Bruxa
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Bruxa - Anna Rita Sartore
Sumário
Vida e Cheiros
Buraco Quente
Paralelepípedo
Magos, Mortos e Professores
Stratford-upon-Avon
Os Figurantes
O Nome da Paz Possível
Re-Morrer
A Comédia Divina
Incubis et Succubis
A Cerveja e os Fios
Sobre a Peste, Martelos e Bruxas
Primeiro Ato
O desastre: Igor e Beatrice
O resgate: Edu e Igor
O Tabefe e o Riso solto
Segunda chance: Edu e Enzo
Prometheu
Os Notáveis, o Buraco de Minhoca e o Inconsciente
A Divina Comédia
Segundo Ato
Na coxia
Hipnose: a Matéria Exótica e a Intervenção
Terceiro Ato
Wilmcote e a Última Vítima
Quarto Ato
Ato Final
Créditos
Vida e Cheiros
— Igor...
— IGOR...
— Hã...
— Vou ler para você, atenção:
O monge dita o livro sagrado e os copistas, inúmeros, traçam o divino no papel.
O trabalho é lento; uma página ao dia, duas talvez.
As costas se curvam, os dedos enregelam.
Estão no Scriptorium; o chão de degraus compõe o anfiteatro de silêncio austero e frio porque voltado para o sul. Assim ditavam as Regras: conforto, naquele espaço, era iniquidade.
Na sala anexa, um fogão a lenha tem como única função aquela de permitir a mistura das tintas com o aglutinante, mas o corpo, pecador, nele também aquece as mãos.
— O que você achou?
— Bom!
O arrependimento veio mal Igor fechou a boca. Ele pretendia ter colocado mais entusiasmo na afirmação, mas, lamentavelmente, estava distraído; não prestara a devida atenção à leitura que a esposa fazia e o término da frase antes do previsto, apanhou-o de surpresa. Sentiu as nuvens escuras se formarem rapidamente no aposento; era quase possível tocá-las e, então, veio o inevitável...
— Bom? Bom, como, Igor? Bom, enquanto texto correto? Bom, visto que permite ao leitor formar uma imagem que remonte aos monastérios medievais, como eu pretendo? Ou, bom só porque você está me respondendo com a pequena parte do seu cérebro que o Ipad ainda não decompôs?
‘Talvez um gracejo desconstrua essa hecatombe que vai me apanhar…’
— Não vou criar provas contra mim, Dedé...
— Pelo menos, fez você lembrar O Nome da Rosa?
Como não faria amor se o teu Umberto Eco, os cemitérios em Praga, pêndulos e eteceteras vivem deitados no meu lado da cama?
Silêncio.
A expressão de austeridade que aquela mulher, do alto de seus 158 centímetros, conseguia estampar no rosto, sem mover um único músculo, nunca deixou de surpreendê-lo.
‘Assustador’, pensou.
Igor já sentia as fagulhas da fogueira que trariam o seu fim.
Talvez, quem sabe, um tanto de elogios e, finalmente, um final másculo, decisivo, definitivo, com aquele tom completamente proibido na cultura, atualmente, pudesse pôr fim ao desastre.
— Está lindo, Dedé! Tudo o que você escreve é lindo; tudo o que você faz, é lindo. Você é lin-da e... E com isso dou por encerrada a contenda. Fui.
‘Homem impossível’.
Nesse ponto da tensão, o lápis que sustentava o coque desarrumado, de cabelos vermelhos, caiu sobre o teclado. Isso distraiu a jovem pondo fim tanto à sua empreitada literária quanto ao suplício de Igor, que saiu sorrateiramente.
Beatrice era Dedé, um apelido cuja origem ou razão ninguém nunca soube precisar. Acabara seu tempo para escrever; tempo obtido com muita disciplina entre as aulas e seu trabalho como restauradora de livros que era um passatempo nascido de um talento e fama de consertadora
, desde a infância. Com a ajuda de amigos e impulsionada pelas facilidades da divulgação via relações virtuais, Dedé se tornara conhecida nos círculos de amantes de obras antigas; fazia maravilhas a preços honestos, embora isso não fosse sinônimo de barato.
Quem tivesse um livro desmanchando diante dos olhos podia contar com ela. Sem pressa, claro. Restaurações, por vezes, demoravam meses, mas a jovem era franca desde a primeira avaliação e prevenia logo sobre a dificuldade de precisar uma data para conclusão do trabalho. Evitava, assim, enfrentar cobranças constantes.
Embora soasse bem, ser restauradora não incluía cifras de tirar o fôlego, nem mecenas de ternos finos, e carro esporte, suspirando e patrocinando seu talento para resgatar algumas obras da sepultura eminente.
Ser restauradora significava, de fato, ter as unhas sempre arruinadas e abdicar do maior e mais iluminado cômodo do próprio apartamento em prol de espaço para acomodar bancada, lupas, mesas, de luz e de higienização, placas, secadora, pincéis, prensas e tudo isso cheirando, sazonalmente, a mofo. Essa era uma faceta da vida de Dedé.
Para si e seu atual, intrigante e, por vezes, intolerável, parceiro, ainda restara um bom quarto, absolutamente branco. Havia cores demais passando pelos olhos do casal durante o dia, quer nas ilustrações espalhadas por todos os cantos, quer nos inúmeros sapatos de ambos. Estes últimos, vez por outra, produziam apuros financeiros ao casal, o que não causava maior perturbação porque, sendo uma insanidade compartilhada, reprimendas não entravam no circuito.
O quarto de Dedé e Igor também era o quarto de uma cacofonia olfativa. Tudo o que pudesse exalar perfume, lá teria pousada garantida. Difusores, sachês, cremes, velas. Essa era uma obsessão só dela e, por isso, vez por outra, reprovações sutis pairavam no ar. Dedé estava disposta a ignorá-las porque, afinal, nada, mas nada mesmo lhe oferecia um prazer mais inebriante, quase narcótico, do que uma boa fragrância. De acordo com a pungência do aroma, seu cérebro oscilava fora de prumo. Era uma sensação ótima.
Certa ocasião, depois assistir a um filme que contava a história de um menino assassino em busca do aroma perfeito, Beatrice fantasiou uma nova narrativa biográfica para si. Freud nomeou essa prática de criar uma novela familiar
. Esta seria a versão mágica a respeito das próprias origens, inventada pelas crianças. Na sua novela familiar, Dedé se via como um bebê clandestino em algum navio, embrulhada em sedas e recendendo a essências orientais. Segundo o seu roteiro, era um desses aromas que ela perseguia pela vida afora. Claro que o fato de ser filha de uma costureira e do dono de uma banca de jornal, no interior do estado, insistia em desconstruir seu script.
Talvez, os sentimentos que as fragrâncias lhe despertavam desde que se lembrava, tivessem se originado da breve convivência com sua bisavó italiana que sempre tinha uma folha de hortelã presa à blusa. Esta parecia uma explicação mais razoável para justificar seus afetos olfativos. Naquele colo, as lembranças misturavam leite, bolinhos açucarados e histórias do bambino Gesú
.
A vida tinha memória...
Com isso em mente, entrou no carro e se dirigiu para o trabalho, rumo à sua viagem particular para o século XV. Ia tratar da literatura do humanismo e de sua querida Florença com uma plateia acadêmica. Dedé admirava a habilidade de seus alunos para manejar continuamente, com uma só mão, o teclado dos smartphones se tirar os olhos dela. Era a parcela possível de respeito conferida ao professor, nos dias atuais. Faziam lembrar equilibristas de pratos em um circo maluco. Essa era a outra faceta e sua vida.
Vida instigante, segundo ela própria. Afinal, poder trabalhar conduzindo seus ouvintes pelas trilhas e becos do passado, lhe proporcionava muito prazer. Em tempos prosaicos e sem graça, ela considerava empolgante discutir o cotidiano da Idade Média e os efeitos de assustadores de seus axiomas como, por exemplo, aquele da bula dictatus papal, em 1075.
As palavras têm poder (lembrava Freud) e um dos decretos do papa Gregório VII asseverava, sem constrangimento algum, que:
O papa é senhor absoluto da Igreja, bem como o senhor supremo do mundo e a Igreja romana não erra e nem jamais errará
.
‘Uau. Modéstia, definitivamente, não era uma das virtudes de Sua Santidade.’
Viver no tempo dessas premissas, Dedé sabia, fora tremendo. Contrariar a Igreja custava caro aos infratores.
Desceu pelo elevador, brincando com o chaveiro em forma de Coliseu Romano e pensou:
‘Eu preciso de terapia que me resgate para viver no presente.’
Entrou no carro e saiu da garagem para a chuva fina que tornava o trânsito, se possível, ainda pior. Dedé era uma motorista arrojada e nunca compreendeu porque essa condição atmosférica produzia um efeito tão acentuado nas vias da cidade.
‘Meu Deus, parece que basta o asfalto ficar úmido para que todo o carro comece a andar nas ponta dos pés, ou... dos pneus’
Dedé tinha um percurso todo seu de chegar ao trabalho que não podia ser classificado como funcional, mas que lhe era muito agradável. Percorria sempre por ruelas estreitas cujas árvores afrontavam, resolutas, a fiação elétrica e deitavam sombras contínuas e amigáveis pelo caminho. No verão, era como entrar em túnel refrigerado; uma ilha de frescor, pensava Beatrice todas as vezes que a queda de temperatura se fazia sentir pela janela, sempre aberta, de seu carro.
Nesse percurso, podia apreciar as casas cuja inspiração arquitetônica bebera da opulência dos barões do café. Colunas, tijolos aparentes, muros derrotados pelas heras. No caminho, revezavam-se manacás, ipês, buganvílias e paineiras.
A natureza era criativa à beça, em sua opinião.
Das inúmeras mansões da região, uma era a sua predileta e tirava seu fôlego a ponto de ela ter decidido, em um dia que estava particularmente desafiadora, entrar naquele templo a qualquer custo.
Não custou nada.
Foi, aliás, uma visita saborosa, acompanhada pelo olhar paternal e passos um tanto lentos de um velho corretor. Experiente, ele soube de imediato que aquela apresentação não resultaria em venda; atenderia apenas aos devaneios daquela moça simpática, improvável compradora. Com isso em mente, traçou a rota com capricho; queria que fosse uma visita encantadora. Nada de apresentar detalhes práticos e vulgares como o potencial da fiação elétrica ou a solidez das vigas.
‘Vamos brincar de contos de fadas. Para essa mocinha, só as belezas do palácio’, pensou Nogueira.
Lado a lado na entrada de cascalho, salgueiros chorões derramavam suas ramas até encostarem no gramado claro. O trecho a pé era formado por uma viela curta, margeada de flores e pavimentada por pedras escuras entremeadas de musgo brilhante. Esse caminho, em forma de meia lua, terminava diante de uma porta, surpreendentemente, enorme.
Uma vez aberta, a luz fazia com que os metais dourados e os cristais cumprissem a sua missão de brilhar. No chão de mármore, ora branco, ora negro, conviviam tapetes de dimensões pouco razoáveis. Persas e chineses se revezavam nos ambientes contíguos em uma contenda entre o vinho e negro, dos primeiros e o azul frio de seus rivais. Dedé tendia a gostar mais de modelos persas, aqueles chineses não a encantavam tanto.
Em seguida, depois de vencer a escada cinematográfica, os dois chegaram aos dormitórios. Eram tantos e tão enormes que, subitamente, Dedé deixou escapar em voz alta:
— Ah, mas esse lugar não nasceu para ser casa, de jeito nenhum. Uma mãe pode perder seus filhos, para sempre, por aqui....
Riram.
E, enquanto os saltos de seus belos sapatos faziam barulho no chão de tábuas, imaginou amantes suspirando nas alcovas, sussurros de reuniões secretas, ritos e músicas de câmara nos salões. Riu sozinha.
‘Definitivamente, preciso voltar para te-ra-pia’.
Depois foi a vez de visitar o mezanino com suas duas lareiras e a surpreendente cozinha. Ainda que um tanto antiquada, ela exibia fornos e balcões tão grandes que sugeriam a manufatura de banquetes fartos.
Não havia piscina na propriedade o que, a princípio, a surpreendeu. Mas a ausência logo se justificou porque seu espaço fora preenchido por um bosque elegante, com uma fonte simples e arbustos floridos. Ele fazia bem mais sentido, naquela propriedade, do que um tanque para pessoas. A escolha recebeu a aprovação muda da visitante.
Finda visita, Dedé achou que não fazia sentido algum perguntar o preço do imóvel. Na verdade, ela não perguntara coisa alguma, além de pedir permissão para algumas fotos. Apenas caminhara pelos espaços daquele casarão que só uma fortuna de origem delituosa, permitia existir.
Lembrou-se do escritor francês, Honoré de Balzac, sentenciando: atrás de toda fortuna, há um crime...
— Muito obrigada, seu Nogueira. O senhor foi muito gentil — E os olhares trocados bastaram para compreensão mútua.
— Foi um prazer, senhorita Beatriz.
— Agradeço ter ocupado o seu tempo comigo, já que...
Frase que o velho interrompeu com um gesto
— Não tem o que agradecer senhorita; coisas belas são para serem vistas por quem aprecia. Se quiser, venha outras vezes enquanto alguém não arrebata essa joia. Com um forte aperto de mão eles se despediram e Dedé embarcou em seu carro, rumo ao trabalho com uma engraçada sensação de missão cumprida.
Naquele dia chuvoso, Dedé rememorava os detalhes dessa visita enquanto passava diante da mansão, eternamente à venda. A chuva cessara e ela tornou a abrir o vidro do carro. Vidros fechados a oprimiam. Preferia o calor, o frio, o barulho ou o que fosse, desde que pudesse respirar ar de verdade.
Desacelerou o carro para olhar melhor a beleza de tudo pela janela. O cheiro de grama molhada lhe inspirava uma avaliação otimista do próprio ano, que chegaria ao fim em algumas semanas.
Fora um ano bom e sua vida, afinal de contas, era uma vida bela.
E foi, justamente, um cheiro que pôs fim ao belo e ao bom.
O cheiro de ferro, cheiro rude, dramático. Cheiro de sangue que espirrou de modo inadequado no seu antebraço esquerdo. Em segundos, a sua mente decretou a sentença que vinha sem chance de apelação ou recurso e ela pensou:
‘Então, é desse jeito que acaba? Que pena’...
Buraco Quente
Na comunidade conhecida como Buraco Quente, o garoto magro, negro, machucado desde sempre por todo o corpo e alma, avaliava o butim, a pilhagem da ação de guerra de há pouco no semáforo.
Guerra porque, para o garoto, essa era a única condição de sobrevivência que o mundo lhe dera a conhecer. Olhou a bolsa, enxugou o sangue em um trapo imundo, girou nas mãos o celular arranhado, retirou cartões e as poucas cédulas da carteira.
— Miséria, dona miserável!
O dinheiro era pouco para mais do que uma refeição, mas suficiente para algumas pedras.
Dedé teria compreendido o garoto completamente. Não seria hipócrita, não lhe teria dado um abraço ou perdão, mas era uma mulher objetiva. Ela diria:
— Não espere humanidade de quem não sabe do que isso se trata...
Tatuzinho só conhecera a dor, privação, violência, humilhação e medo. Medo, medo e medo. Houve uma única figura, do seu percurso nesse mundinho, que dera mostras do que era ser um-ser-humano.
Quem mais, senão uma professora?
Toda hora a dona vinha com gibis, figuras engraçadas e esquisitices, tentando ensiná-lo a ler. Mas esse rasgo de algo não-ruim na sua vida se concentrava, e se reduzia, a essa pessoa e ele já conhecera um bocado de gente em seus 15 anos. Portanto, o saldo da avaliação era que o mundo era um mundo-ruim.
Na época que frequentava a escola, ele até provia a segurança do carro da ‘profe’ boa, avisando aos incautos que naquele
não se mexia. Quando não estava chapado, esse era o troco possível para bondade recebida. Quando chapado, tudo tanto-fazia.
Examinou o resultado da limpeza dos objetos; em seguida mergulhou as mãos numa tina qualquer, naquele barraco de ninguém e enxugou-as batendo palma e costas das duas mãos na bermuda surrada.
Olhou para as mãos, mãos negras.... Como seria ser branco e rico? Como seria um colo?
Ele via sim, quando moleque, mães que abraçavam crianças e as pegavam no colo, mas pouco via a sua própria mãe. Não havia comida para todos; ele tinha que se virar. Devia ser bom: colo e comida a qualquer hora que se quisesse.
Empurrou a porta bamba que chiava e saiu assobiando. Passou pela viela que, de tão estreita, nem o sol alcançava; numa de suas margens corria um fio ininterrupto de água esverdeada. Saltou o filete e os entulhos do caminho e deu um tapa na nuca de um guri sem roupa, que logo começou a chorar. Ouviu, então, os xingamentos de uma mulher, ao longe, mas não se importou.
Poucas coisas importavam a Tatuzinho. Ia rumo ao crack e ao prazer possível naquela sua vida; vida não-boa e não-bela…
Paralelepípedo
Igor deixou a mão que apertava o celular escorregar, devagar, em uma trajetória descendente desde o ouvido até o braço ficar esticado e paralelo ao tronco. Olhava para o nada onde a dor tomava forma, bem ali, na sua frente. Por uma fração de segundo as pernas dobraram, levemente, ao peso da notícia. Era o peso do universo todo no seu peito e depois de toda a eternidade de alguns segundos, ele se sentou.
Que ela era boa demais para ele, sempre soubera. Sabia que podia perdê-la a qualquer momento para um doutor alinhado; talvez o tal reitor grisalho ou um escritor famoso ou um empresário rico.
Não. Empresário, não. Vulgaridade enojava Dedé até os ossos; homens com gravatas de seda e ereções permanentes diante