Crescer é Morrer Devagarzinho
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Magali Lopes Endruweit
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Crescer é Morrer Devagarzinho - Laura Peixoto
Pessoa
ANOTAÇÕES DE BLOQUINHO
Vamos nos organizar: você é a escritora. Eu, a Narradora.
Quer confundir o leitor? Vão pensar que é louca.
Você é o Instrumento. Eu sou a Ideia. Algo como I & I & Cia.
Absurdos durante a insônia noite a noite. E daqui a uma hora, a passarinhada acorda na maior animação. Preciso dormir. Pensamentos e trinados irritam.
Como escrevinhadora, a estratégia é ignorar a Narradora, essa entidade onisciente e castradora. Quem falou isso?
Depois de longos e inseguros minutos, a hesitação entre abandonar o covil morno e o desjejum no ermo da cozinha. Ainda confiro o celular embaixo do edredom. Quatro e meia da manhã. De barriga vazia não consigo ordenar as ideias e os instintos.
Como Narradora, posso expor os meus preconceitos e os dos outros, os provocadores. Posso me prostituir, virar ladra, ter ou ser uma amante. Posso participar da Associação Atlética do Bom Botox ou da Sociedade dos Roncadores Eméritos. Você não. Como escritora, passa os dias em frente a esse computador de segunda geração. Ou dependurando os puídos no varal. Uma vidinha to-tal-men-te medíocre. Se eu revelasse aqui tudo o que sei, ninguém acreditaria.
Com a faca de pão suja de mel e nata, degolo a Narradora.
E feito uma Salomé perambulo pela casa silenciosa, de onde desejo secretamente fugir.
CRESCER É MORRER DEVAGARZINHO
Toma distanciamento… – ecoa nos meus ouvidos o conselho de um conceituado escritor durante uma conspiração literária. É tão difícil.
Crescer também é separar da infância e visitá-la no seu avesso. Parece que morre a criança dentro da gente para dar vida ao adolescente chato, ao adulto ambicioso, ao velho medroso. De repente me vejo cruel na narrativa que embaralha os temas secretos da minha própria adolescência.
O que faz um escritor para iludir o leitor da veracidade dos fatos de seu romance, novela ou conto?
Alguns usam locais que realmente existem, situações abordadas na mídia, nomes conhecidos, depois bordam tudo com a voz pessoal de sua alma ficcional. Já fiz isso nos meus es-críticos. Porém, quando mostrei para alguns prezados, quase unanimidade: vai dar confusão. E não houve argumento conciliatório. Precisei mudar nomes e até o título. Com isso prolonguei o inverno da minha literatura e botei para hibernar na gaveta. Depois, quem lê livros ainda? Dizem que existem mais escritores do que leitores nesses tempos de eublog e Facebook. E outra, tire a média por você que ainda lê jornal e revistas – quantos livros comprou no ano passado? E quantos, realmente, leu? E que tempo sobra para um livro com tantos filmes bons e novelinhas na tevê Marinho?
Num sebo comprei o romance O cemitério de Praga, que exemplifica bem essa questão sobre realidade e ficção. O escritor e filósofo Umberto Eco misturou sua cultura erudita e verdadeira à narrativa ficcional. Criou o personagem do falsário Simonini e o ajustou em uma história do século XIX em um ambiente real e histórico. Tudo isso é avisado ao leitor na própria orelha do livro.
Eco diz que escrever um romance seria como acompanhar o crescimento de uma criança. Depois que nasce leva dois anos para começar a andar e falar. Nesse meio-tempo é necessário cuidar direitinho dela.
A propósito: não se surpreenda com as primeiras páginas de O cemitério de Praga. Sim, a gente leva um susto. Parece que o escritor se contaminou com preconceitos raciais, antissemitas, antissaxões, antitudo. Descubro em entrevistas que Eco nada mais fez do que compilar clichês de livros escritos logo após a primeira guerra mundial e do próprio filósofo Nietzsche. Normalmente, ele leva seis anos para coletar material, escrever e reescrever suas histórias. Eu, muito mais. Desfiando minhas histórias, ainda estou dentro do prazo de validade. Ou expirando devagarzinho.
Enquanto o romance não sai do forno, exercito crônicas.
A você, que me honra com a sua leitura, a minh’alma e os instintos.
ANOS DE NEON
Quando ainda dona dos meus anos, Porto Alegre se mostrava como um campo magnético atraindo a limalha ao redor. Feliz, deixei a casa de meus pais e embarquei num ônibus para tentar o vestibular. Acabei na Cidade Baixa, naqueles idos sem charme maior do que um teatro fuleiro rastreado por um pessoal alternativo que não tomava banho e – sacrilégio! – as meninas nem sequer depilavam os sovacos. Um assombro para meus olhos e todos os sentidos recém-chegados do interior. No bairro ainda havia casas de telhado e calha, e com grades à sombra de vários edifícios. No muro de um, a pichação eu tenho o maior medo de ser normal. O autor, muito consciente, concedeu o crédito a John Lennon. Nunca esqueci a frase, e olha que a minha memória contém os mesmos ingredientes de um pudim. Dois anos depois casei, tranquei a faculdade de jornalismo e fui criar o meu rebento. Com imposições maternais aos 20 anos, quase pirei com o medo de tanta normalidade.
No finalzinho dos anos setenta, acompanhei pelo Correio do Povo: a porta do aeroporto se abria para receber a turma do exílio. Não tomei muito conhecimento, porque amamentava e fervia fraldas num tacho com água e vinagre para que João não sofresse com assaduras. Sem tempo para maiores solidariedades e apreensões políticas, curtia todas as noites a novela Dancin’Days. Naquela época, a emissora global conseguira a façanha de empilhar toda a família em frente à tevê, encorajando os telespectadores: use meias de lurex, use meias de lurex, use meias de lurex. Na sala os maridos babavam por Júlia Matos e, no banheiro, rendiam homenagens espermáticas a Sônia Braga.
Com os horizontes escandinavos, a carreira literária de Fernando Gabeira desbundou na volta da Suécia, onde se abrigara. Logo comecei a ler tudo que publicava. Devo minha irreverência e politização ao jornalista. E à revista Nova, minha educação sexual.