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Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre: Arqueologia dos Conceitos
Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre: Arqueologia dos Conceitos
Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre: Arqueologia dos Conceitos
E-book551 páginas8 horas

Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre: Arqueologia dos Conceitos

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Sobre este e-book

A passagem da fenomenologia à psicologia fenomenológica na obra do filósofo francês Jean-Paul Sartre é objeto de investigação do pesquisador Gustavo Fujiwara. Para essa lida, Fujiwara analisa conceitos presentes em La transcendance de l'Ego (1937), Esquisse d'une théorie des émotions (1938), L'Imagination (1936) e L'Imaginaire (1940)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de mar. de 2020
ISBN9788547343354
Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre: Arqueologia dos Conceitos

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    Pré-visualização do livro

    Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre - Gustavo Fujiwara

    Editora Appris Ltda.

    1ª Edição - Copyright© 2019 dos autores

    Direitos de Edição Reservados à Editora Appris Ltda.

    Nenhuma parte desta obra poderá ser utilizada indevidamente, sem estar de acordo com a Lei nº 9.610/98.

    Se incorreções forem encontradas, serão de exclusiva responsabilidade de seus organizadores.

    Foi feito o Depósito Legal na Fundação Biblioteca Nacional, de acordo com as Leis nºs 10.994, de 14/12/2004 e 12.192, de 14/01/2010.

    COMITÊ CIENTÍFICO DA COLEÇÃO CIÊNCIAS SOCIAIS

    Para Monica e Sérgio.

    AGRADECIMENTOS

    Figura sempre presente em minhas reflexões acerca da fenomenologia, mestre e professor compromissado com o saber, gostaria de expressar aqui meu reconhecimento, primeiramente, ao professor e amigo Prof. Dr. Alexandre de Oliveira Torres Carrasco que aceitou, há exatos onze anos atrás, orientar-me com extrema generosidade intelectual. Este livro resulta, portanto, da acolhida sensível e paciente de Alexandre. Ainda, não poderia deixar de agradecê-lo pelo primoroso e apurado prólogo que aqui consta. Manibus date lilia plenis.

    Meus agradecimentos mais cordiais ao Prof. Dr. Luiz Damon Santos Moutinho, à Profª. Drª. Izilda Cristina Johanson e ao Prof. Dr. Franklin Leopoldo e Silva, pelas preciosas indicações e sugestões que muito me ajudaram em meu percurso intelectual e acadêmico. Agradeço, também, o Prof. Dr. Vincent de Coorebyter que, de modo tão solícito, enviou-me uma série de artigos fundamentais para elaboração dos temas aqui tratados.

    Agradeço à CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior – pelo auxílio financeiro dado ao projeto do qual resulta a presente obra.

    L’ÉCRIVAIN ET SA LANGUE

    [...] le langage le plus difficile, d’une certaine manière, c’est celui qui veut le plus communiquer: c’est la philosophie.

    (Jean-Paul Sartre)

    Apresentação

    A produção intelectual de Sartre é consideravelmente ampla e abrange uma miríade de estilos diversos: Filosofia, romance, crítica, jornalismo político, teatro, biografia existencial, novela, roteiro de filme, correspondências e Antropologia existencial. Dessa massa considerável, escolhemos para a presente obra seu pensamento filosófico, mais estritamente a Fenomenologia e a Psicologia Fenomenológica. Remontando à pré-história das indagações do jovem filósofo, observaremos que a sua temática essencial, antes de sua opus magnum L’être et le Néant (1943), atém-se exclusivamente ao debate para com a Psicologia de sua época, bem como representa um esforço para a superação da Filosofia dos anos de 1900, sobretudo a Filosofia de Bergson, responsável por instigar e fazer com que Sartre iniciasse seus estudos nessa área do pensamento. Ademais, o interesse pela Psicologia já se deixava entrever no título de seu diploma de estudos superiores, L’image dans la vie psychologique: rolê et nature, inspirado pelas experimentações clínicas e pelos místicos cristãos¹. Privilegiando as obras que vão dos anos 1934 até os anos 1940 – respectivamente La transcendance de l’Ego (1937), Esquisse d’une théorie des émotions (1938), A Imaginação (1936) e L’Imaginaire (1940) –, investigaremos, com base em uma arqueologia dos conceitos, a passagem da Fenomenologia à Psicologia Fenomenológica buscando esclarecer o sentido inaugural da liberdade da consciência até mesmo em situações paradoxais que a ameaçam com uma pretensa passividade².

    Assim, não nos furtaremos a explicitar outros tantos elementos que orbitam o interior dessa vasta transição, quais sejam: I) a leitura sartreana da Fenomenologia de Husserl, sua continuidade e ruptura; II) a radicalização da intencionalidade; III) o aproveitamento desse princípio na Psicologia, bem como os obstáculos advindos da emoção e da Psicopatologia; IV) o reenquadramento do psíquico objeto em psíquico fenomênico; V) a separação definitiva para com a Fenomenologia husserliana com base na temática da matéria da imagem (hylé); VI) a abertura da consciência ao mundo, a irrupção da situação, da realidade-humana e do ser-no-mundo. Em suma, acreditamos que todos esses momentos/conceitos irão fornecer a nós as indicações necessárias para a compreensão do projeto inicial de Sartre, qual seja: a teorização de uma Filosofia da liberdade absoluta, a superação do idealismo e do materialismo mecanicista. Aqui, observa-se que essa liberdade – tópica par excellence do corpus da Filosofia sartreana –, antes de figurar em sentido ontológico, será concebida a partir das estruturas eidéticas fenomenológicas da consciência. Nessa toada, da Fenomenologia à Psicologia Fenomenológica, quais são os conceitos elementares que vicejam ali para que a consciência possa continuar operando com base em um livre movimento de transcendência?

    Em nosso Capítulo 1, buscaremos restituir alguns aspectos da leitura sartreana da Fenomenologia de Husserl: será questão saber quais são as condições fenomenológicas que autorizam a destituir o Ego de sua função transcendental, os motivos que conduzem Sartre a instituir um campo transcendental impessoal, e, em oposição a este, uma região psíquica (transcendência psíquica) produtora de falsas interioridades e de inversão do fluxo real dos vividos da consciência. Ora, observar-se-á, no decorrer desses primeiros passos, que o Ego cumpre, na verdade, uma função de unificação das entendidas psíquicas (ações, estados e qualidades); ele é polo de unificação transcendente. Em paralelo a esse problema, nós visaremos instituir a temática da consciência, iniciada em La transcendance de l’Ego (1937), como modelo, ainda que algumas modificações ocorram ao longo da produção intelectual do filósofo³, para pensarmos uma Fenomenologia capaz de reestruturar o métier teórico e investigativo da Psicologia Clássica, da Psicanálise e das Filosofias Modernas; logo, a definição de uma consciência enquanto translucidez, vazio absoluto, servirá como bússola teórica para a compreensão dos mecanismos da Psicologia Fenomenológica. Por conseguinte, urgirá, nesse nosso primeiro capítulo, aclimatar o leitor a essa atmosfera fenomenológica da qual Sartre retira de Husserl uma ideia fundamental: a intencionalidade da consciência.

    Explicitada, en passant, a maneira pela qual o filósofo francês acolhe a Fenomenologia husserliana, passaremos, então, à tematização da Psicologia Fenomenológica com base na consciência emotiva. Nesse Capítulo 2, nosso alvo versará no embate da Fenomenologia com a Psicologia e a Psicanálise, na redefinição do psíquico e, sobretudo, em uma possível temporalidade da consciência até então ausente de TE. Com uma crítica pontual às Psicologias de sua época, Sartre se esforçará para definir a emoção não como um simples mecanismo afetivo, mas enquanto um modo de existência da consciência, uma totalidade sintética; a consciência irrefletida passa a ser agora consciência do mundo, é um ser-no-mundo em situação. Definindo a emoção como uma consciência suis generis, portanto, dotada de intencionalidade, como deveremos compreender o fenômeno de autoaprisionamento (captivité) que essa consciência engendra? Seria Esquisse d’une théorie des émotions o lugar para pensarmos uma possível passividade na consciência? De acordo com nossa leitura, mesmo uma consciência emotiva, autoaprisionada, guarda e mantém sua liberdade, pois será concebida como um processo ativo de autoafecção. Aliás, é só por meio dessa liberdade eidética, conjugada com sua situação e seu ser-no-mundo, que a consciência possuirá as condições necessárias para refugiar-se do mundo, para negá-lo; daí que isso significa em primeiro lugar, teoricamente, que a emoção não pode ser confinada à má-fé e à impotência; em seguida, praticamente, que a emoção, em Sartre, é uma paixão e potência da liberdade (CORMANN, 2011, p. 115). Em resumo, esse capítulo segundo pretende avançar na definição da Psicologia iluminada pela démarche fenomenológica ao mesmo tempo em que testa os possíveis limites de uma liberdade absoluta da consciência. Imbuídas, ainda que não totalmente, por uma atmosfera heideggeriana, as análises da obra dos anos de 1938 representarão um passo a mais na paulatina separação entre Sartre e a Fenomenologia transcendental de Husserl.

    Na esteira do que dissemos nos parágrafos anteriores, passamos ao nosso Capítulo 3, que tem como eixo teórico principal os problemas em torno da concepção husserliana da matéria da imagem mental (hylé). Como opera essa nova variação eidética da consciência, ou seja, a consciência imaginante? Se, até TE, as análises fenomenológicas estavam voltadas para o campo transcendental, isto é, para a presença do objeto em face da consciência, em A Imaginação, o objeto de análise será a imagem como modo específico que a consciência imaginante possui para apreender uma presença com base em uma ausência. O que deve ser, nessa toada, uma consciência para que ela possa imaginar um X qualquer que não está nem realmente e nem presentemente dado no campo fenomênico? Levando a cabo uma desconstrução teórica das psicologias e filosofias seiscentistas e setecentistas, Sartre espera renovar a teoria da imagem com uma análise eidética: a imagem deixará de ser uma mera sensação renascente ou enfraquecida, um simulacro da coisa (teorias que são enquadras sob o nome de metafísica ingênua da imagem); logo, será imperativo discutir a natureza mesma do psíquico para que possamos fundamentar uma nova Psicologia. Como poderíamos prever, a Fenomenologia de Husserl emergirá na qualidade de grande acontecimento no que diz respeito à renovação dessas teorias ingênuas da imagem-coisa. Para o autor de A Imaginação, o postulado de uma consciência vazia e liberta de conteúdos deve, igualmente, ser empregado quando das análises acerca da consciência imaginante. Daí seu interesse na imagem: não as concebemos comumente como coisas na mente? Esse postulado não encarnaria, com perfeição, a funesta ideia de conteúdos mentais? No entanto, se o fenomenólogo alemão soube trazer à tona uma verdadeira teoria da imagem, por outro lado, notaremos uma divergência entre ele e Sartre no que diz respeito à matéria (hylé) da imagem em confronto com a matéria perceptiva. Outrossim, se o mestre alemão deixou as portas abertas para uma nova teoria do imaginário, ele, contudo, falha na distinção entre percepção e imaginação, sobretudo quando operada a redução fenomenológica que nos fornece um noema irreal. Uma vez operada a redução, como distinguir a árvore em flor que percebemos do centauro que imaginamos? Esse terceiro capítulo é fundamental quanto à restituição do embate entre a Fenomenologia francesa e a alemã, além de preparar o terreno para o capítulo seguinte. Desse modo, é imperativo que novas investigações sejam realizadas para que as matérias da percepção e da imaginação não se confundam.

    Alçados nas indicações abertas pelo terceiro capítulo, iniciaremos o Capítulo 4: à guisa de L’Imaginaire, nós separaremos o joio do trigo, ou seja, a percepção da imaginação. Vários elementos serão elencados ali para que a imagem mental seja definida como analogon da coisa. Sartre irá referir-se a hylé, quando animada por uma intenção imaginante, enquanto um analogon, um equivalente da percepção. Destarte, a dinâmica da imaginação versará exclusivamente no movimento transcendente que a consciência realiza para apreender o objeto ausente. Esse modus operandi explicitado, passaremos finalmente ao núcleo duro da obra em questão, qual seja: a patologia da imaginação (Psicopatologia fenomenológica). Como a Psicofenomenologia poderia iluminar e trazer algo de novo à Psicopatologia? Novamente trataremos das embaraçosas questões sobre o autoaprisionamento da consciência, donde a velha questão ressurgirá: há ou não há passividade nessa consciência mórbida? Mais ainda, o doente seria ativo ou passivo diante de suas alucinações? Para explicitarmos esse imbróglio, recorreremos à novela La chambre (1939) com o intuito de firmarmos uma posição diante dessas questões. Realizando uma distinção entre irreal normal e irreal patológico, além de problematizarmos o alcance dessa liberdade eidética, procuraremos entender os motivos que conduzem o indivíduo a preferir o imaginário – irreal – ao invés do real. Tecidas essas considerações, a última parte de nosso Capítulo 4 colocará em perspectiva todos os textos analisados sob o ponto de vista da categoria do mágico, expediente teórico usado por Sartre para a compreensão das atividades irracionais da consciência, afinal:

    [...] o registro do pensamento mágico (do pensamento mítico e mesmo místico) é onipresente nos textos fenomenológicos de Sartre e constituirá sempre para ele um modo privilegiado da inteligibilidade das relações com o mundo, com os outros e consigo mesmo (CORMANN, 2011, p. 104).

    Na medida em que a categoria do mágico é teorizada por meio de um claro diálogo de Sartre com a Antropologia do início do século XX, sobretudo a de Marcel Mauss e Levy-Bruhl⁴, trata-se de operar, também, uma crítica das tendências idealistas e intelectualistas do pensamento filosófico, opondo a ele uma concepção positiva da magia ao mesmo tempo em que ele submete a racionalidade à prova (CORMANN, 2011, p. 105). N’outros termos, poder-se-ia pensar o sentido da Fenomenologia sartreana (o que implica a recepção da Fenomenologia na França) alçando-nos nesse intercâmbio com as demais ciências humanas em ascensão nos territórios franceses. Por conseguinte, e com base nessa categoria, poderemos mesurar a reorientação da Fenomenologia em uma Psicologia Fenomenológica, além da amplitude do projeto filosófico de Sartre. Do campo transcendental pré-egológico de TE à abertura da consciência ao mundo em IM e ES, urge responder como o homem sartreano é sempre o feiticeiro do homem. Portanto, esta obra pretende esclarecer, ainda que realizando um recorte específico do vasto pensamento do filósofo, a ressignificação fenomenológica e psicofenomenológica dos fenômenos ditos irracionais: como compreender, por meio da dinâmica de uma consciência absoluta e doadora de sentido, o erro, a ilusão, a patologia (doença)? O que significa afirmar que o correlativo noemático de tais operações flerta com a fuga, a negação e, mais tarde, com a nadificação da consciência? É preciso, diante desse arrazoado considerável de questões, que nós nos debrucemos nos textos.

    O autor.

    LISTA DE ABREVIAÇÕES

    A seguir, as siglas que usamos para abreviar, em alguns momentos de nosso texto, os títulos das obras de Sartre (as respectivas edições das obras utilizadas aqui constam na seção Referências).

    Sumário

    Prólogo

    Quem é do mar não enjoa 21

    Capítulo 1

    TRANSCENDENTAL & PSÍQUICO:

    O MOMENTO FENOMENOLÓGICO 63

    1.1 Sartre fenomenólogo: a ideia da intencionalidade como

    ideia fundamental da Fenomenologia de Husserl 63

    1.2 O realismo fenomenológico de La transcendance de l’Ego:

    continuidade e ruptura com Husserl 74

    1.3 O Eu transcendental, esfera reguladora de direito ou de fato? 89

    1.4 Campo transcendental e região psíquica, reflexão pura

    e reflexão impura 102

    1.5 Rumo à Psicologia Fenomenológica 126

    Capítulo 2

    PSICOLOGIA E REALIDADE-HUMANA: ESBOÇO PARA UMA PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DAS EMOÇÕES 129

    2.1 O projeto da Psicologia Fenomenológica em Esquisse:

    do campo transcendental puro ao campo antropológico eidético 129

    2.2 Teorias psicológicas clássicas à luz da Psicofenomenologia de Sartre:

    por uma nova Psicologia das essências e das significações 142

    2.3 Sartre crítico da teoria psicanalítica: por uma significação consciente 149

    2.4 A Psicologia Fenomenológica como detalhamento das aventuras

    da consciência no mundo 155

    2.5 A crença da consciência emotiva e o papel do corpo 169

    2.6 As dificuldades na leitura de Esquisse.

    Passividade e espontaneidade,consciência irrefletida e consciência

    reflexiva sob a mira da historiografia sartreana 173

    2.7 Últimas observações acerca de Esquisse: a temporalização da consciência e o mundo cindido em dois 187

    Capítulo 3

    PSICOLOGIA FENOMENOLÓGICA DA IMAGINAÇÃO:

    A DESCRIÇÃO E A FIXAÇÃO DA EIDÉTICA DA IMAGEM 197

    3.1 A inauguração da Psicologia eidética e o momento da análise crítica 197

    3.2 Teorias clássicas da imagem versus Fenomenologia:

    a Psicologia na senda das filosofias seiscentistas e setecentistas 200

    3.3 O grande acontecimento da Filosofia: a revolução da Psicologia com a Fenomenologia de Husserl 217

    3.4 A crítica sartreana à hylé husserliana 222

    Capítulo 4

    DO IRREAL NORMAL AO IRREAL PATOLÓGICO:

    IMAGEM, OBSESSÃO, ESQUIZOFRENIA, PSICOSE

    ALUCINATÓRIA E SONHO 229

    4.1 Primeiras observações acerca da natureza da consciência imaginante e

    da imagem mental: suas quatro características fenomenológicas 229

    4.2 A matéria da imagem mental (saber, afetividade,

    movimento ou impressões cinestésicas e linguagem)

    e o modo desinencial de aparição do objeto como imagem 239

    4.3 A vida no imaginário: as condutas em face do objeto irreal 253

    4.4 Fenomenologia e Psicopatologia: irreal normal e irreal patológico 266

    4.5 La chambre: o doente serial responsável por seu estado? 288

    4.6 O aprisionamento total da consciência onírica como modelo para a

    compreensão do aprisionamento engendrado pelo irreal patológico 298

    4.7 Do campo transcendental impessoal à abertura da consciência ao mundo:

    esboço de uma genealogia da magia 314

    CONSIDERAÇÕES FINAIS 319

    REFERÊNCIAS 323

    Prólogo

    Quem é do mar não enjoa

    […] a colheita é comum, mas o capinar é sozinho.

    João Guimarães Rosa, Grande Sertão, Veredas.

    Antigamente faz pouco tempo. O adágio, já dito e repetido, aqui e alhures, cai bem a propósito desses passados inusitados, próximos nas medidas do calendário, distantes, porém, no que chamaríamos de tempo lógico. Aqui tempo lógico, expressão um pouco pomposa e quase antipática, significa, muito simplesmente, o esforço específico que se impõe para que se recupere um certo tempo e o objeto desse tempo (sua espessura, por extensão) que ficou para trás, mas muito para trás, a ponto de perder o fio com o presente. O problema é tanto o objeto quanto o tempo de que esse objeto é portador. Não se pode ter um sem o outro e o esforço para alcançar aquele tempo, onde estão as neves de antanho?, exige que se preencha uma distância específica, que não apenas se recupere um nome, que se recupera o sentido e o alcance do sentido desse nome. A imagem de uma distância é a figuração desse amálgama, o tempo e o que nele se deu na forma do que não está mais ao alcance da mão nem ao alcance desse nosso tempo. Esse passado suposto não está simplesmente um pouco mais além ou aquém de nosso presente, ele é sobretudo da ordem daquilo que não se apresenta mais, do não atual, caso aparentemente mais grave, e exige, afinal, um esforço de outra medida de tempo para que se o recupere. A tal distância lógica (ou meramente psicológica e afetiva, se optarmos por um prosaísmo inocente), isto é, sua não atualidade e as consequências disso, pode decorrer dos mais diversos fatores – e não caberia aqui fazer o inventário abstrato, pomposo e quase infinito do que a contingência pode nos trazer de surpresas ou dissabores nas nossas relações com os outros, com as coisas, e com o tempo, de quanto o tempo que passa tem tantos modos diversos de passar, menos ainda, sob esse falso propósito, começarmos a discorrer sobre alguma metafísica do tempo que venha em nosso socorro. A questão pode passar por tudo isso, mas de pronto é mais simples, como é mais simples o nosso propósito: não raras vezes o que passou, assim o fez sem a menor ou sem a devida cerimônia, e o esforço de recuperar esse passado, que mais tangencia o esquecimento do que a memória, não é fácil nem simples.

    Feitas as contas preliminares, o que acaba de ser dito não caberia exatamente como uma digressão, já que abre esta apresentação, falharia igualmente como preâmbulo se não cuidássemos o suficiente das explicações que são exigidas. E assim fazemos, com a devida vênia e com uma justificativa das mais relevante, a nosso juízo. Pois, a apresentação que nos cabe deste importante e belo estudo, agora na forma definitiva de livro, Fenomenologia e Psicologia Fenomenológica em Sartre: arqueologia dos conceitos, de Gustavo Fujiwara, assim como exigiu do autor, igualmente de nós exige que reencontremos esse outro tempo dos conceitos, o tempo por detrás deles e por meio deles, que pouco a pouco o autor diligentemente repertoria, para além do mero tempo lógico do texto, a condição necessária e, na maioria das vezes, insuficiente de alcançá-los, mediante o texto dado – como se o texto dado fosse mero dado. Melhor: em soma complexa, ambição e projeto, o que se pretende reencontrar é aquele tempo, o tempo em que o texto e seus conceitos seriam mais que legíveis, o tempo em que teriam sido atuais. Reconheçamos que atualidade em Filosofia é sempre mais do que suspeita, ainda que não seja de per se indesejável, e não seria a mera atualidade a ser invocada aqui como álibi, o nosso álibi para os elogios ao estudo de Fujiwara ou do objeto que ele diligentemente descreve, porque isso passa ao largo das preocupações propriamente metodológicas do autor. A questão, abusando do jargão, arma-se de outro modo e é prévia: como recuperar não só o conceito, mas o tempo que o conceito irradia quando o assunto pouco a pouco foi relegado a um plano sem tempo, a um descaso em relação a seu próprio sentido, ao plano do esquecimento prosaico? O esforço do autor, que não nos parece menor que o seu problema, responde a isso de uma maneira ótima. É o rigor teórico do trabalho que nos faz olhar para o tempo em que ele se inscreveu. Comecemos por aí.

    Senão vejamos.

    Passadas muitas águas sob a ponte existencialista, e até o nome soa estranho nesse tempo de pós-tudo, os anos Sartre⁵ ficaram aparentemente incrustrados em outra era geológica, de fato, em outra era filosófica que faz às vezes de outra era geológica, e que só se localizaria, com esforço e muito, vale notar, por um meio análogo àquelas análises do corte transversal de uma rocha, em que se pode, a depender do caso, datar quais elementos e de que eras geológicas seus componentes remontam e se incrustam naquele conjunto, e compõem, por assim dizer, na atualidade de um maciço qualquer, uma certa paleta de propriedades cuja propriedade principal é apagar no conjunto o tempo que a formou⁶.

    Em parte, o frenesi – de início bastante involuntário e inesperado para a personagem em questão – dos anos Sartre, tomando tudo, pouco a pouco, como vaga funda e maciça a se aproximar da faixa de areia, polarizou praticamente toda uma geração de intelectuais, e produziu uma hegemonia que, do cume da onda, parecia irresistível, senão irretocável. Era o tempo de ser preferível (muito) de estar errado com Sartre do que estar certo com Raymond Aron, numas das piadas mais correntes da época, levada, aliás, piada da piada, muito a sério. Existência, subjetividade, concreto, tempo, finitude, literatura, crítica, e, logo adiante, política e história, tudo convergia a esse centro de gravidade que era, senão Sartre (duplo empírico e transcendental de si mesmo, óbvio), pelo menos à Filosofia sartreana que traduzia e estilizava otimamente os ares de um tempo. E para sermos um pouco mais diretos, de que tempo? O seguinte: em larga medida o ocaso, senão o colapso do pensamento especulativo médio e mediano da Terceira República Francesa, e com ele o fim do século XIX (o longo século XIX – de 1789 a 1914, conforme uma datação de Hobsbawm⁷). A Terceira República, também conhecida como a república dos professores, vivia seu colapso a olhos vistos e os monumentos que ela colocara de pé ruíam, sejam os acordos e os compromissos de classe diligentemente moldados pela Terceira República, que finalmente neutralizariam uma política revolucionária, e, ato contínuo, tornaram funcional a ideia centrista de uma república não revolucionária, a realização pós 1871 da fantasia da revolução de 1830, seja a Filosofia universitária, efeito de longo prazo da reforma educacional napoleônica, seja a Filosofia bergsoniana, em último desfile filosófico, tudo ruía relativamente, e esse fim de linha poderia ser criticamente posto em perspectiva na forma inusitada da emergência de um novo cogito em situação, renovado na forma, revigorado no conteúdo, brutal e imediato na disposição e na aparência. Enfim, nos modos do que pode ser entendido como uma nova Filosofia do cogito cujo despojamento de qualquer decoro metafísico e mesmo epistemológico (sob certo limites) era efeito de uma crítica e de uma projeto de crítica que se armava contra os antecessores endomingados de uma Filosofia crítica e naturalizada, démodé, e cujos correlatos mundanos poderiam ser identificados com os bons e muitos modos burgueses até então correntes, pacificados e precificados, vale notar, depois de um pouco mais de cem anos de acirrada luta de classes na França, e com a seriedade de funcionário público da Terceira República, com todo sua parafernália técnica e mortificadora que transformaria, em outra aguda tirada sartreana, Descartes no cartesianismo, ardor em técnica, revolução em regime em que a contragosto o primeiro termo não poderia ser reconhecido no segundo, apesar do segundo ser efeito relativo do primeiro. Todas as mediações que esterilizariam o ainda mais antigo e quase esquecido ardor revolucionário dos tempos de antanho (e o que teria paralelo com o ardor jacobino da Primeira República?) em favor das técnicas republicanas das mediações políticas, históricas, psicológicas, sentimentais, literárias etc. etc. etc., entraram em linha de causa. A dramaticidade parece exagerada, mas não convém normalizar o maior debacle da história francesa em séculos, que foi e continua sendo a capitulação de 1940, e que melhor dramatiza o mundo que ruía. A longa guerra que inaugura o século XX (novamente Hobsbawm) foi o fim altamente dramático do século XIX, pois também foi o colapso de um conjunto chave de instituições que só se tornaram amplamente funcionais no fim daquele ciclo histórico de vida.

    Claro que isso não se deu sem sobressaltos, para não dizer claramente, sem traumas, sobretudo nos estertores da Terceira República: a capitulação de 1940, insistamos, o derrotismo de parte do centro e da direita política francesa prestes a abraçar a extrema direita (que vinha tomando corpo desde o caso Dreyfus, provável prenúncio do fim da funcionalidade política e institucional da Terceira República e ganhou corpo definitivo na ocasião do breve e conturbado governo da Frente Popular e de Léon Blum, 1936-1938), esta sim, francamente derrotista, o boicote ao penúltimo gabinete da Terceira República (o último seria já o gabinete da mais completa e vergonhosa capitulação), tudo isso sob o fundo do acirramento da luta de classes e da guerra entre nações no teatro europeu (quo vadis europa?), não só punha a pique todo um modo de vida e de pensamento – […] esse jardim tão calmo em que a fonte de água verte sempre e desde sempre, tínhamos esse outro jardim que nos esperava para as férias de 39, a França das viagens a pé e dos albergues da juventude, que ia de si, como, pensávamos, tal como a própria terra⁸ – como também deu e exigiu, de maneira inesperada, atualidade inédita para o radicalismo antiburguês, inicialmente de conteúdo estetizante e algo arrogante do jovem Sartre, já presente no projeto de A náusea e antecipado de modo circunstanciado e parcial em A transcendência do Ego⁹, que enfim é publicado antes do romance.

    Ora, até aqui recenseamos um pouco, com certo espanto, não só a distância que nos separa desse outro tempo, olhando de onde estamos olhando, e pelo motivo de olharmos de onde olhamos, como igualmente recenseamos algumas condições que tornaram os anos Sartre possíveis. Será essa conjunção de fatores subjetivos e objetivos, indicadas aqui de passagem, que fará às vezes de gatilho e ampliará em definitivo, eis a nossa hipótese, a legibilidade de uma obra que se pretendia de início técnica (lá estava Sartre a nos advertir que o existencialismo é uma Filosofia de técnicos¹⁰), não menos radical por isso, vale dizer, e cuja inflexão teórica decisiva decorreu da aclimatação especial que um conjunto até então modesto de jovens filósofos (em sua maioria) fazia, entre outras tarefas intelectuais que o aparente fim de linha impunha, da Fenomenologia alemã, a Fenomenologia de Husserl, elemento que se torna chave, por assim dizer, para a gramática do debate.

    Para Sartre, essa aclimatação começa em meados dos anos 30 do século passado, a partir do estágio de pesquisa de um ano no Instituto Francês de Berlin (1934), depois da famosa conversa com Raymond Aron e o drink de abricot com o próprio e Simone de Beauvoir, tópica mítico-narrativa já repetida à exaustão. Lá se ia o jovem Sartre estudar a Fenomenologia de Husserl, em Berlin, para falar, em termos filosóficos, claro e por óbvio, das coisas elas mesmas, e desse modo, dar forma filosófica ao conteúdo de seu projeto filosófico ancestral, descrever concretamente o que se passa numa consciência¹¹. Ato contínuo, até fim dos anos 30 permanece sobre a gravidade dessa novíssima Teoria do Conhecimento, entendida assim de modo ambíguo, não apenas por Sartre e seus contemporâneos franceses, mas por quase todo o círculo husserliano, vale dizer. Será por meio dessa Filosofia que, acredita o jovem Sartre, poderá finalmente se desembaraçar do kantismo mumificado e pour cause universitário de seus professores, aqueles mesmo que o formaram, e o formara muito bem, aliás. Kantismo e universitário valem aqui a glosa: ambos determinavam a geopolítica e o território filosófico em que se situa o jovem Sartre e em relação à qual ele quer tanto se deslocar quanto tomar posição, na medida em que traduzem o modo pelo qual a Filosofia, na França pós 1789, recolhe suas armas, em termos de forma e conteúdo, para caber no figurino de carreira de estado, eis aí o seu sentido universitário (fenômeno não só francês, mas igualmente europeu), que nesses termos é inevitavelmente político. Não seria demais dizer que ela, essa nova flor de Jardim Botânico, espécie híbrida que cruza elementos nativos e exóticos, é um desses belos e sofisticados subprodutos do republicanismo francês (projeto e problema político chaves do século XIX francês).

    Cuidemos apenas de esclarecer: com isso não temos a mais remota intenção de autodepreciação, nós, os modestos professores de Filosofia de hoje e de antanho. Apenas se pretende discretamente pôr em perspectiva, como se diz, a novidade da experiência intelectual francesa que se instaurou por meio daquilo que se convencionou chamar de a crítica à Filosofia dos professores, isso já no entreguerras. A seu modo e em alguma medida de maneira intuitiva, Sartre pretendia reatar-se à tradição prévia à república dos professores, um inusitado retorno à Ilustração, e esse esforço é um dos elementos do assim chamado radicalismo sartreano, iluminista na forma, publicista, no efeito¹².

    Por outro lado, seria essa mesma Fenomenologia, flor exótica, em considerando de muito mais perto sua fisionomia propriamente técnica e teórica, que tornaria possível um rearranjo por dentro do que se entendia como os problemas de forma e conteúdo da Filosofia universitária francesa nos estertores da Terceira República (de onde parte Sartre). A relação nem sempre é evidente, e não nos custa esmiuçar um tanto. Não parece exagero dizer que, por certas vias não previstas, a nova volta que dá a Fenomenologia husserliana no parafuso transcendental, seu destino crítico, ainda que problemático, com todas as derivas e hesitações possíveis, ontológicas e existenciais, muitas das quais, derivas e hesitações, se apropriavam muito conscientemente o que depois veio a ser conhecido como a Fenomenologia de expressão francesa, serviu como uma luva, uma luva mais mundana que ideal, para dar dimensão e densidade especulativa à distância que a geração do entreguerras pretendia tomar do espiritualismo francês, curiosamente, e de certo modo contrariando a etiqueta, ele mesmo não sendo senão uma forma etérea e especial de positivismo, esta, a Filosofia popular da Terceira República. Tudo isso, essência e acidentes de percurso muito particulares da Fenomenologia husserliana em sua viagem além fronteiras, passa a funcionar como pedra de toque crítica e ideal a se tomar posição e distância em relação àquela epistemologia passadista dos professores da Terceira República, excessivamente e evidentemente naturalizada nos modos e na forma, já fazendo uso do jargão técnico-fenomenológico. Nesse quesito, a Fenomenologia husserliana obedecia e funcionava quase que como uma crítica imanente, quando posta a funcionar contra o espiritualismo, uma feliz coincidência prático-especulativa que foi mobilizada com destreza pela geração filosófica daqueles jovens turcos.

    Expliquemos um pouco mais.

    Sempre, e bem exatamente no combate contra a noção de Vorstellung [Representação], em um sentido fazendo sua vez e a substituindo, que a ideia de intencionalidade se impôs e tomou para si sua própria fisionomia, em Husserl e para a Fenomenologia. Se o espírito fosse simplesmente feito de ‘representações’, não haveria precisão da intencionalidade. Falar da intencionalidade é instalar-se no interior da relação com o objeto (de outra forma, instalar-se-ia – exteriormente – na mera relação com ele, como representação), e em uma diversidade de aspectos que a noção de representação, centrada no conteúdo preferencialmente à relação enquanto tal, seria incapaz de dar conta.¹³

    O que de maneira insuspeitada nos diz Jocelyn Benoist, no curso de um texto cujo fim é outro, moderadamente deslocado em relação ao nosso – no caso dele, a chave geral para seus desenvolvimentos, num arco pré e pós husserliano, é a tópica clássica Intencionalidade e Representação –, em detalhe, é a maneira técnica e conceitual por meio da qual se pode entender de que modo se deu a passagem de armas geracional, na França, no correr daqueles anos. Pois, ao tomar para si a intencionalidadea ideia fundamental da Fenomenologia de Husserl – toma-se, ato contínuo, uma sofisticada crítica da ideia malbaratada de representação. Por meio desse expediente (a presença inextensa do objeto à consciência), a crítica da representação pela intencionalidade, é que a representação, esse velho monumento da Filosofia moderna, aparecerá passadista pois claramente postiço e desajeitado em relação às pretensões e às promessas que pretende cumprir. A exterioridade da representação mortifica a atividade concreta da consciência. Como já anunciado, por detrás dessa discussão técnica, eis o concreto. Não serão poucos o que seguirão a pista do concreto, a bandeira desfraldada de uma geração que herda um mundo de cabeça para baixo, e o tem diante dos olhos. Ora, evidentemente que isso não basta para explicar como essa geração pretendeu e deu uma reposta a isso também na forma de teoria, por meio da crítica à Filosofia ou às filosofias da representação, para a qual a Fenomenologia passou a oferecer os instrumentos ideais e de ocasião, necessários e melhor ajustados ao calor do momento, para tal duelo. Ora, a passagem do espiritualismo ao que lhe seguiu – tomada também em forma crítica e especulativa – fica clara à medida que a recepção francesa da Fenomenologia por meio da intencionalidade (a recepção hegemônica) traz, ao partido do concreto e faz par com ele, a crítica da representação, cuja titular do dia era exatamente o espiritualismo francês e a Filosofia universitária francesa, que grosso modo significava um certo consenso pós-kantiano em termos de métodos e problemas. Será por meio da crítica fenomenológica da representação que a Filosofia dos conteúdos da consciência (o espiritualismo é uma forma inusitada de positivismo, reiteremos, e o sentido naturalizado da noção de conteúdos da consciência assim o atesta) será enfrentada em campo técnico e profissional. Será graças à finesa dos expedientes fenomenológicos que o objeto deixa de ser tomado como conteúdo qualquer que se recebe, para ser tomado como relação que se gera nesse meio intencional por excelência que é a consciência. Antes, a relação entre o objeto e o conteúdo mental que lhe corresponde, sua representação, vale dizer, passa por um terceiro elemento indicado pelo índice da exterioridade: o sujeito recebe o objeto mediado pela exterioridade da relação, cuja mediação é dada pela chave da representação. Agora, o ato que põe o sujeito, põe igualmente o próprio objeto porque um é mediação do outro, eis o caráter da relação intencional, a sua famigerada imediatidade cujo fim é o de reduzir plasticamente o excedente formal do ato. A mediação de um pelo outro e de um no outro é o nexo propriamente intencional da relação. Essa é a tal conhecida e cantata esfera da imanência, da propriedade. Entendido assim, tem-se dele, do objeto qualquer, mais do que a mera representação, em sentido vulgar, isto é, mais do que sua marca exterior (cuja chave de inteligibilidade operaria por equivalência ou correspondência), mais do que o mero ajuste pela exterioridade de uma forma a um conteúdo, o objeto qualquer como exterioridade cuja origem não entra em linha de conta. Tem-se mais do que isso: passa-se a operar por meio do modo pelo qual o objeto se dá mediado nele próprio, sua posição passa a ser sua condição de possibilidade. Como objeto de uma consciência qualquer ele se dá de modo intencional, logo, concretamente, o que significa que o ato por meio do qual o objeto se dá como objeto, o modo pelo qual se constitui sua posição numa relação qualquer é a consciência que se tem dele. Sob essa condição prévia é que ele será intencional, e isto é, o sentido intencional da doação do objeto decorre do fato dele ser dado como consciência dele. No limite é essa relação originária e constitutiva que será o pressuposto lógico do objeto tomado como coisa meramente exterior, voltando agora ao prosaísmo da relação com um objeto qualquer nos termos da atitude natural.

    A intencionalidade representa, em um primeiro momento, a tentativa de por os conteúdos mentais em movimento e em relação, interpretando todos ou parte deles como visadas de um objeto. Não são os conteúdos mentais que são dados no lugar dos objetos como seus representantes, mas os objetos eles mesmos que são dados ‘por meio’ deles, atravessados pela flecha da intencionalidade.¹⁴

    Evidentemente que essa pequena reviravolta na Teoria do Conhecimento não deixa de levar a paroxismos, como aliás, antecipamos sem esclarecer, algumas linhas anteriores:

    "Claro que se corre o risco de se perder por uma certa fórmula fenomenológica, aquela dos ‘modos de doação’ (Gegebenheitsweisen). Parece que em um certo sentido alargado, não haveria relação com o objeto (ou mesmo a outra coisa que o objeto, pois é bem disso que se trata em última instância: a supressão da categoria de objeto) que não seja ‘doação’ do objeto.¹⁵

    Resumamos o problema, que nos leva um pouco mais longe do que o esperado: a redefinição da relação do sujeito com o objeto mediante suas representações, em outros termos que as variações clássicas e canônicas das filosofias da representação, muda incisivamente os termos desse problema. Essa redefinição redesenha a relação por meio de um ato que, mediado pela própria atividade eidética, põe a relação, o sujeito e objeto simultaneamente. O ato enquanto tal é agora tomado como objeto de cuidado teórico intensivo, e leva ao paroxismo segundo o qual, ao se aproximar maximamente do objeto, por meio de seu sentido intencional, mais mediações encontra, o que se dá por meio dos desdobramentos de suas camadas eidéticas que pretendem repor o imediato por meio de sua mediatidade, e cujo efeito é a assunção do ato como o modelo por excelência da proximidade absoluta de sujeito e objeto, do qual o elemento propriamente crítico desse recobrimento evita a identificação pura e simples. Tal efeito dialético (o imediato se interverte em mediado) é tornado possível mediante um uso derivado e inesperado da intencionalidade: por ter esse caráter que lhe é próprio, de repor o imediato em termos mediados, esse arranjo teórico-discursivo no limite põe em dúvida, melhor seria, põe em impasse, a própria noção de objeto, que permanece dependendo de uma trava crítico-transcendental para evitar o recobrimento dogmático puro e simples do sujeito para com o objeto. Disso, tudo leva a crer, Husserl tinha clara consciência, e seu recuo crítico transcendental, depois das Investigações Lógicas, bem o atesta. Para realizar a proeza da proximidade absoluta, a intencionalidade terá de assumir que apenas o doado (ou dado) por ser apreendido e nessa conta o

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