Crónicas do Desassossego
De Duarte Baião
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Crónicas do Desassossego - Duarte Baião
Prefácio
Tempos houve, e nem são assim tão distantes, em que o Jornalismo tinha mãos e cérebros suficientes para cumprir uma das suas mais nobres funções: informar com rigor, respeitando os leitores e convidando-os a saber mais sobre temas, lugares e, acima de tudo, pessoas. Porque essa é a essência do trabalho jornalístico – sem pessoas a quem nos possamos dirigir, o Jornalismo deixa de fazer sentido. Nessa altura, por meados dos anos 90, no número 23 da Travessa da Queimada, ainda hoje a morada da redação do jornal A Bola, reunira-se um misto de nomes consagrados e de jovens que ansiavam por oportunidades. Apaixonados pela escrita e por Desporto, uns eram fundamentais para a formação de uma opinião inteligente e equilibrada; os outros viam, ouviam, aprendiam e tentavam traduzir em textos os novos conhecimentos. Foi aí que conheci o Duarte.
Não foi preciso passar muito tempo até percebermos não apenas a sua qualidade jornalística, mas, desde logo, os múltiplos argumentos de um ser humano invulgar, apimentado com um sentido de humor bem peculiar, ousado e oportuno. Aos poucos fomos tendo oportunidade de construir uma amizade que, apesar do tempo e da distância, apesar dos caminhos separados entretanto percorridos, não só perdura como tem sido reforçada. Prova disso é este prefácio que muito me honra escrever, procurando sintetizar em palavras o modo como age um coração da dimensão do Universo.
Neste livro de estreia, a identidade do Duarte está bem evidente. Embora tenha deixado o universo jornalístico, o seu olhar e abordagem aos assuntos permanecem influenciados por essa vertente da sua vida. Atrevo-me a dizer que essa é uma das marcas que o Jornalismo deixa em nós: façamos o que fizermos, podemos deixar a prática jornalística, mas a perspetiva analítica, a forma de olhar, a vontade de saber mais, a curiosidade e o sentido solidário nunca deixam de estar dentro de nós. A voz que está na escrita do Duarte Baião faz-se dessa mescla de ser certeiro sem resvalar para a ofensa; suscitar a nossa reflexão sem nos aborrecer; convidar-nos a olhar várias vezes antes de tomarmos uma decisão; avaliar com precisão sem cair na tentação do julgamento obtuso e banal; escrever com o coração, ver com olhos solidários e transformar estas páginas num lugar em que cabemos todos. Este é um livro de inclusão, ninguém aqui fica para trás. E, claro, ninguém que o leia pode dizer que sai ileso. Porque cada palavra escrita tem o peso e a profundidade necessários, nem mais, nem menos.
Quando lemos aquilo que escreve o autor, é muito natural que uma pergunta assalte muitos dos leitores: por que razão demorou tanto tempo a chegar o seu primeiro livro? Podemos procurar os motivos que quisermos, mas, no fim, chegaremos quase sempre a uma conclusão: tudo se resume à palavra oportunidade. Num mercado livreiro que, em condições normais, já é tão limitado, os tempos estranhos da pandemia trouxeram degradação e devastação generalizadas. Se correr riscos não é a condição habitual das editoras, no cenário atual essa questão ainda mais se acentuou. As apostas são feitas pela certa, com calculismo e num espaço muito reduzido, porque, nesta fase em que vivemos, escasseiam os leitores, a atividade está demasiado condicionada pelas regras de mobilidade reduzida que a ameaça da Covid-19 impôs e nem mesmo a chegada das vacinas implica uma solução de longo prazo à vista.
Mas estou a desviar-me do mais importante. Fundamental é escrever sobre o Duarte e falar do modo caloroso como envolve os leitores em cada frase escrita. Aqui não há politicamente correto, há análises desassombradas e propostas que nos surpreendem. Não precisamos de ter receio de voltar a página, ele lá estará para conduzir-nos com uma escrita segura, sensível, por vezes até ingénua, mas nunca banal ou desnecessária. Não exagero quando escrevo que, nestes tempos de tanta solidão, distanciamento e egoísmo, é imprescindível ler este autor para quem o outro, ou melhor, os outros estão sempre em primeiro lugar. Crónicas que são serviço público – é disso que se trata aqui. E vai valer sempre a pena voltar a estas páginas, porque uma leitura só não chega. Não porque seja entender o que vão ler a seguir, mas porque estes textos são como os bons filmes e, de cada vez que a eles voltamos, elementos novos serão encontrados. Confiem em mim, porque essa é a experiência que tenho neste caso e nas notícias e reportagens com a assinatura do Duarte Baião.
Na epígrafe do seu livro Ensaio sobre a Cegueira, José Saramago escreveu: Se podes olhar, vê. Se podes ver, repara.
Esse convite está expresso de forma eloquente neste livro de crónicas do Duarte Baião. Ainda bem para nós, porque ficamos todos a ganhar. Já espero pelo segundo livro, seja qual for o género ou estilo. Se é escrito pelo Duarte, só há uma conclusão a tirar: é imperdível!
Paulo Jorge Pereira
Jornalista e Escritor, autor de
«Filhos da Primavera Árabe» e de «Murro no Estômago»
NÃO SEI SE SABES AO QUE ME SABES
Não sei se sabes que os teus lábios e os meus se encaixam como duas peças de Lego, aquelas peças pequeninas com que o filho que ainda não tivemos jogará no tapete da sala – e ele fará todas as construções impossíveis que lhe saírem das mãos, num silêncio de olhos escuros como azeitonas. Não sei se sabes que o cheiro da tua pele, que encontro intenso na curva do teu pescoço com a linha do ombro esquerdo, me leva para o sossego da casa dos meus pais, para aquele cantinho em que eu dormia, para lá das cortinas verdes e pesadas que faziam de parede do meu quarto, e no qual só deixava entrar os meus sonhos, os meus demónios e as minhas revistas de mulheres nuas. Não sei se sabes que o teu abraço quente me lembra o sol a bater-me na pele depois de um mergulho no mar gelado da minha adolescência, e treme-me o queixo, afundo os pés na areia morna, limpo o ranho na toalha de turco rijo e rasca – arrepio na pele, posso até adormecer feliz. Não sei se sabes que a largura do teu sorriso só encontra par no voo elíptico das andorinhas que passavam rasantes e estridentes à janela da minha sala – e nele cheira-me a árvores com frutos e ao empadão que era curto para todos mas que nos fazia felizes. Não sei se sabes que quando te pego pela mão, todas as crianças famintas do mundo têm comida e sorriem pela primeira vez, e as mães todas têm de novo leite nas mamas, e os pais voltam a ter calor nos braços, usam-nos finalmente para proteger e pegar ao colo. Não sei se sabes que a frescura dos teus passos apressados sabe ao Fizz de limão que eu comprava com as moedas de escudo que sobravam da ida ao pão pela manhã – doze carcaças de lenha, se não houver pode ser das outras. Não sei se sabes que o sabor dos teus mamilos é uma sombrinha de chocolate roubada em fuga à mercearia lá do bairro - sabem a vitória, sabem a pecado e aceleram-me o coração. Não sei se sabes que quando escorrego para dentro de ti volto a ver cincos, apenas cincos à frente de todas as disciplinas na pauta da escola, e sou de novo perfeito, indestrutível e imaculado. Não sei se sabes que o redondo das tuas nádegas, em que afundo os dedos e as unhas, é algodão doce numa noite de carrosséis em Junho, o estômago a subir à boca no looping da montanha russa. Não sei se sabes que quando digo que és tudo para mim a minha garganta prolonga o golo do Éder na final do Europeu, e há ali um par de olhos novos devolvidos a um cego, a liberdade reencontrada após uma vida inteira na prisão. Não sei se sabes que te amo. Mas no dia em que souberes que te amo eu poderei morrer descansado para depois renascer em nós. E eu vou ser criança de novo, vou