Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Adeus, Hitler!
Adeus, Hitler!
Adeus, Hitler!
E-book1.300 páginas19 horas

Adeus, Hitler!

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Niko Birkenholtz é judeu. Lloyd Volkenrath, neonazista. Vivendo até então em mundos totalmente distintos, os dois têm seus destinos entrelaçados num bar do subúrbio de Berlim quando, após um leve flerte por parte do inadvertido judeu, Lloyd se ofende e passa a caçá-lo obsessivamente com a ajuda de sua gangue. Quando as circunstâncias da vida selvagem e inconsequente levam Lloyd a beirar a morte, o nazista é salvo por aquele que mais odeia. Niko então tem diante de si um terrível impasse: salvar ou não a vida de seu algoz? Lloyd, no entanto, está decidido: irá usar o judeu para curá-lo e depois dar um fim nele. Mas o destino tem suas próprias decisões para os dois...
IdiomaPortuguês
Data de lançamento6 de fev. de 2023
ISBN9781526053008
Adeus, Hitler!

Leia mais títulos de Caligo Beltrão

Relacionado a Adeus, Hitler!

Ebooks relacionados

Romance para adolescentes para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Adeus, Hitler!

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Adeus, Hitler! - Caligo Beltrão

    PARTE UM: KETHER ESTÁ EM MALKUTH

    Por você

    eu serei um judeu do gueto

    e dançarei

    porei meias brancas

    em meus membros deformados

    e envenenarei poços

    por toda a cidade

    Por você

    eu serei um judeu apóstata

    e contarei ao padre espanhol

    sobre o voto de sangue

    no Talmude

    e onde os ossos

    do menino estão ocultos

    Por você

    eu serei um banqueiro judeu

    e arruinarei

    um velho e orgulhoso rei caçador

    e acabarei com sua dinastia

    Por você

    eu serei um judeu da Broadway

    e chorarei em teatros

    por minha mãe

    e farei pechinchas

    por debaixo do pano

    Por você

    eu serei um médico judeu

    e procurarei

    em todas as latas de lixo

    por prepúcios

    para costurar de volta

    Por você

    eu serei um judeu de Dachau

    e cairei na lama

    com membros deformados

    e uma dor intumescida

    que ninguém poderá entender.

    Leonard Cohen, O Gênio no livro Flores para Hitler

    I. O FLERTE

    D

    izem que todo mundo que odeia sempre o faz por um motivo. Lloyd simplesmente não precisava de motivos. Era cruel, inconsequente, egoísta e impulsivo. O tipo de pessoa com quem se evita trocar olhares na rua, e ai do homem que cruzasse o seu caminho. Confrontá-lo era o mesmo que desprezar a própria vida. Seu histórico de delitos rendia uma extensa lista, sua intenção era que ela ultrapassasse o tamanho de seu corpo.

    Fora preso por todo tipo de malfeitoria: desde roubo de carros a tentativas de assassinato, como quando arremessou um desafeto para fora de um trem em movimento. Contudo, como seu pai tinha contato direto com o delegado de polícia de Berlim, a toda sua baderna era feita vista grossa.

    Acontece que um único indivíduo desconhecia a regra de jamais insultá-lo, ou pelo menos praticar algum ato que o neonazista viesse a interpretar como um insulto. Habitante do bairro suburbano de Bönheim, situado no norte-oriental de Berlim, Nikodemo Birkenholtz de Machorro, ou simplesmente Niko, era um jovem de família fervorosamente judia e possuidor de uma notável aptidão para a pintura. Contudo, tinha suas habilidades artísticas quase que constantemente boicotadas pelo pai, o senhor Moshe de Machorro, homem de caráter avarento incapaz de enxergar algo além de suas próprias ambições.

    Dono da graciosa delicatessen A Diáspora, herdada de seu igualmente avarento pai, Moshe abominava desperdícios, e acreditava veementemente que a arte desviava os homens do caminho divino. Uma boa porção dos moradores de Bönheim conheciam o seu caráter somítico, ficou mesmo famoso quando certa vez cometeu o desatino de bater na porta da aposentada Emilia Seehofer para fazer a cobrança de alguns meros centavos.

    Por outro lado, era imensamente reverenciado tanto pelo sucesso de seus negócios quanto pelo modo austero como os dirigia. Moshe era casado com a prima Devoran Birkenholtz a quem carinhosamente apelidava de Dev. Com o intuito de levarem em frente à cultura de se casarem em família, foi que os dois foram forçadamente unidos pelos pais. Do fruto desta comunhão inicialmente indesejada e, com o passar do tempo, fortemente preservada foi que nasceram os irmãos Shaindel e Nikodemo, nomes estes homenagiosos aos avós maternos do pai.

    No começo, ao chegarem no jovem bairro de Bönheim, a família Birkenholtz de Machorro era carente de tudo. A tradição daquela específica família ashkenazim¹ era deixar que os filhos construíssem suas vidas por conta própria, pois era uma desonra que os pais assim o fizessem por eles. Num golpe de sorte, Moshe e Dev conseguiram para si um terreno inculto que previamente pertencera à comunidade judaica antes da ascensão da Alemanha nazista, fora repassada a eles por um custo baixíssimo em uma tentativa do governo alemão de pagar uma dívida histórica. Desde o fim da Segunda Guerra, ninguém mais havia habitado aquelas terras.

    Nada veio fácil para o senhor Moshe e a senhora Devoran, e por esta razão era que Moshe se sentia no direito de desfazer-se daqueles cujas vidas estavam apenas começando, ou mesmo irremediavelmente se despedaçando.  Dev, no entanto, era muito mais compassiva: às sombras, fazia caridade aos necessitados na companhia de seus filhos-cúmplices, evitando relatar isso a Moshe o quanto podia.

      Esta realidade sofrida e orgulhosa entrava em extremo contraste à facilidade absurda com que a família Volkenrath, em cujo seio Lloyd fora concebido, se estabelecera. Manfred Volkenrath, o pai alcoólatra de Lloyd, era descendente de Hans Kittel Volkenrath, um oficial da SS² responsável por organizar a mão de obra escrava nos campos de concentração. Kittel também dirigia uma empresa de patrimônio da SS chamada Voß³ que fabricava uma famosa bebida fermentada de nome Wakkol, era vendida aos montes em lojas e restaurantes do mundo todo e, inclusive, divulgada em propagandas nas mãos de vigorosos soldados nazistas.

    Naqueles dias, os Estados Unidos haviam entrado na guerra, cortando o fornecimento de bebidas primorosas da época, a Alemanha nazista precisava então criar a sua própria bebida, e não só criá-la como ainda nacionalizá-la, assim dando origem à Wakkol. Este fato sombrio, no entanto, havia se perdido inteiramente nas sombras do passado, e até mesmo os maiores opositores de Hitler naquele período eram vistos com a bebida disposta em suas mesas.

      Dizia-se que, por ter sido comandada por nazistas, a Voß também fizera uso de mão de obra escrava e que, indiferente às penalidades legislativas, parte de sua corporação se mantinha assim até os dias de hoje. O dinheiro obtido neste conturbado período – e ainda mais por tal meio ilícito – rendeu a esta odiosa família certa prosperidade que os tornou hábeis a manter sua boa qualidade de vida ao longo das gerações que se seguiram. Como se a própria vida quisesse puni-la, entretanto, a mãe de Lloyd, Paula Volkenrath, em certo ponto de sua vida sucumbiu à síndrome de Guillain-Barré, tendo sido anteriormente a isso uma ferrenha defensora dos ideais nazistas. Após a morte dela, Lloyd permaneceu à presença nefasta de seu pai, tornando-se muito mais destrutivo do que antes e aliando-se à gangue neonazista de motoclube Kreuz und Axt, por influência de um amigo de Manfred, o umbroso líder Sankt St. Boris Alexei.

    Niko era professor de francês particular, enquanto Lloyd, mero baderneiro. A vida de ambos era tão antagônica que enquanto Niko ensinava aos pequenos burgueses Samir e Brice a falar compassadamente a locução Le français est la langue de l'amour⁴, Lloyd belicosamente ordenava que um homem de meia idade amarrado numa cadeira gritasse a saudação nazista Heil Hitler em meio ao sangue que escorria de seus graves ferimentos.

    Esta história então começa quando Niko foi ao bar Die Taverne nas extremidades do bairro vizinho de Karow para tomar um chopp depois do trabalho, a fim de esquecer um pouco dos seus tantos tormentos diários. Ao adentrar ali foi que viu Lloyd pela primeira vez. Acomodou-se à frente do balcão e fez seu pedido ao barman e dono do bar, conhecido seu, e para quem cooperara na fundação com um desenho de nó borromeano para a logotipo.

    Deixou os olhos escorrerem lentamente até a mesa do canto onde o rapaz que tanto lhe atraiu a atenção havia escolhido se sentar. Pela escolha tão isolada, Niko só poderia julgar que ele fosse um misantropo. Talvez mesmo por este aspecto singular tivesse se atraído por ele. Tinha essa obsessão pelos homens solitários, todos os que amou na vida haviam sido como ele. Certamente aquele rapaz o era, ele pensou, um misantropo. Ou talvez um alcoólatra... não vira muitos homens optarem por beber sozinhos que não fossem aqueles que sofressem de alcoolismo, mas ali estava ele também, completamente desacompanhado e, ao menos por enquanto, sabia o momento certo de parar. Se o rapaz o notasse, talvez tivesse sobre ele igual impressão. Se o outro apenas o notasse...

      Acontece que no mesmo instante em que refletia sobre isso, Niko percebeu que não era bem assim. O rapaz que outrora esteve solitário no canto do bar tornou-se instantaneamente acompanhado por uma trupe de brutamontes carecas adornados por esdrúxulas tatuagens que iam do pé até o couro da cabeça. Passaram pela porta a passos pesados, eram homens feitos e também mal-encarados, cuja presença inundava o ambiente inteiro em indigesta escuridão. Assim que notaram Niko, franziram seus cenhos em desdém. O clima do bar ficou constrangedor, e nem mesmo o rumor da tevê parecia poder abafá-lo. Niko fingiu prestar atenção no noticiário, falava sobre os esforços de investigação de um ransomware poderoso que estava sacudindo a economia global. A informação resvalou em sua mente sem deixar o menor vestígio, o medo de um ataque covarde o fez engolir em seco.

    Assim que teve a oportunidade, Niko deslizou o olhar outra vez para o canto. O rosto pálido e sisudo do solitário rapaz na mesa transmutou-se na mesma hora para um semblante mais corado e muito mais jovial ao ver aqueles que chegavam, expressão esta que Niko adorou contemplar nele. Apesar da agressividade em seus modos, havia algo de muito sedutor morando naqueles traços. Ele tentou retornar à tevê, tentou resistir à imperiosa tentação de não o olhar, mas perdera-se, perdera-se de corpo e alma. Era como entrar na mata espessa e ir fundo o bastante para não saber mais voltar ao pavimento.

      Sentaram-se aqueles então ao redor da mesma mesa. Eram cinco ao todo, e apesar de aparentemente apertados, pareciam à vontade por estarem na mesma companhia. Estavam olhando o cardápio quando o chopp de Niko chegou posto sobre o balcão. Estava como gostava, gelado e sem espuma. Gostou da sensação que teve ao levá-lo à boca, o líquido gélido e amargo descendo ligeiramente pela garganta seca.

    – Obrigado, Kalisky. – agradeceu o judeu. – Um chopp é tudo o que um homem precisa depois de um dia de cão.

    – Como vão as coisas? – indagou o homem despretensiosamente. – Parece que não tão bem, pelo visto...

    – Um pouco sufocante.

    – Tudo? – o homem disse.

    – Quase tudo. Sabe, às vezes eu penso que simplesmente não sou capaz de suportar a pressão das coisas. E aí o meu pai vem e me diz que eu estou sendo fraco e me confirma tudo. Diz que o habitual de um De Machorro é ser forte sobre qualquer aspecto, e não um fracote como eu tenho sido, como eu sempre fui...

      Kalisky deu de ombros.

    – Bem, até onde sei, todo homem tem seu peso.

    – Justamente, Kalisky. Todo homem tem seu peso e eu também tenho o meu, você certamente tem o seu. O que há de errado em admitir isso?

      O barman tinha começado a enxugar um dos copos postos sobre um suporte no balcão quando prosseguiu com as palavras:

    – Seu pai é definitivamente o homem mais casmurro que eu já conheci.

    – Chato você quis dizer... – disse Niko sem qualquer piedade. – E você não é o único a pensar assim.

      Enquanto terminava de falar, levemente se inclinou para o lado a fim de contemplar mais uma vez o rosto que o atraía. O garoto que ele cogitara misantropo e que agora apresentava-se muito mais enturmado era, aos olhos de Niko, de uma beleza não manifesta, mas misteriosamente invasiva. Não tinha tatuagens no rosto como a maioria de seus companheiros, ou pelo menos, não parecia ter daquela perspectiva. Era alto, alvo, varonil e intimidante. Entretanto, Niko via naquela figura tanta beleza que ele simplesmente não conseguiria justificar se alguém o questionasse sobre isso.

    – Ele ainda implica com você por causa da... – Kalisky parecia ter vergonha de pronunciar a palavra.

    – Minha homossexualidade? – completou Niko. – Se não implicasse, não seria o meu pai, não é mesmo?

    – O que ele tem dito a você?

    – O de sempre. – ele disse. – Que é errado ser o que eu quero ser, o que não é bem um querer, eu já o sou. E está sempre recitando passagens da Torá, como se me converter fosse mudar minha natureza. É claro que eu desconverso, digo que não sou um prostituto promíscuo que sai por aí praticando os atos mais pervertidos possíveis, mas ele não entende. Jamais será capaz de entender. Eu sei que não. E ainda pergunta se todos os meus amigos são casos meus, o que eu acho de longe muito ultrajante.

      Niko tornou a contemplar de longe a beleza incerta do estranho. Fez isso sorrateiramente, e deu certo sobressalto ao perceber que o rapaz o encarou de volta desta vez.

    – Quer um conselho? – ouviu do barman.

    – Sobre o meu pai?

    – Sobre esses caras. – disse o outro para a sua surpresa. – Não entre na deles, sequer olhe para eles. Não vai querer sentir a dor que eles são capazes de proporcionar a você.

    – Do que está falando? – Niko perguntou, fingindo confusão.

    – Eu o percebi olhando para eles. Mas não é lá recomendável fazer isso. Na verdade, nenhum pouco. Hum hum...

    – Bem, o do meio é bonitinho... – confessou Niko, um meio sorriso se formando em seu rosto.

    – São skinheads, ou melhor, boneheads. Carregam o nazismo nas veias. Alguns desde o berço, se quer saber. Sem falar que são figurinhas repetidas da polícia.

      Kalisky coçou a ponta do nariz para disfarçar, depois continuou com uma voz ainda mais comprimida.

    – O maior deles é o líder, chama-se St. Boris Alexei. Russo-alemão, advogado, político... concorrente à vice-chanceler nas eleições. Você deveria saber!

    – Ah sim, o rosto é mesmo familiar... – observou o judeu. – Tenho andado com a cabeça tão cheia, Kalisky. Meu senso de reconhecimento está corrompido.

    – Para você ter uma ideia, – retomou o homem. – ele acredita veementemente que é um ariano. Parece que toda turma tem essa crença. Mas é claro, a cúpula política sequer sabe disso. Eles frequentam o meu bar porque quase nunca está cheio. É como um refúgio para eles. E eu, o que posso fazer, não é? É dinheiro entrando, e se lhes nego passagem acabo numa vala rasa de certeza.

      As sobrancelhas de Niko se arquearam.

    – E como você descobriu tudo isso? A questão ariana, a liderança e tal...

      O barman meneou a cabeça enquanto reprimia um sorriso.

    – Não precisa ser muito esperto para discernir coisas como estas. Eu sou dono de um bar, Niko. Ouço coisas até sem querer ouvir. Agora preste bem atenção no que eu vou lhe dizer agora. Se você mexe com ele, ou com qualquer um dos seus fiéis escudeiros, considere-se um homem morto. Essa gente não é o tipo de pessoa com quem você quer se envolver, acredite em mim.

    – Eu acredito. – Niko respondeu. – Eu só não pude evitar, mas agora que você me disse já estou ciente dos riscos... Sei me cuidar, eu prometo.

      Se o que Kalisky estivesse falando fosse verdade, estar no mesmo bar que aqueles caras e ainda por cima com um peiot⁵ em torno da cabeça era um verdadeiro suicídio. Mas algo dentro de Niko não deu a menor importância a isso.

    – Que bom que você é racional, e isso é o que mais importa. – continuou o barman. – Conheço você há anos, conheço também a sua família e prezo pela sua amizade. Por isso estou te avisando, rapaz, qualquer que sejam as suas escolhas, pense na sua vida primeiro.

      Niko fez que sim, mas achou a advertência de Kalisky um tanto quanto invasiva. E não queria, mas por reflexo, deixou os olhos correrem para o rapaz sem cabelos novamente, enquanto dava um gole mais demorado no seu chopp. Arrependeu-se imediatamente do que fez quando recebeu de longe um olhar de censura.

    – Ei! – o grito do rapaz fez seu rosto formigar. – O que tá olhando, seu verme parasita? Perdeu alguma coisa aqui?!

      O grande St. Boris se virou para ver o motivo da impaciência do amigo, e ao encontrá-lo, encarou o novo oponente dele com igual irritação.

    – O que ele fez, Lloyd? – indagou, seu tom gutural era de arrepiar.

    – Tá me encarando desde cedo. Com certeza é uma bichinha. Quer apanhar, bichinha?!

      Niko jamais tinha enrubescido tanto na vida. O bar não estava cheio, mas o constrangimento ainda era corrosivo, como se tivesse acabado de ser pego pelo chefe cantando e dançando no banheiro da firma.

    – Que merda, Niko, que merda... Depois não diz que eu não avisei. – sobressaltou-se Kalisky.

      Niko se virou de volta para o balcão e fingiu conversar qualquer coisa com o barman.

    – O que está fazendo? – indagou o amigo.

    – O que você acha que eu estou fazendo? Tentando fugir dessa merda de situação que eu montei para mim mesmo. – sussurrou ele.

      A ameaça persistiu.

    – Ô veadinho, qual é?! Não vai me olhar de novo não?! – o rapaz forçava um tom de voz delicado para desfazer-se ainda mais do menino. – Me conta uma coisa, é comum entre os judeus gostar de bota na cara ou você é uma exceção?!

      Niko, tomado por certo desespero, atirou o copo sobre o balcão com um impacto maior do que o esperado e despediu-se todo sem jeito de Kalisky:

    – Escute, Kal, eu já estou indo. Acho que as coisas tomaram um rumo estranho demais esta noite.

    – Não baixe a guarda, Niko. Pegue o carro e não enrole para sair, vá direto para casa, entendeu?

      Niko se afastou para longe do balcão com um aceno e forçou-se a olhar somente para o chão enquanto caminhava para a saída.

    – Já vai tarde, veadinho!

    – Não estou te reconhecendo... – disse Boris com uma perversidade única em seus olhos, perversidade esta que Lloyd nunca fora capaz de ver em um outro alguém. – Onde está o Lloyd Volkenrath que eu costumava conhecer? Aquele que surrava esses vermes aidéticos com barras de ferro e os afogava no vaso sanitário por horas a fio?

    – O que você quer, que eu o surre aqui dentro? – retrucou ele com uma ousadia ao líder que ninguém mais tinha a coragem de ter.

    – Você que sabe. – replicou Boris. – Eu pessoalmente não me importo. Não é minha reputação, mas a sua. Você é quem comanda os combatentes, e um líder deve dar exemplo a seus seguidores... mas esta é sua escolha, e uma escolha deve ser absolutamente particular.

      Lloyd bufou e, convencido, fez menção para que eles se levantassem da mesa. Kalisky ao observar o movimento enfiou-se na cozinha e puxou subitamente o celular do bolso para iniciar uma ligação. Procurou o número de Niko com uma agilidade impressionante, ainda assim pensava ser tarde demais, pois os homens acabavam de atravessar a porta prontos para o castigo que tanto estavam habituados a praticar a quem quer que os insultasse de alguma maneira.

      Por sorte, Niko falou do outro lado da linha, e o barman só teve tempo de dizer a ele:

    – Niko, depressa!

      Do outro lado da porta, um celular despencava sobre o chão de cimento. Niko, na tentativa acirrada de entrar no seu Volkswagen, cometeu o terrível erro de dar às costas para seus algozes e recebera o maior golpe que já havia levado em muito tempo. Nunca sentira uma dor tão intensa lhe atingir a cabeça, e seu equilíbrio, já comprometido, causou o rodopio imediato de seu corpo. Quando menos esperava, batia com o queixo na superfície dura do carro e, sem forças, observava o corpo se inclinar na direção de onde antes seus pés pisavam com firmeza. Não entendia muito bem como as coisas haviam acontecido tão rápido, mas sentia muita dor. E, à medida que permanecia atirado ao chão, ela se tornava muito mais presente, espalhando-se pelo seu corpo com impiedosa brevidade como veneno injetado. Urrava, mas sabia, nada poderia lhe salvar naquelas circunstâncias.

    – Vocês, aidéticos, me dão nojo! – dizia a voz de quem lhe surrava, vinha de algum lugar de cima. – Você merece estar aí, sempre no chão porque é esse o seu lugar neste maldito mundo!

    – Tirem a calça dele. – ouviu alguém dizer. Era uma voz amarga, uniforme e impassivelmente fria. Ocasionava-lhe muito medo interior, coisa que ele não compreendia muito bem pois a dor lhe desconcertou de tal maneira que não sentia ser capaz de voltar a pensar racionalmente.

      Sentiu mãos lhe apalparem sem o menor cuidado. Elas lhe arrancaram a calça violentamente e ele ouviu uma voz ordenar:

    – Peguem o ferro no carro. Vamos ensinar uma lição a ele.

    – Será que os pelos pubianos dele são que nem os cabelos? – zombou um deles.

    – É o que vamos descobrir agora. O trabalho é seu desta vez, Bill. – ordenou a voz mais sombria de todas. Havia algo de muito irônico e ao mesmo tempo inexpressivo nela o tempo inteiro. Era quase sobre-humana, quase demoníaca ou talvez angelical demais e por isso tão excruciante.

      Como num último sintoma de coragem, Niko ergueu-se do chão com toda a força que ainda habitava em si, embrenhando-se por entre as pernas imponentes à frente dele. Empurrou-as com certa bestialidade, correndo até o seu carro quase rastejante. Puxou a chave do bolso da calça, abriu a porta e se enfiou lá dentro com urgência. Depois disso, trancou o carro e ali permaneceu estatelado por alguns segundos. Viu várias coisas ao mesmo tempo, e a proporção de como tudo acontecia o fez tremer como nunca antes. Ainda assim encontrou força física para enfiar a chave na ignição e dar a partida.

      Foi então que o pior aconteceu. O carro deu um solavanco violento para a frente e acabou por atingir alguma coisa. O impacto foi tão extremo que fez o coração de Niko quase saltar para fora do corpo. A coisa rolou por cima do carro e ele a assistiu passar entorpecido pela letargia do medo. Quando notou o que havia acontecido, praguejou e xingou a si mesmo. Mas era tarde, era réu de uma ação irrefletida. Possivelmente, muito possivelmente havia acabado de matar alguém.

      Jogou os olhos sobre o vidro da frente e encontrou os olhos coléricos das bestas-feras adiante. Se algum poder paranormal dentro de si eles tivessem, teriam fulminado o vidro com a força de seus furores. Ao se inclinarem na direção do carro a fim de causarem sua ruína, foram surpreendidos por um novo ronco do motor e então saltaram para trás, indefensos.

      Os olhos alarmados de Niko cometeram o grave erro de encontrarem os olhos encarnados de St. Boris Alexei, e ele não pensou ter se enganado ao ler em seus lábios tão finos quanto os de uma serpente:

    – Até breve, judeuzinho.

      O Volkswagen deu a ré no estacionamento, pegando um caminho quase estreito demais para que passasse. Por pura sorte foi que se encaixou naquele espaço e por ele encontrou sua fuga. Voejou até o fim da rua a levantar fumaça, onde encontrou a esquina e por ela desapareceu.

      Parado atrás do vidro da Die Taverne, Kalisky ainda carregava nas mãos o celular. Terrificado, ele sentenciou: 

    – Meu Deus, Niko acabou de cavar a própria cova!

    II. O JANTAR

    A

    cabeça de Niko pulsava como se estivesse se expandindo. Contudo, tal dor, ainda que intensa, não lhe desviava do confronto moral de ter atentado contra a vida de alguém. Atitude esta que jamais cogitou na vida, mas estando em circunstâncias tão ameaçadoras, lamentavelmente acabou por cometer. Já na sua rua, ele não foi capaz de reduzir a velocidade do carro, pois o impulso de fugir ainda estava dentro de si. Quando percebeu que o pé ainda se mantinha no acelerador ainda à proximidade de casa, estancou o carro com uma violência que não era de seu costume.

    – Estou decididamente morto! – exclamou para o silêncio dominante no interior do Volkswagen. Na pressa de sair com o carro, nem reparou que alguém tinha anexado num dos limpadores de para-brisa a cartilha de um dos maiores partidos na disputa eleitoral daquele ano. Alemanha Sobre Todos!, lia-se em letras imponentes. Abaixo delas, um auroque de grandes chifres comia de um pasto muito verde. – Quer uma nação melhor para os seus filhos e os filhos de seus filhos? Apoie Günter Scherer para chanceler, Wilhelm Hammerstein para vice! Pelo Critério e Pela Verdade, o bem que a Alemanha precisa!.

    Jogou a cartilha de qualquer jeito no porta-luvas e tornou a praguejar pela culpa que o consumia. Mas o que estava feito estava feito e ele sabia, todo ato tinha sua consequência e, para pessoas como ele, a cobrança se dava geralmente da pior forma possível. O destino havia sido impiedoso com ele inúmeras vezes. Tendo sido diagnosticado com Transtorno de Personalidade Limítrofe, ou Borderline, Niko arrumara para si e para a família ao longo da vida das mais diversas situações desconfortáveis. Certa vez num surto, causado pelas exigências descabidas de Moshe, atirou uma jarra de vidro na direção da parede da cozinha onde ao se espatifar ele acabou por ferir a si mesmo. Foi parar no hospital Friedrich Haass a poucos quilômetros de casa, levou cinco pontos no antebraço.

    Ainda que houvesse sido diagnosticado e ainda que por vezes fosse incapaz de segurar o impulso forte e selvagem que fazia o seu corpo arder em febre, o pai não lhe dava um segundo de arrego. Tudo para ele tinha que estar nos conformes... nos conformes dele, e qualquer coisa que não se encaixasse nisso Moshe levava ao Santo Ofício. E não bastasse isso, o jovem judeu tinha uma quota justa de experiências ruins por causa de sua homossexualidade, algo que ele julgava como uma verdadeira maldição que o impedia de subir na vida, cortava-lhe as asas toda vez que tentava voar.

      Perdera diversas oportunidades de emprego que, para ele, sem dúvida foram motivadas unicamente pela sua escolha sexual. Certa vez, ao ser abordado por uma viatura ao se sentar na calçada de uma rua sem saída para conversar com Thomas, um amante seu, fora agredido física e verbalmente por um dos policiais que acusou Niko de estar fazendo uso de drogas ilícitas quando, na verdade, sua violência partia da pura vontade de punir o que não compreendia. Coisas estas lhe doíam imensamente. Procurava, no entanto, relevar para que não sofresse mais do que era cabível.

      Ainda muito atormentado, desligou o motor, puxou a chave e saiu do carro. Passou um tempo contemplando a rua em que morava. Adornada por carvalhos que se estendiam à frente de modestas moradias de tijolos e telhados inclinados, Bönheim era de longe um dos bairros mais bonitos do subúrbio, podia-se dizer que era até nobre, figurões da política alemã tinham residência por aquelas mediações. Pintada de creme e castanho, a casa dos Birkenholtz de Machorro, cujo nome da família era exposto com orgulho na entrada, era certamente a maior e mais formosa da rua Leopold Zunz. Não porque fossem realmente afortunados, mas é que os pais de Niko estavam sempre investindo o dinheiro da delicatessen para decorar a casa.

      Tirou os sapatos e as meias e os deixou perto da porta. Ao abri-la, sentiu a delicadeza dos pelos de Júpiter a roçar no seu tornozelo. O pobre do gato, branco feito neve, tinha apenas três pernas, tendo sido a quarta traseira amputada por razão de um acidente que sofreu durante um tempo de sumiço. Passara longe exatos onze dias. Já tendo sido dado como morto foi que resolveu voltar para casa com uma das pernas soltas. Ninguém soube o que de fato acontecera a ele, mas voltara castrado, abatido, parecia deslocado e vendo auras invisíveis. Com o tempo foi retornando à normalidade até abandonar de vez tal estranho comportamento. Niko não era dado aos assuntos paranormais, mas se houvesse um sensitivo nas proximidades, não teria hesitado em levar Júpiter até ele.

    O judeu o segurou no colo como um bebê, tentava ignorar a dor que com o passar da adrenalina chegava sorrateiramente para lhe atormentar. Foi recebido com alarme quando a mãe o viu em condições tão deploráveis.

    ElohimIshmor, Niko!

      O rapaz se sentou no sofá e deixou que a mãe o rondasse à procura de ferimentos, o peiot pendendo ao redor da cabeça tristemente inclinada.

    – O que foi dessa vez?! Não me diga que foram aqueles malditos policiais de novo?!

    – Não, claro que não. – rebateu numa voz embargada. – Antes de eu lhe contar, não deixe que isto chegue ao conhecimento de papai, ouviu bem?

      Hesitante, ela fez que sim, mas não deixou de perguntar:

    – É tão grave assim?

    – Certamente que é. Ele está aí?

    – Na delicatessen. – ela disse. – Sabe como ele ama aquele lugar mais do que a própria família.

    – Sei bem...

    – Mas me diga, o que foi que aconteceu?

    O judeu levou um tempo para responder por estar ocupado demais organizando os próprios pensamentos. Quando enfim falou, foi categórico.

    – Acho que matei um cara...

    – Matou?! – Niko nunca vira uma expressão tão claramente atônita no rosto da mãe.

    – Eu disse acho que matei...

      Ela caiu sentada no sofá também.

    – Como isso se deu?! Quer dizer, como chegou ao ponto de atropelar um cara desta vez?! Niko, minha vista está escurecendo... Você vai me fazer infartar!

    – Acalme-se, mamãe. Não queira me atormentar mais do que eu já estou. – rebateu ele aos exageros dela. – Não tem nada a ver com o transtorno. Na verdade, talvez ele tenha me ajudado a me livrar de uma encrenca hoje.

      Ela não disse mais nada. Estava tão assombrada que apenas esperou que ele continuasse.

    – Eu estava num bar na fronteira com o bairro de Karow.

    – Que bar? – disse Dev com um pesar de quem acaba de ouvir que o filho está se drogando.

    – No Die Taverne.

      Ela o olhou com reprovação.

    – Aquele lugar... por que estava num lugar desse? É um antro de truculências, sabe bem disso. Kalisky é nosso chegado, mas ainda assim pra lá de duvidoso... mas continue, vamos.

    – Eu estava apenas bebendo um chopp, não mais do que isso. Sou gay, não retardado.

    – Pare já com isso. Eu sequer toquei no assunto...

    – Como disse, eu estava bebendo um chopp. Apareceram uns caras mal-encarados. Kalisky me disse que eram skinheads... boneheads, algo do tipo.

    – Ouvi falar deles no jornal. Têm rondado por aqui, tocaram o terror semana passada numa igreja protestante perto da loja do seu pai... você mexeu com eles?

    – Não, é claro que não. – Niko negou com a cabeça.

    – Assobiou, cortejou ou algo assim?

    – Nem todos os gays são obscenos, mamãe. Coloque isso na sua cabeça.

    – Cortejou ou não cortejou?

      Niko suspirou bem fundo soltando o ar com força pela boca.

    – Me deixe continuar esta maldita história, por favor.

      Ela suspirou também, mais pesadamente do que ele até.

    – Eu estava bebendo na droga do bar quando eles entraram e se sentaram com um deles que já estava por lá. Conversaram e eu cometi o erro de...

      A mãe o olhou com censura antes mesmo dele dizer.

    – Cometi o erro de olhar para um deles, para o que estava lá dentro há mais tempo.

    – Você flertou com um skinhead?!

    – Eu não flertei, eu olhei, mamãe! É diferente! Será possível que não consegue ouvir o que tenho para dizer sem dar palpite?!

    – Eu não estou dando palpites, Niko. Estou apenas... fazendo as minhas observações.

    O judeu balançou a cabeça.

    – Chame do que quiser.

      E depois continuou.

    – Kalisky me disse que eles não eram boas pessoas. Que eu não deveria sequer trocar olhares com eles.

    – Como disse, você flertou...

    – Então um deles simplesmente explodiu e começou a me xingar. Me chamou de...

      Devoran fez menção para que ele revelasse as palavras ditas.

    – Me chamou de verme parasita, veadinho e outras coisas que não se dizem numa conversa civilizada.

      Ela bateu com as mãos sobre as coxas.

    – Vermes? Nós somos os vermes? Eles picham cemitérios, muros, monumentos com seus símbolos nefastos e nós somos o mal da nação... Eu realmente nunca vou entender. E agora, – ela apontou para algumas cartilhas eleitorais picotadas na mesinha de centro. Havia tantas que a família estava usando para anotações. – a eleição parlamentar chega e com ela novos insultos. Aquele Hammerstein... ele me dá calafrios. Não, não podemos ter nazistas no Reichstag⁷ outra vez.

    – A senhora não consegue entender as motivações deles porque não é algo que se dê para entender. – observou Niko. – Eles odeiam por odiar e não há sentido nisso.

      Ela fez que sim, um tipo de angústia instalada em sua face. Não era como qualquer expressão que Niko já tivera visto na mãe, era diferente, arredia, sensível e encabulada.

    – E aí eles te seguiram e te bateram? – ela retornou, emergindo da água turva de seus devaneios.

    – Como adivinhou?

    – Skinheads são mais antigos do que você pensa. – ela disse. – Como conseguiu escapar disso vivo? Ech!⁸ A vontade que eu tenho é de trancar você e Shaindel num quarto e nunca mais deixar vocês saírem.

    – Isso é crime e se chama cárcere privado. – disse ele com ironia.

    – Isso é um sentimento e ele se chama amor. – redarguiu à ironia dele. – O coração de mãe vê além das leis.

    – Escapei por um triz. – ele finalmente respondeu. – Saí correndo para o carro e fiquei lá dentro me recuperando do susto. Só que eles ficaram na minha frente, e quando eu tentei arrancar a merda do carro um deles surgiu na minha frente e eu o bati.

    – Como foi a pancada? Foi muito forte?

    – Ele rolou por cima do carro e caiu atrás dele, para ter uma noção.

    – E o que você fez?

      Ele olhou para ela com uma expressão de obviedade.

    – Bem, eu estou aqui, não estou?

      O semblante dela era um misto de apreensão e dúvida.

    – Depois dessa, por quanto tempo estará, Niko? Hã? Por quanto tempo estará? Essa gente costuma caçar seus inimigos até o fim. São perversos, sadistas, sentem prazer com a desgraça alheia. São caçadores natos pois crescem em meio a nazistas natos. Não irei permitir que saia daqui outra vez, não quando a ferida ainda está aberta. Se o fizer, estarei louca.

    – Eu sinto muito em dizer, mas estará. – rebateu Niko. – Mamãe, eu tenho um trabalho. Ganho pouco, mas é alguma coisa. Não posso faltar a ele só porque a senhora quer.

    – E eu tenho um filho que é muito, muitíssimo para mim. E eu só tenho um exemplar dele.

    – Ainda terá Shaindel. – o judeu deu de ombros. – Dizem que ela se parece muito comigo, então...

    – Shaindel é Shaindel, você é você. Além do mais, não é certo que uma mãe enterre o seu filho.

    A declaração de Dev o desarmou de tal jeito que ele se sentiu no dever de sorrir em meio ao sangue. Correu os dedos pelos cabelos macios dela, deixando escapar uma promessa:

    – Não se preocupe. Não hei de deixar que eles a façam chorar por mim. Seria um desperdício de lágrimas.

      A mãe fez que não, sentia-se profundamente incomodada ao vê-lo falar daquela maneira.

    Durante todo o restante da noite, Dev foi dominada pela ideia fixa de que mais cedo ou mais tarde Niko seria castigado numa possível retaliação. Ainda que sob seus protestos, ela resolveu contar sobre o acontecimento à Shaindel enquanto cuidava dos ferimentos dele, e Niko, como outrora exigiu da mãe, fez a irmã prometer que não contaria nada à Moshe, que diriam que ele sofrera uma queda, que pisara errado ao sair do carro e dera de cara no asfalto, possibilidade esta até bem característica dele. Havia jurado certa vez não contar mais nenhum segredo à mãe, e ali estava ele de novo. Como um vômito que não se pode conter, Dev sempre acabava por dar com a língua nos dentes. Então apesar do pedido, estava pronto para tudo.

    A irmã, intrigada pelo acontecido, se sentou no braço do sofá e começou um verdadeiro interrogatório.

    – Quem eram eles?

    – Um grupo de neonazistas, motociclistas, eu me lembro vagamente de ter visto uma insígnia gravada no braço de um dos meus algozes. E depois, tinha um cara muito alto, parecia uma árvore morta que eu vi no cemitério quando criança. A voz dele me incutia pavor e repulsão, sinto o meu corpo vibrar toda vez que a recordo.

    – Essa insígnia... – ela tornou a falar. – Do que se tratava?

    – Lembro bem das letras K e A, personalizadas agressivamente sobre as asas abertas de uma cigarra, como aquelas encontradas em álbuns de black metal.

    – Uma cigarra? – o olhar da irmã encontrou o da mãe que, ao lado, ainda segurava a compressa de gelo sobre um dos hematomas.

    – Estridula no calor do sol e silencia no frio da noite. – Dev mordiscava os lábios. – Já ouvi falar que também significa paciência.

    – Paciência? – quando Niko pronunciou a palavra sentiu um estalo no seu maxilar. 

    – Sim. – disse a mãe. – Saber aguardar o tempo certo para seguir adiante com o seu ciclo. Mamãe quem dizia, é claro, não é lá um simbolismo certeiro então.

    – Na verdade, – começou Niko massageando o queixo. – me parece uma boa interpretação. Eu não teria feito uma melhor.

      Niko ficou descansando um tempo na poltrona de couro do pai. Quando Dev tinha acabado de preparar o jantar, Shaindel ajudou a reerguê-lo.

    – Você poderia ter morrido. – observou ela guiando-o até a mesa. – Vi o que essa gente fez com o cigano Cédric esta manhã. As imagens vazaram na internet como fogo que se espalha no palheiro. Coisa terrível de se ver.

    – O que houve com Cédric? – indagou Dev já com certo tormento.

    – Vocês não veem tevê? – disse Shaindel, indignada. – Cédric está bem mal no hospital. Eles o surraram tanto que o olho do coitado quase saltou para fora. Quatro dedos quebrados e três dentes arrancados. Além de cigano, Cédric ainda é gay, um prato cheio pra eles. E ainda por cima deixaram uma mensagem no bolso de sua calça.

    – O que dizia? – a mãe tentava se concentrar entre preparar seu prato com a mão esquerda e encher o copo de apfelschorle⁹ com a mão direita. Havia preparado uma saborosa canja de galinha, temperada com salsa e servida com kneidlach¹⁰ e legumes. O marido tivera um sonho estranho com um jantar de pessach¹¹ e, por essa razão, havia lhe pedido que preparasse este prato. Obedientemente, ela assim o fez.

    – Eu não lembro com exatidão, – começou Shaindel. – mas era algo como estamos indo de bairro em bairro coletar ‘mestiços sujos’. Isso explica o desaparecimento massivo de minorias que também foram perseguidas durante o Holocausto. Ciganos, gays, oposicionistas político-ideológicos, doentes físicos e mentais, todos evaporando como água aquecida. Agora, pelo visto, chegou a nossa vez. Nós, o inimigo maior destas bestas.

      Dev agitou as mãos como se tentasse dissipar uma cortina de fumaça.

    – O Senhor que me perdoe, mas alguém deveria dar uma lição nesses caras. Prender, ao menos. Estão tirando vidas, não estão? Achei que fosse um crime...

    – Não é pecado desejar o mal para quem faz o mal. – falou Niko sem qualquer compaixão. – Pelo que vi, e se foram realmente os mesmos com quem topei, são do tipo de gente que tem a alma mais estúpida e sórdida. Se morrerem não farão falta ao mundo. Quando se decompõem a própria terra deve os rejeitar.

    – Niko... – censurou a mãe.

    – O que é?! Esperava que eu estivesse morto?! – ele disse.

    – Você sabe que não, mas... não se deseja o mal se não se quer o mal de volta.

    – Ué, e o que foi que a senhora acabou de fazer? E diga isso para alguém que não tenha apanhado deles, pelo amor de... –levantou-se depressa da mesa antes de pronunciar o santo nome, evidenciando assim todo o seu mau humor.

      Dev olhou para Shaindel e balançou a cabeça:

    – Parece que os remédios dele não estão fazendo o mesmo efeito de antes...

      Mais tarde, após lavar os pratos, Niko se sentou à frente da tevê e começou a conferir os lances da Bundesliga quando o pai chegou. Niko não gostava de futebol, mas gostava de corpo de homem. Para não ser repreendido pelo pai, fazia questão de memorizar os placares.

    – Quanto no jogo do Meinz e Colônia? – foi a primeira coisa que Moshe perguntou ao passar pela porta.

    – Zero a um.

    – De quem foi o gol da Colônia?

    – Modeste... Modeste o fez.

    – Confesso que esperava um placar maior e... minha nossa, o que aconteceu com a sua cara?! – a atenção de Moshe estava toda para Niko agora, o futebol não mais existia.

    – Complicações. – Niko respondeu de qualquer jeito.

    – Que tipo de complicações? – insistiu o pai. – Me responda direito, Niko. O que houve, hã?

    – O seu filho apanhou de neonazistas quando foi ao bar esta tarde.

    – Não era para estar trabalhando? O que estava fazendo num bar? – Moshe arqueava a sobrancelha. Niko odiava ter suas costas postas contra a parede, fazia-o lembrar dos tempos de juventude quando era mais intensamente superprotegido.

    – Eu trabalhei e depois fui ao bar. – disse Niko. – Não passei o dia enchendo a cara, se é o que o senhor quer saber.

    – Por que não foram ao hospital?

    – Não é necessário, papai.

    – É claro que é necessário, olha só para essa sua cara! – ele disse.

    – O que aconteceu hoje que está tão preocupado comigo? – o jovem judeu olhava o pai de soslaio. – O caixa da delicatessen encheu hoje, foi?

    – Não posso mais me preocupar com o meu próprio filho? – disse o homem.

    – Pode. O que não pode é fazer o que fez ontem e dar uma de preocupado hoje.

    – O que foi que eu fiz ontem, Nikodemo? – Moshe batia o pé, impaciente.

    Bist meshugeh?¹² – Niko cruzou os braços para o pai. – Ah, vamos, o senhor deve se lembrar...

      Mas o semblante dele ainda se mantinha incorruptível.

    – Sobre Rabbi¹³ Lewinger, papai. – abespinhou-se Niko. – O modo como falou de mim para ele. Será possível que o senhor não viu nenhum mal no que fez?

    – O que foi que eu disse? – tornou a perguntar Moshe, pousando de leve sobre o braço do sofá a valise preta que trazia consigo do trabalho. – Preciso que me diga. Eu tive um dia cansativo, não tenho tempo para lidar com seus draminhas adolescentes. Por falar nisso, já está um pouco velho para chiliques de puberdade, não?

      Niko procurou forças para se manter rebatendo àquelas perguntas cujas respostas sabia que o pai já dispunha.

    Rabbi, meu caçula não é a pessoa mais indicada para você perguntar sobre esportes: ele não entende bulhufas dessas coisas de homem. O que será que o senhor acha que eu sou, um rato?

    – Ah, Nikodemo, faça-me o favor. Não acredito que tenha se zangado com coisa tão besta. – rebateu o pai com indiferença.

    – Obrigado pela parte que me toca. Muito obrigado mesmo. – resmungou Niko, tremendamente ressentido.

    – Ainda que esteja se doendo por uma besteira, saiba que eu não falei por mal. Lewinger é amicíssimo meu, você bem o sabe. Temos nossas piadinhas particulares como todo bom amigo. Agora, por favor, só me deixe chegar direito em casa, está bem?

      O Rabbi Levi Lewinger, tão citado nesta altercação entre pai e filho, era não menos que o mais abastado membro da Comunidade Judaica de Berlim. Dono de vastas propriedades agrícolas no leste alemão, era amigo de infância do senhor Moshe. Haviam crescido juntos às margens do rio Neisse na região de Görlitz pelo fato de pertencerem a famílias amigas. Os Lewinger, no entanto, sempre dispuseram de dinheiro de família, quando a De Machorro precisou lutar por praticamente tudo o que vieram a ter. O que não impediu ambos de serem bons amigos, estabelecendo assim uma rara relação de amizade que durou por décadas. Lewinger, sendo o homem bem nascido e sortudo que era, não permitiu que os alardes da vida o separassem de Moshe, dando a ele toda a forma de ajuda que lhe coubesse conceder.

    Lewinger realizava cerimônias na Nova Sinagoga de Berlim, e por motivo de ter cogitado construir uma pequena sinagoga ao norte do bairro de Bönheim foi que comprou há quinze anos a propriedade Das Spiegelhaus, imponente e boêmia construção de fachada triangular situada na rua acima a da casa dos Birkenholtz de Machorro. A sinagoga, no entanto, jamais saiu do papel por justificativas burocráticas, e a propriedade – que na maior parte do tempo esteve sem ninguém – ganhou a fama de mal-assombrada.

      O Rabbi fora ainda quem ajudara a organizar a cerimônia de Bar Mitzvah¹⁴ de Niko, e também quem a presidiu. O jovem, à época, ao ser apresentado para a comunidade judaica e tornar-se responsável por seus próprios atos, fora convidado por Lewinger a integrar o minyan¹⁵. Tendo se recusado, atraiu para si a ira do pai, uma vez que por sua recusa, o jovem Jacobe acabou ocupando o seu lugar. Jacobe, por sua vez, era filho do judeu Kalitzki, desafeto de Moshe desde a juventude quando namorara a então jovem Devoran. Como forma de punir Niko pelo ultraje, Moshe passou a agradar somente a irmã Shaindel e ao sobrinho Immanuel, a quem Niko odiava com todas as forças que tinha.

        Moshe e Niko não se davam bem desde muito tempo. Niko lembrava de alguns raros bons momentos com o pai quando era apenas uma criança, mas de alguma forma, sentia que ao tornar-se mais ciente do mundo, as coisas saíram do controle. Por vezes, ao estarem sós, conversavam entre si, mas sempre com uma certa resistência que, no fim das contas, nenhum dos dois compreendia muito bem.

      Naquela noite depois da breve discussão na sala, o Rabbi Lewinger veio os visitar.

    – Falando no bendito... – Niko ouviu Shaindel dizer quando avistou do vidro da porta o rabino se aproximar.

    – O que será que ele quer aqui de novo? – disse Niko mais para si mesmo do que para a irmã. – Tem vindo tanto nos últimos dias...

    – Ouvi papai falar sobre ele ter descoberto recentemente que sofre de uma doença renal crônica. Falaram algo sobre diagnóstico tardio, alguma coisa assim. Papai ficou bastante preocupado depois disso, pelo menos eu o percebi assim. Eles estavam até discutindo juntos sobre esse assunto ontem à noite quando papai comentou aquela besteira sobre você. Além do mais, como papai, Lewinger também tem hipertensão. Agora você imagina, o médico deu um sermão nele. Os dois até parecem irmãos, Lewinger e nosso pai. Ambos cabeças-duras.

    – Por falar nisso, – começou Niko. – acho que papai deixou de tomar os remédios de novo, sabia?

    – Por que acha isso? – indagou Shaindel, um vinco de preocupação surgindo em sua testa.

    – Fui tirar um remédio para enxaqueca do kit de primeiros socorros anteontem e achei as cartelas dele lá dentro. Aquelas que compramos no mês retrasado, todas intactas.

    – Ah, mas ele vai ouvir de mim agora... – Shaindel agitava a cabeça.

      O rabino já à porta bateu três vezes.

    – É melhor deixar isso para depois. Sabe como papai odeia ser repreendido na frente dos outros. – advertiu o irmão.

      Shaindel abriu a porta com um sorriso forçado. Deu passagem ao rabino, não sem antes dar boa noite a ele.

    – Aconteceu alguma coisa, Rabbi? – indagou Niko fingindo interesse.

      O velho aparentava estar com a cabeça cheia de nuvens. No entanto, não se demorou a dizer:

    – Vim falar com o seu pai, ele está?

    – Subiu ainda pouco para o quarto. Eu vou chamá-lo.

    – Se ele estiver dormindo, não o perturbe, por favor.

    – Não, ele realmente acabou de subir. Volto já. – disse Niko com certa simpatia, apesar de não querer dar o braço a torcer falando com o pai mais cedo do que o esperado.

      O processo de reconciliação não fora nada fácil para nenhum dos dois lados, mas pelo menos o gelo entre eles havia se partido de alguma forma e ambos sabiam que aquilo não duraria muito tempo. Apesar de não terem a mesma fluição de diálogo que dispunham de quando Moshe era mais novo e Niko uma criança, os dois homens da casa Birkenholtz de Machorro não conseguiam passar tanto tempo sem se falar mesmo se assim pretendessem. Seria um feito notável que alguém realmente conseguisse tal proeza morando debaixo do mesmo teto do indivíduo com quem se recusa o diálogo, a menos que as motivações que levem a tal odiosidade sejam anômalas e até justificáveis, e a estadia dos dois oponentes no mesmo ponto se dê por inviabilidade de uma mudança iminente de lar.

    – Pai, hã... Lewinger está querendo falar com o senhor lá embaixo.

      Por algum motivo, Moshe parecia já saber que ele viria.

    – Ah, ótimo. Eu estava realmente querendo falar com ele...

      Quando o pai tentou passar pela porta, Niko o parou levemente com a mão direita.

    – Escuta, pai. Sobre a doença de Rabbi... é verdade?

      O pai suspirou pesadamente e assentiu, desviando os olhos do filho talvez por mero desconcerto causado pela dor de um fato tão infeliz como aquele. Lewinger fora seu melhor amigo por anos a fio. Descobrir a doença não doía somente no rabino, mas igualmente em quem quer que tivesse por ele afeição.

    – Os rins dele estão a ponto de parar. – revelou Moshe com evidente inquietação. – Lewinger me ajudou em tantos episódios da vida, de nossas vidas. Eu simplesmente não posso deixá-lo na mão numa hora dessas...

      O pai tentou se desvencilhar do filho para enfim ir ao encontro do amigo no andar de baixo, mas Niko tornou a pará-lo.

    – Decerto que você não pode, mas escute, Rabbi não é somente amigo seu. É também amigo da família, e acima de tudo, aquele que me batizou e me iniciou para a vida adulta diante da Torá. Não se esqueça de que nós nos importamos com ele também. Eu trabalho, Shaindel acabou de ingressar numa clínica maior e melhor do que a primeira em que estagiou, e mamãe tem a grana da aposentadoria dela. Você não está sozinho nessa, está bem? O que quer que possamos fazer por ele, nós faremos. Mas não fique guardando tudo para si. Abra o jogo, pai. É o melhor que você pode fazer por ele e por si mesmo.

      Por um minuto, Niko pensou ter visto no semblante do pai uma tristeza tão profunda que, se materializada de alguma forma, sairia da órbita de seus olhos. Mas ele não o viu chorar. Moshe sempre fora muito forte, até mesmo quando sua mãe morrera por derrame cerebral há quatorze anos.

    – No momento, creio que posso dar conta disso sozinho.

      Niko concordou, pensativo. O pai continuou:

    – A delicatessen nos têm rendido muito nesses últimos tempos. Ainda tem a poupança de emergência e, posso dizer, este é um momento de emergência. Usarei ela de muito bom grado para ajudá-lo a restaurar sua saúde. Vi homens sucumbirem a esta maldita doença e não desejo isso para Lewinger como para ninguém mais. Mesmo assim, obrigado, meu filho. É bom saber... hã, que posso contar com minha família.

      Então desceu e foi falar com o rabino na sala de estar à companhia de Dev.

      Niko sabia que a última coisa que poderia faltar na vida do rabino era dinheiro. No entanto, com a família opulenta e oportunista que o mesmo tinha, Moshe tinha certa noção de que Lewinger poderia não ser tratado de acordo com a gravidade de sua enfermidade. Se não por sua família, ele mesmo o trataria e pagaria o melhor do melhor. Ainda que um homem soturno e rabugento, Moshe sempre prezara pelas suas amizades. Quem quer que não prezasse pela dele se, porventura, viesse a sucumbir a algum mal antes do tempo calculado, azar seria o deles. Niko não tinha a melhor das relações com o pai, mas não poderia negar que era um homem justo, tentando alcançar até o que estava para além de seu alcance.

      Quando desceu após um banho demorado, Lewinger e a família já estavam reunidos em jantar como na noite passada. O rabino, por não ser rodeado de boa gente como bem gostaria, aproveitava as horas de seu dia a conviver com aquela família que considerava apropriada e, em suas palavras, era a família que ele gostaria de ter. Niko então se sentou na cadeira da lateral esquerda da mesa, de modo que ficou de frente para o rabino que falava ao momento sobre as periculosidades do mundo banal enquanto se concentrava no prato.

    – Como os girassóis se voltam para o sol, o espírito deste país se volta para o seu passado. Contudo, esta não é uma fotossíntese positiva, mas negativa. Não estão procurando por aprender com os erros, acreditem. O sol deles é arrasador, e a regressão pela qual procuram tem fins nada evolutivos, aspiram por um poder perdido em outro tempo, e não é tão improvável assim que o consigam. A cultura está definhando, todos podem ver. Verdadeiros déspotas têm olho vivo, sabem exatamente a hora de agir.

    – Do que está falando, Rabbi? – perguntou Niko, desorientado.

      Lewinger apontou para a tevê da sala. Passava uma reportagem do jornal da noite sobre a onda de violência que vinha assolando o país. Era como se houvesse uma disputa nacional de agressão a minorias. Ciganos, homossexuais, negros, deficientes...  mas no centro do alvo estavam os judeus outra vez, aqueles que os atingissem estariam com a maior contagem de pontos. Acima do caos, a disputa eleitoral era conduzida por um dos partidos mais polêmicos dos últimos tempos, Pelo Critério e Pela Verdade, um anacronismo que estava atirando novos corpos à pilha de ossos da Segunda Guerra. Apesar de ela pertencer a tempos idos, não parecia estar assim tão distante.

    – Bando de hooligans nojentos... – Niko ouviu o pai dizer. – Aposto que são todos bem-nascidos. Alguém já viu por aí um neonazista pobretão? É como enterro de anão, raro de se ver! E se existe, só pode ser da espécie de pessoa mais sem-noção da Terra.

    O rabino riu-se e, ao voltar a atenção para Niko, sobressaltou-se.

    Oy gevalt!¹⁶ Niko, o que aconteceu com a sua cara?! Eu ainda não tinha olhado direito para ela.

    Ninguém realmente olha, o judeu se lamentou em pensamento.

    – Hã... digamos que eu fui agredido por um desses neonazistas... como nos velhos tempos.

    – Fico pasmo de como essas coisas ainda acontecem hoje em dia. – Lewinger disse, dando uma nova beliscada na comida.

    – Você não imagina o quanto. – respondeu Niko a apalpar as feridas delicadamente.

    – Com a graça de Hashem¹⁷, os velhos tempos não serão os novos tempos. Alevai! Alevai!¹⁸ Ele há de ser justo... – passou uns segundos matutando enquanto brincava com o caldo no prato, daí tornou a falar. – Mas tomar algumas medidas drásticas não seria de todo mal.

    – Sim, você tem razão. – concordou Niko. – Alguém precisa dar uma lição nesses neo... aliás, nunca entendi essa questão do neo. No fim das contas, estão todos na mesma sacola de ignorância sórdida, o velho e o novo.

    – Você nem sabe, Rabbi. – começou Dev. – O cigano Cédric foi agredido por um desses bandoleiros.

    – Agredido não, né? – interferiu Shaindel, ainda indignada com a situação do cigano. – Ele foi praticamente trucidado por eles. Está entre a vida e a morte.

    – Já disse uma vez e volto a dizer. Merecem ser todos dizimados tal como nós fomos no passado. – comentou friamente o velho Moshe.

    – Não se paga o mal com o mal, querido. – censurou a esposa. – Você mais do que ninguém deveria saber disso.

    – Ah, Dev, não me amole. Ambos sabemos que no fundo isso não é bem verdade. Cédric era gay, mas ainda assim um homem de bem. Nunca ouvi falar que arranjou confusão com alguém, e olhe só o que esses doentes mentais fizeram com ele. Praticamente morto.

    – Papai, eu não entendi a colocação do mas na sua frase. – protestou o filho.

    – Ah, você me entendeu, Niko. Não me amole também. – rezingou Moshe batendo a colher no fundo do prato no esforço de dividir um kneidlach ao meio.

      A reportagem na tevê da sala mudou de caráter, fluindo de violência contra minorias sociais para genocídio. Recentes explosões em duas sinagogas de Istambul, dizia o letreiro sob a imagem da repórter.

    – Que coisa horrível... – Niko ouviu Lewinger murmurar. Parecia realmente assombrado dada a sua palidez, ou talvez estivesse pálido por conta da doença.

    Ao menos 35 pessoas morreram e 272 ficaram feridas agora em Istambul, na Turquia, após a explosão quase simultânea de dois carros-bomba diante de duas sinagogas durante a celebração do Shabat, o dia judaico de descanso e orações. O grupo extremista islâmico Al-Kharif reivindicou os ataques, mas autoridades turcas disseram que a rede terrorista Daesh poderia ter sido a verdadeira responsável pelo atentado. A França e a Alemanha ressaltaram, em notas ao governo turco, a luta contra o terror e antissemitismo. ‘É um horror que ataques desta natureza estejam se tornando tão banais’, disse o ministro do Exterior alemão, Nilus Hartwig, que ainda ressaltou que a Alemanha oferecerá toda ajuda a Turquia.

    Lewinger achou graça.

    – Rá! Essa proteção vai ser tão breve quanto o Pacto de Não-agressão Germano-turco...

      Quando a reportagem acabou dando espaço à matéria sobre a nova coalizão entre conservadores e populistas de direita, o rabino voltou sua atenção para o prato e comentou com pesar:

    – É, meus amigos. É um tempo obscuro demais. Resguardem-se, resguardem-se o quanto puderem. O mal vem de dentro para fora. E o anjo da história que traz consigo a tocha da redenção não é capaz de evitar que os seus respingos de fogo caiam sobre os oprimidos. Parece ser chegada a hora do messias¹⁹, a superação do desespero, o triunfo da esperança. Posso ouvir os sinos históricos tremulando agora mesmo. Só não sei se quem os balança está do nosso lado.

      Aos olhos de Niko, o Rabbi Levi Lewinger sempre fora uma pessoa bem-humorada e otimista, o tipo de gente de quem se tem uma certa inveja branca por expressar tamanha prosperidade. Agora naquelas circunstâncias, no entanto, revelava em si um lado niilista que Niko nunca imaginou que fosse conhecer um dia. Parecia tão cansado da vida, quase delirante, e não guardava na mente as expectativas de outrora. Via tudo com maus olhos, o que era até justificável, a qualquer momento poderia ter um colapso caso o seu problema de saúde se agravasse. Para complementar seu infortúnio, o rabino estava sendo atormentado por uma tosse insistente, o muco em seu peito fazia-o vibrar como o ronronar de um gato. Quando ela partiu, os ombros dele se elevaram e se abaixaram num suspiro comovido.

    Em meio a estas observações, Niko resolveu dizer a ele:

    – Rabbi, eu ouvi sobre a sua doença e quero dizer, estou aqui para ajudá-lo. Não ganho muito, mas tenho dinheiro guardado e é o bastante para pagar por um tratamento.

      Lewinger sorriu parecendo meio constrangido.

    – Eu tenho certeza de que você tem, Niko. Sempre foi tão dedicado em tudo o que faz. Mas guarde o seu dinheiro para outra coisa, está bem? Algo que valha ainda mais a pena. Como o

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1