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Sós
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E-book92 páginas1 hora

Sós

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Sobre este e-book

Do ventre da mãe ao ventre da terra, conta-se uma história. Abdica-se do sono dos tempos em que ser um era ser dois, e tudo e nada. Agora, grande (grande criança), paga as contas, mastiga, põe as mãos nos bolsos, baixa a cabeça para ver se alguém curtiu. Curtiu. E segue.
Dentro disso não há trégua. Narciso e Narcótico perderam os amigos para a multidão. 
De cada esfera ressoa uma fonte. De cada bolha estouram ondas de rádio. Sós, mancamos, unidos. E depois, já não. 
A torneira seguirá pingando como um deus que pisca.

IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de out. de 2018
ISBN9781386422235
Sós

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    Sós - Tiago Novaes

    Prefácio

    Do ventre da mãe ao ventre da terra, conta-se uma história. Abdica-se do sono dos tempos em que ser um era ser dois, e tudo e nada. Agora, grande (grande criança), paga as contas, mastiga, põe as mãos nos bolsos, baixa a cabeça para ver se alguém curtiu. Curtiu. E segue.

    Dentro disso não há trégua. Narciso e Narcótico perderam os amigos para a multidão.

    De cada esfera ressoa uma fonte. De cada bolha estouram ondas de rádio. Sós, mancamos, unidos. E depois, já não.

    A torneira seguirá pingando como um deus que pisca.

    Tiago Novaes

    Organizador

    Dor

    Érika Gentile

    Eram pretas as saias que varriam o chão, como asas de urubus. O homem vociferava pelos corredores com um livro nas mãos. Ela estava distraída. Ele bradava contra os pecados, a voz era muito forte, os braços gesticulavam enquanto andava entre as fileiras de mulheres ajoelhadas, cabisbaixas, retendo suspiros. "Porque fizeste isso, serás maldita." Ela pensou no João, atrás do paiol, nos corpos deles se esfregando no muro, mas não se mexeu. A veste soturna rodopiava vigorosa e o padre inquiria com olhos agudos.

    Agora já não estava de joelhos, mas de quatro, no piso, um corredor imenso, vermelho, irregular. Encerava ladrilho por ladrilho. Outra saia veio até ela. Olhou sua barriga avantajada. A saia era branca. Já está quase no fim. Não soube se falava da barriga ou do corredor.

    Não tem mais saias, apenas a sua mãe mexendo o doce de goiaba na panela. O doce é vermelho, mas as toalhinhas continuam brancas.

    Procurou dona Cidinha Toco de Açougue. Moça direita não fala com ela, moça direita não sabe o seu nome. Dona Cidinha não pode ajudar. Deixou passar três regras. Se tem perigo para você, tem perigo para mim.

    Cinco amigos do João vão dizer que estiveram com ela no paiol. João tomou o trem. João foi para a capital. João é muito jovem. João tem planos. João vai ser doutor.

    No escuro, lampejam os olhos furiosos do seu pai, cintilam as lágrimas silenciosas de sua mãe. Rins quentes, eu avisei que ela tinha rins quentes. A boca sangrando de sua mãe. Ela não. As toalhinhas estavam brancas.

    A estrada era comprida e esburacada, a mãe foi ficando pequena na porteira, só o fio de sangue lhe escorrendo pela boca, o carro sacolejava pelos buracos, a poeira vermelha fechava o horizonte, o corpo tremia todo e as toalhinhas permaneciam brancas.

    Porque já não havia regras foi se acostumando com o movimento involuntário do seu ventre. Ousou um nome. Atreveu-se a ansiar. De lã furtada fez casaquinhos. Súbito, vinha aquela tristeza de séculos ressuscitar a lembrança de sua mãe esmaecendo na paisagem, os olhos de repulsa do seu pai, o desencargo de João. O tormento de pensar era tão grande que ela se concentrava nos ladrilhos vermelhos do imenso passadiço.

    Sentiu o espasmo saindo lá do meio das costas, pequeno e depois intenso, "Multiplicarei os sofrimentos de teu parto: darás à luz com dor teus filhos", a ira do clérigo ressurgindo de outras vidas. Tudo estava rebentando, um rio saindo pelas pernas abertas, a luz branca no teto e o grito para fazer força.

    Uma menina escarlate surgiu no alto, tinha a cara amassada e os cabelos revoltos e lambuzados. Gritava com a força e a raiva de todas as mulheres do mundo. Um homem a segurava pelos pés.

    Ela estendeu os braços, queria alcançar a menina que pairava no ar.

    Vestida com um véu branco, apareceu outra mulher. Não era a Virgem Maria, mas, com a pujança de legítima autoridade, recitou a sua infinita danação.

    – Não é sua. Não vai ficar com ela, Domitila.

    E o mundo, desalinhado, inundou de vermelho as imaculadas toalhinhas.

    Rio

    Tatiana Lazzarotto

    O rio faz mais que correr.

    Existe um rio caudaloso e imponente que atravessa Valstagna, uma comune da região do Vêneto, norte da Itália. Foi o barulho dele que ouvi quando cheguei pelos trilhos.

    É possível classificar as cidades italianas pelo número de linhas nas estações. Algumas têm vinte, outras, quatorze, existem aquelas com seis. A de Valstagna só tinha uma. Um lado para partir, outro para voltar. Parecia que quase ninguém chegava na terra de onde meu bisavô saíra um século antes. Uma cidadezinha circundada por paredões de terra, geografia propícia ao plantio de fumo. Lembrei-me do pequeno distrito no Rio Grande do Sul onde eles se prenderam. Os imigrantes sempre buscam um lugar igual ao de onde vieram para se firmar.

    Embora as montanhas fossem tão grandes na cidade tão pequena, era o rio Brenta o mais deslocado. O correr de suas águas ditava as ordens. Tateei ao redor dele em busca de entender do que era feito tudo: as construções, ruas e estátuas e como elas se relacionavam com a minha identidade. Nas várias placas de homenagem, encontrei os meus: eu dividia o sobrenome com aqueles eternizados no mármore.

    O rio me apresentou a igreja central, velha e maciça. Depois das escadarias, li ao lado da porta principal: Nível das águas, Enchente 4 nov 1966. O rio invadira a terra na pior enchente da sua história. Voltei-me e o vi, seguindo seu rumo. Caminhei pela margem, aguardando a próxima paragem.

    Era uma capelinha pequena, que duas senhorinhas limpavam. "Ciao, sou Tatiana, brasileira, vim conhecer a terra de meu bisavô", disse em italiano. A mais baixa, balde e vassoura em punho, apertou os olhinhos para me cumprimentar. A mais alta, ressabiada, não me trocou muita palavra. A primeira me fez perguntas acaloradas e exclamou que me levariam para um tour. A segunda receou, mas foi vencida.

    Cruzei com pessoas que me diziam que não era a menor novidade eu ser uma Lazzarotto, ali quase todos eram. Eu já ocupava a cidade como se fosse dela. O barulho do rio já não me assustava, muito porque eu era embalada pelo dialeto das matronas. Era como se minha nonna me cantarolasse ao pé do ouvido.

    Passeei pela cidade décadas antes e a assisti sendo reconstruída pós-enchente. A força das águas se confundia com a força dos homens. Essa lembrança do que não vivi me trouxe o retrato dos meus, os rostos sofridos dos nonnos, a miséria tão deles, a nonna abortando e depois parindo, a tia doente, o tio paralítico, meu pai carregando

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