #conversasliterárias. A iniciativa partiu do Centro Acadêmico de Letras (Calet), campus XI, da Universidade do Estado do Pará, por suas representantes discentes Jaqueline Santos e Akemi Miyazaki, em parceria com a professora de Literatura, que, durante o ano de 2019/2020, atuava como professora itinerante da instituição, nesse campus, hoje, professora adjunta da Universidade Federal do Pará, Cristiane de Mesquita Alves.

    A ideia inicial era conversar um pouco sobre os temas literários para suprir, de alguma forma, a ausência de atividades acadêmicas, devido ao fechamento da universidade no cenário da pandemia da Covid-19. Então, foram organizadas duas lives semanais a fim de compartilhar saberes com o público em geral, já que as lives foram transmitidas pelo perfil da professora, com mais de dois mil seguidores, e por ser também um perfil configurado como público.

    O primeiro ciclo das lives ocorreu de maio a dezembro de 2020, entre entrevistas com pesquisadores, escritores, resenhas e comentários acerca de diferentes livros, em especial nos meses de setembro (#setembroamarelo), mês em que as atividades foram direcionadas à reflexão e prevenção do suicídio; outubro (#literaturainfantojuvenil), com leituras destinadas a crianças e adolescentes; novembro (#consciêncianegra), com entrevistas com representatividades negras na Literatura e na Música; e dezembro (#100anosclaricelispector), mês voltado a falar da vida e da obra da escritora ucrano-brasílica que, em 10 de dezembro de 2020, completaria cem anos de nascimento.

    As lives ocorreram frequentemente entre as segundas e sextas-feiras, nos horários entre o vespertino e noturno – dependendo da disponibilidade do participante/palestrante. Os vídeos estão disponíveis no IGTV do Instagram @cris.mesquita.52. Ao todo, do primeiro ciclo, foram 65 lives (entre conversas sobre a pesquisa literária, histórica, entrevistas com participação docente e discente, além das resenhas de livros comentadas). Agora, nesse livro, o telespectador terá a oportunidade de ler algumas das falas que foram gentilmente organizadas em capítulos de livros por alguns dos professores, pesquisadores, participantes desse momento de compartilhamento de experiências acadêmicas, durante o caos dessa pandemia que tanto sensibilizou, causou dor e perdas a todos.

    Este livro, então, objetiva registrar – além das falas gravadas no IGTV – as discussões dessas conversas literárias e temas afins.

    Na primeira parte dessa coletânea, a pesquisadora da Universidade da Amazônia (Unama) e bolsista da Capes, Camila Rodrigues Bastos, apresenta a Literatura de várias escritoras de Literatura Africana no estudo denominado A escrita feminina africana: entre versos e prosas.

    No segundo estudo, A Literatura e a recepção de Luís Guimarães Júnior no contexto literário carioca da segunda metade do século XIX, os pesquisadores da Universidade Federal do Pará (UFPA), Rogerio Pereira Borcem e Juliana Maia de Queiroz, abordam uma apresentação do escritor Guimarães Júnior, contextualizando suas obras na Literatura Brasileira do XIX.

    No terceiro capítulo, A Literatura viral e outras doenças na História, os pesquisadores Caio Gomes Carneiro – historiador e professor da Seduc (PA) – e a professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cristiane de Mesquita Alves, traçam um percurso das referências dos vírus e outras doenças na História e na Literatura por meio de exemplos nas obras literárias.

    Para a quarta pesquisa, a professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Cristiane de Mesquita Alves, traz uma leitura do feminismo nas figurações da personagem de Dom Casmurro, no capítulo Capitu, a feminista de Machado.

    No quinto capítulo, Entre o trânsito da escrita e o devir da trajetória: conversas interamericanas, a professora da Universidade Federal do Pará (UFPA), Ezilda Maciel da Silva, expõe, em uma discussão comparativista, os percursos americanos das figurações das mobilidades culturais nas obras de José María Arguedas, Milton Hatoum e Dany Laferrière.

    Zilene dos Reis Maciel, discente do curso de Letras da Universidade do Estado do Pará (Uepa), campus XIV, compartilha com o leitor algumas experiências de viver no Quilombo, descritas no sexto estudo, Histórias e vivências no Quilombo em Moju.

    No sétimo capítulo, Inglês de Sousa, a visão da crítica, o pesquisador, escritor, professor da Seduc (PA) e produtor de conteúdo cultural, Paulo Maués Corrêa, apresenta um recorte de seus estudos acerca de um dos maiores escritores da Literatura, Inglês de Sousa.

    Para o oitavo, Interpretação: do social ao individual em A hora e vez de Augusto Matraga, o pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), Antonio Daniel Félix, traz determinadas contribuições da crítica em torno da obra de Guimarães Rosa, recorte de sua dissertação de mestrado.

    Já no nono capítulo, o poeta, professor e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), Adriano Nascimento Silva, discorre sobre seu fazer poético em seu livro que proporcionou a conversa: Letras e rimas: a escrita entre-discursos.

    Na décima conversa, Narrativas orais em poéticas de terreiro: perspectivas educacionais, a professora e pesquisadora do doutorado da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Monise Campos Saldanha, conta exemplos de narrativas poéticas orais de matriz africana.

    A décima primeira pesquisa, O Protagonismo de Eneida de Moraes, a professora da Seduc (PA) e pesquisadora Mirna Lúcia Araújo de Moraes conversa sobre a obra e a vida de uma das maiores escritoras paraenses: Eneida de Moraes.

    Representações da(s) masculinidade(s) no discurso literário brasileiro: algumas notas é o décimo segundo estudo dessa coletânea, que registrou, na escrita, as lives, de autoria do professor, pesquisador da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), Paulo Valente.

    Outra pesquisadora que trabalhou com as representações e representatividades foi a professora da Seduc (PA), e pesquisadora da Universidade da Amazônia (Unama), Joyce Cristina Farias de Amorim, autora do décimo terceiro capítulo: Representatividade e empoderamento em Quarto de despejo, de Carolina de Jesus: o (não) lugar de uma mulher negra.

    Servidão na Floresta: Euclides da Cunha e a Literatura de denúncia na Belle Époque Tropical foi o texto escrito a partir da conversa Euclides da Cunha na Amazônia para compor a décima quarta temática desse livro, desenvolvida pelo professor da Semed (MA) e pesquisador da Universidade Federal do Pará (UFPA), Luis Fernando Ribeiro Almeida, a respeito dessa particularidade da obra de um dos maiores nomes da Literatura pré-moderna do Brasil.

    E para fechar por hora, a décima quinta conversa deste registro de falas das lives do #conversasliterárias, as professoras e pesquisadoras da Universidade da Amazônia (Unama), Danuta Leão e Ivana Oliveira, assinam a pesquisa Youtube mirim: mídia e publicidade, um recorte da pesquisa doutoral da primeira pesquisadora, sob a orientação da segunda.

    Agradecemos a todos e a todas que participaram ao longo desses meses de pandemia em nossas lives de Literatura e temas afins, e esperamos contribuir de alguma forma para o aprendizado de todos que se envolveram nesse projeto. Desejamos saúde, vacinas para todos e dias melhores para todos nós, e lamentamos profundamente as perdas que todos nós tivemos, direta ou indiretamente, nesse tempo sombrio de pandemia.

    Obrigada e boa leitura.

    Cristiane de Mesquita Alves

    Maria Jaqueline Santos da Silva

    Thayanne Akemi Miyazaki Feitosa

    (As organizadoras)

    CAPÍTULO 1

    A ESCRITA FEMININA AFRICANA: ENTRE VERSOS E PROSAS

    Camila Rodrigues Bastos

    Introdução

    No dia 31 de agosto de 2020, a live intitulada A escrita feminina: entre versos e prosas refletiu sobre a escrita feminina africana com base em algumas autoras e o recorte de suas obras. O diálogo com Paulina Chiziane foi desenvolvido a partir da análise de fragmentos dos romances Niketche e um breve resumo da obra Eu mulher... Por uma nova visão de mundo (2018). Foi realizada uma pequena abordagem literária e histórico-social, refletindo questões como subjetividade feminina, poligamia, casamento arranjado, descolonização da língua e do corpo feminino e debates socioculturais, políticos e literários.

    No romance Nikeche: Uma história da poligamia (2004), a intriga narrativa gira em torno do conflito vivenciado pela protagonista que questiona a infidelidade do esposo mediante a uma cultura poligâmica. Na construção do enredo, existe um embate entre tradições culturais moçambicanas, identidade étnica, e, por outro lado, submissão da mulher perante essas mesmas tradições que também sofrem influências da matriz colonial ocidental. Representar as fraturas socioculturais decorrentes da colonialidade foi tarefa da autora a partir de sua escrita que materializa as múltiplas realidades de Moçambique. As desigualdades de gênero também foram ficcionalizadas na narrativa, assim como na obra de Buchi Emecheta intitulada Cidadã de segunda classe (2018). Nela, as relações entre sexo e raça são fundamentais para a análise, haja vista que essas questões imbricadas resultam em objetificação do corpo feminino, conforme retratado no romance em questão. As representações do racismo, da xenofobia e das desigualdades de gêneros são materializadas a partir da escrita de Buchi Emecheta em sua obra autobiográfica.

    Além disso, a rememoração da escritora nigeriana Chimamanda Ngozi Adichie foi realizada a partir da citação dos livros No seu pescoço (2010) e O perigo de uma história única (2019),, cujos temas buscam subverter os modelos civilizatórios ocidentais e a construção das colonialidades do poder, do saber e do ser. Nessas obras, a desconstrução epistêmica tornou-se a base que fundamentou a transgressão da escrita e das brechas históricas herdadas pelo colonialismo.

    Por fim, a escrita de Ayòbámi Adèbáyò também foi retratada com o romance Fique Comigo (2018). Na narrativa, a protagonista Yejide se depara, a princípio, com um grande problema: a impossibilidade de gerar filhos. A protagonista vivencia o preconceito e a pressão dos sogros que se sustentam na tradição patriarcal para conceder uma segunda esposa ao marido de Yejide. Porém, o debate sobre a maternidade da mulher negra ganha diversas nuances quando adentramos na história. Observa-se que a maternidade se torna transgressora no lar da mulher negra americana, vítima da escravização das mais diversas formas. Antes, essa mulher era impedida de cuidar dos próprios filhos quando assumia a função de mucama, ama de leite e escrava das lavouras, entretanto, quando passa a cuidar do próprio lar e da própria família, ela desconstrói as estruturas de poder em que apenas a mulher branca e burguesa possuía direitos à maternidade.

    Por outro lado, no cenário de muitos países africanos, como a Nigéria, a maternidade pode representar um peso para a mulher, conforme observado no romance Fique Comigo, em que a mulher estéril é considerada maldita, doente, haja vista que a associação simbólica e metafórica da mulher aos ciclos da natureza se faz presente em todas as culturas do mundo, pois o feminino associa-se à terra-mãe, mas, ao mesmo tempo, pertence simbolicamente ao reino dos mortos, já que em algumas mitologias ela pode habitar em territórios profundos. Assim, é possível inferir que, para muitas sociedades, a gravidez é um destino biológico das mulheres, assim como a terra, obrigatoriamente, deve dar frutos. A associação entre mulher-terra-mãe é uma metáfora que se expandiu em todas as culturas do mundo, por isso, a esterilidade feminina seria sinônimo de maldição e doença para esses povos.

    A pouca ênfase dada à sexualidade feminina – em muitas culturas do mundo – é tema-chave dos romances das escritoras africanas, uma vez que nessas narrativas o corpo-texto busca materializar a subjetividade da mulher silenciada pela cultura falocêntrica. Em Niketche, a partir do diálogo entre as personagens, estabelece-se um debate sobre os direitos reprodutivos e sexuais femininos, tendo como base as estruturas tradicionais do país e suas transformações com o passar dos séculos.

    Desse modo, a seguir, serão apresentadas características fundamentais das obras em análise, tendo em vista o caráter transgressor dos romances, cujas escritas são de autoria feminina.

    Análise das narrativas

    Os escritos das autoras africanas retratadas na live apresentam predominantemente personagens femininas que buscam transgredir a posição da mulher no entrelugar do discurso, tornando-as sujeitas do próprio discurso, tendo em vista que a mulher é, segundo Engelmann (1996, p. 18), marcada falicamente pela imagem do homem e do marido sócio-simbolicamente. Nesse contexto, Luce Irigaray (1977; 1985 apud Bamisille, 2013, p. 41) afirma que a escrita feminina é uma construção subversiva que evolui no lastro do discurso patriarcal para miná-lo e modificá-lo progressivamente, almejando patentear uma linguagem diferente no discurso vigente.

    Nesse contexto, a escrita de autoria feminina ultrapassa as notações líricas, poéticas, memorialistas ou epistolares, e hibridiza esses diversos gêneros. Lucia Castello Branco (1998) destaca que esses textos ressaltam, principalmente, questões como maternidade, o próprio corpo, o espaço do lar e marcas do discurso memorialístico e autobiográfico. São escritos mais intimistas e com tom predominantemente oralizante. Na live, podemos analisar brevemente a escrita de Paulina Chiziane, dando ênfase à obra Niketche. Nela, o tom oralizante é marca registrada, na medida em que a autora faz amplo uso do discurso poético hibridizado à prosa em seus romances. O uso de uma linguagem intimista e autobiográfica também é marca registrada desse discurso, que metaforiza o corpo feminino na escrita, por meio da manifestação do corpo como transgressão e manifestação do poder feminino. Cixous (1993) afirma que, por meio da escrita, a mulher pode subverter essa posição, materializando carnalmente o que pensa e expressando, por meio do seu corpo, um discurso:

    Todo mundo sabe que existe um lugar que não está obrigado econômica, nem politicamente a tanto desprezo e a tanto compromisso. Que não está obrigado a reproduzir o sistema. É a escrita. E se há um outro lado que pode escapar à representação infernal; está ali, no lugar que se escreve, onde se sonha, onde novos mundos são inventados. Neste lugar, pego meus livros, abandono o espaço real colonial e transcendo. (Cixous, 1993, p. 26)

    Nas narrativas de Chiziane, o corpo revela a dimensão cultural e subjetiva, traduzindo-se como um corpo-texto, marcado por cicatrizes e contradições. Esses corpos conciliam identidade, subjetividade e alteridade, uma vez que Rami dialoga com as outras esposas de Tony e, juntas, chegam a um acordo, apesar das contradições entre elas. No romance Niketche, Rami, narradora-protagonista, trabalha semanticamente conceitos considerados tabus pela sociedade em geral. Nesse sentido, Paulina Chiziane transfigura, por meio da protagonista Rami, as diversas problemáticas vivenciadas pelas mulheres moçambicanas, questionando temáticas tabus como nudez, poligamia e sensualidade feminina. Por intermédio de seu discurso, ela

    Chama a atenção para o corpo traindo o legado de repressão e negação que nos foi transmitido. Mas os nossos antecessores brancos eram igualmente ávidos por negar o corpo [...] a potência erótica não se limitava ao poder sexual, mas incluía a força motriz que impulsionava todas as formas de vida de um estado de mera potencialidade para um estado de existência real. (Hooks, 2010, p. 255)

    O romance de Paulina Chiziane é híbrido, pois usa os recursos da paródia, entrecruzado com pequenas histórias. Nele, há uma intertextualidade paródica. O jogo intertextual em Paulina é paródico, pois, além de ser um discurso duplo, inverte cânones consagrados tanto da cultura moçambicana, como da ocidental (Miranda; Secco, 2013, p. 108). Desse modo, a paródia se realiza com base no diálogo com contos da literatura

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