Roland Barthes e a revelação profana da fotografia
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Roland Barthes e a revelação profana da fotografia - Rodrigo Fontanari
PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE SÃO PAULO
Reitora: Anna Maria Marques Cintra
EDITORA DA PUC-SP
Direção: Miguel Wady Chaia
Conselho Editorial
Anna Maria Marques Cintra (Presidente)
José Rodolpho Perazzolo
Ladislau Dowbor
Karen Ambra
Lucia Maria Machado Bógus
Mary Jane Paris Spink
Miguel Wady Chaia
Norval Baitello Junior
Oswaldo Henrique Duek Marques
Rosa Maria B. B. de Andrade Nery
Roland Barthes e a revelação profana da fotografia
Rodrigo Fontanari
FAP.TIF
São Paulo
Copyright © Rodrigo Fontanari. Foi feito o depósito legal.
Ficha catalográfica elaborada pela Biblioteca Reitora Nadir Gouvêa Kfouri / PUC-SP
Fontanari, Rodrigo
Roland Barthes e a revelação profana da fotografia [recurso eletrônico] / Rodrigo Fontanari. - São Paulo : EDUC, 2016.
1 recurso on-line : ePub
Bibliografia.
Originalmente (com ligeiras modificações) Tese de Doutorado, PUC-SP, 2014 sob o título Roland Barthes e a fotografia : a verdade da máscara
.
Disponível no formato impresso: Fontanari, Rodrigo. Roland Barthes e a revelação profana da fotografia. São Paulo : Educ /Fapesp, 2015. ISBN 978-85-283-0503-6
Disponível para ler em : todas as mídias eletrônicas
Acesso restrito : www.pucsp.br/educ
ISBN eletrônico: 978-85-283-0535-7
1. Barthes, Roland. La chambre claire, 2. Estética. 3. Estruturalismo. 4. Fotografia - Filosofia. 5. Fotografia artística. I. Título.
CDD 770.1
149.96
111.85
EDUC – Editora da PUC-SP
Direção
Miguel Wady Chaia
Produção Editorial
Sonia Montone
Revisão
Siméia Mello
Editoração Eletrônica
Gabriel Moraes
Waldir Alves
Capa
Douglas Canjani
Secretário
Ronaldo Decicino
Produção do ebook
Waldir Alves
Rua Monte Alegre, 984 – sala S16
CEP 05014-901 – São Paulo – SP
Tel./Fax: (11) 3670-8085 e 3670-8558
E-mail: educ@pucsp.br – Site: www.pucsp.br/educ
29 de outubro [1977]
Na frase Ela não sofre mais
a que, a quem remete o ela
?
Que quer dizer esse presente?
Roland Barthes, Journal de deuil
No fundo – ou no limite – para bem ver uma foto,
é melhor erguer a cabeça ou fechar os olhos
Roland Barthes, La Chambre Claire
Apresentação
A massa de estudos que constituem atualmente a recepção crítica internacional da obra de Roland Barthes se avolumou a um ponto que temos a impressão de que vale agora, para Barthes, o que ele disse um dia de Proust, o mais importante escritor em sua rede de obsessões
, como denominou, afetivamente, as temáticas autorais. Proust é um sistema completo de leitura do mundo. Isso significa que, se admitirmos minimamente esse sistema, porque ele nos seduz, não existe, na nossa vida diária, incidente, encontro, situação, que não encontre referência em Proust
, escreveu (Barthes, 2002e, p. 569). E tal é o encanto radical de sua escritura
, como ele também propôs que chamássemos toda escrita, quando cônscia de si, que somos tentados a dizer dela o que, lá atrás, ele dizia do texto do romance Em busca do tempo perdido: que se oferece à consulta bíblica.
De fato, devolvendo a fascinação, parece que já não existe mais incidente, encontro, situação – do sujeito apaixonado que não pode decifrar o outro porque não sabe como o outro o decifra ao melancólico compungido diante de certas fotos dilacerantes do álbum familiar, passando pela pequena violência da revista feminina que decreta que neste ano o azul está na moda
– que não tenha guarida em Mitologias, Fragmentos de um discurso amoroso, O Império dos Signos, A Câmara clara...
Dentre as muitas situações de nossa vida diária que encontram lugar em alguma parte do imenso legado de Barthes, uma sempre premente é aquela armada pela multiplicação exponencial das imagens a nossa volta, fenômeno que conseguiu redobrar de intensidade na era dos smartphones. Anterior à febre do retratismo digital, mas não à avidez dos repórteres que se consagram à captura do perdidamente vivo, sem saber o que estão denegando, é desse viés da herança que cuida Roland Barthes – A revelação profana da máscara.
Todo o interesse desse estudo, ao mesmo tempo apaixonado e cuidadoso, delicado e competente, que Rodrigo Fontanari dedica às imagens, segundo Barthes, está em mostrar que, além de poder obliterar a realidade, como no caso dos registros maníacos do cotidiano que já não cessamos mais de produzir, interpondo o celular a nossa visão das coisas, a máscara
, que é a versão primitiva da fotografia, também pode dar testemunho do humano, e principalmente do humano.
O que equivale a dizer que o trabalho vai no sentido de nos dissuadir de conclusões rápidas demais acerca do caráter inautêntico de nossa experiência do mundo quando entrevisto pelo olho das câmeras. Já que pertence à sabedoria de Barthes reconhecer, em plena era do clamor contra os simulacros, que o mesmo dispositivo que serve para inflacionar sentidos, produzindo mitos e ídolos, funciona como um olho de lince existencial, que agarra acontecimentos únicos e para sempre findos, tão paradoxais quanto as impressões proustianas que arrastam e não arrastam a verdade consigo.
Apresentar o livro de estreia de Rodrigo pede que se comece por indicar que, inteiramente voltado para a revisão do estatuto e da reputação das representações fotográficas pelo derradeiro Barthes, ele vem somar-se ao conjunto concertado de esforços que se realizam, hoje, nos melhores redutos das comunicações e das artes para livrar a fotografia da doxa
acadêmica que, trabalhando na escala da pequena história social, a tem reduzido à questão dos ritos e dos usos burgueses.
Por outro lado, continuar apontando sua contribuição exige que se sublinhe a maneira como, por isso mesmo, o trabalho desvela uma nova iconologia barthesiana, que vem conectar ou reconectar a imagem com o real e, no limite, com a morte, uma vez que, antropologicamente, a máscara é objeto mortuário, ligado ao culto dos antepassados.
Mas assinalar a inflexão particular, a filigrana do texto, comemorando o lançamento, implica dizer que, atento ao tournant da teoria barthesiana, desde o início do doutorado, aqui remanejado em livro, quando nada disso era tema obrigatório, Rodrigo incumbiu-se da instigante tarefa de associar esta revisão crítica a duas belas tradições antigas, diferentemente envolvidas com figuras.
Primeiro, relacionou a imagética barthesiana da presença à mentalidade grega pré-clássica, que concebia e enfrentava máscaras medúsicas estarrecedoras. Segundo, relacionou-a à cultura ancestral japonesa dos kaikai, nesse caso, acompanhando o Barthes autor de O Império dos signos numa incursão dépaysante, e tanto mais pedagógica, por associações entre os flashs perceptivos do poema breve de Bashô, que são grafos de luz
, e o disparo das câmeras. Essa é a tese da tese que faz a originalidade do livro.
Impõe-se uma última observação. No processo local de reconhecimento da obra barthesiana, o livro de estreia de Rodrigo Fontanari vem na dianteira. Com efeito, no Brasil, em que pese uma movimentada ação editorial, graças à qual estamos perfeitamente em dia com a tradução da obra de Barthes, não nos escapando nem mesmo o último pequeno diário íntimo da última safra vinda a público na França, temos mantido-nos à margem das contribuições de peso ao seu conhecimento. De par com os esforços tradutórios, avolumam-se aqui os textos de circunstância: introduções, prefácios, posfácios, orelhas, dossiês, artigos de jornal. Mas não temos exegeses, quer dizer, investigações minuciosas, deslindes rigorosos, e permanecemos em dívida com as imersões de grande alento.
O centenário de nascimento do autor, que se comemora em 2015 e está mobilizando as novas gerações de pesquisadores, deve começar a mudar essa situação. Nesse movimento de necessária atualização, a pesquisa de Rodrigo Fontanari – que eu tive a alegria de orientar e tenho agora o orgulho de apresentar – ingressa com mais este mérito: constitui-se numa das primeiríssimas exegeses a serem produzidas entre nós.
Seja então o jovem autor bem-vindo a esta bela aventura do pensamento que é projetar a obra de Barthes no comentário infinito a que fazem jus as grandes sumas escriturais que já não paramos mais de consultar.
Leda Tenório da Motta
Professora no PEPG em Comunicação e Semiótica da PUC-SP.
Com amparo do CNPq, realiza, desde 2008, pesquisa sobre a obra de Roland Barthes.
É autora de Roland-Barthes – uma biografia intelectual
e de Barthes em Godard – Críticas suntuosas e imagens que machucam
Prefácio
Roland Barthes e a revelação profana da fotografia se organiza de maneira a explicitar por que a compreensão barthesiana da fotografia reúne o Grau Zero da Escritura a A Preparação do Romance, a partir da compreensão do silêncio
tomado em sentido "zen. Lembre-se que um dos aspectos mais característicos da cultura
zen é ausência de qualquer mito de heroísmo ou culto a heróis. As tradições heróicas, sabe-se, são guerreiras, o herói sendo aquele que busca o reconhecimento de sua cidade e das gerações vindouras com respeito a suas façanhas e à superioridade de sua ação. Diferentemente do herói, mas também do mártir, que depõe as armas como forma de luta, o santo é aquele que realiza atos de bondade
inconscientemente", não pretendendo com isso nenhuma superioridade para si.
Nesse sentido, o santo se aproxima do neutro. Por isso, a crítica de Barthes à arrogância conduz, simultaneamente, à fotografia, ao grau zero da escritura – o haikai – e ao romance, Como escreve Rodrigo:
o haikai, assim como a fotografia, apresenta-se ao olhar de Barthes, [...] como um pedaço suspenso de tempo e espaço [...] o que foto e haikai revelam
não é da ordem do onírico[...], mas propriamente poética. Isso atribui à boa foto a possibilidade de pensá-la como um romance, como grãos de sais de prata
que registram o acontecimento no tempo, e faz, àquele que olha, deparar-se com o ça a été. [...]. A impressão que temos é que estamos, estranhamente, vivenciando uma experiência de presente ainda que passada [cela a été, comme ça]. (p. 216)
Não por acaso, o autor utiliza a palavra estranhamente
. Esse estranhamento é um jogo de presença e ausência, mas também jogo do eu e do outro, do ser e do nada. Isso significa que a fotografia, como toda representação, substitui algo ausente, conferindo-lhe uma presença, mas confirmando a ausência. Na ambivalência da representação que acolhe os contrários, a origem se ausenta. É que, para Barthes, a representação participa da morte. Razão pela qual a paixão de fotógrafos em refletir, duplicando a vida, seria vã.
E essa é também a maneira pela qual Rodrigo Fontanari indica a afinidade em Barthes entre fotografia e teatro, não entre fotografia e cinema. Com efeito, o espectador de cinema vê somente o que está exibido na tela, sob o domínio da aceleração das imagens e da técnica. A fotografia, em Barthes, diferentemente, lida com o invisível da visão, aproximando-se do teatro primitivo no qual os atores desempenham o papel dos mortos. Para Barthes, então, a fotografia não é tanto cópia quanto emanação do real. O spectrum da fotografia conserva na palavra sua relação com espetaculum e lhe acrescenta esse algo que é o retorno do morto
: a fotografia instaura uma atemporalidade, um tempo mitológico em que a vida e a morte, o presente e o passado se confundem e que o mito deixa sempre em aberto: a temporalidade circular
. O tempo circular, observa o autor na sequência de Éric Marty, é sempre o retorno da morte: É isso – a sensação iminente de uma catástrofe que já aconteceu –, que torna a fotografia terrífica ao olhar de Barthes
(p. 91). E, se a morte tem relação com o espectro, é por ser intocável, mas, em sentido preciso, o espectro não tem futuro, de onde seu patetismo e sua melancolia.
Por isso, o punctum da fotografia é o que fixa a imagem em uma eternidade imóvel, o puncutm fotográfico sendo a realização do paradoxo de um instante que dura sem futuro: "o punctum é uma espécie de extracampo sutil, como se a imagem conduzisse o desejo, o saber e a intuição para além daquilo que se dá a ver no quadrante fotográfico (p. 125). Se há, como observa Rodrigo, algo de aterrador em toda imagem, é por sua
infraestrutura: a Medusa que petrifica quem ousar olhá-la frente a frente. Por isso, lê-se que em
um breve lapso de tempo, o indivíduo passa da vida à morte – petrificação instantânea [em um piscar de olhos] – tornando-se todo imagem para o olho do outro" (p. 125). Esse instante interminável é aquele no qual o tempo pára, ou melhor, que se pospõe a si mesmo em um intervalo paralisado.
Literatura, teatro ou fotografia, a história dura, mas não avança, tomada por uma consumação que a desprende do curso das coisas para fazer dela um destino. Fantasma de que se retirou a presença, sombra da morte, aí está o punctum, o que o tempo tem de desgarro e que, suspenso, fere e punciona. Ao analisar o âmbito do puncutm e suas relações com a morte e com o invisível da visão, transparece o tema do memento mori. Com efeito, na antiguidade romana, este chamamento do lembre-te que és mortal
evocava a brevidade da vida e a vanidade da existência, no horizonte do carpe diem que procurava pôr em proveito e intensificar a vida necessariamente fugaz, contra um excessivo apego aos bens deste mundo, a morte sendo a grande desmistificadora dos valores concedidos às potências mundanas.
O punctum evoca um ver que transborda o studium, studium em que a intenção do autor é por demais explícita, o punctum convoca, simultaneamente, a vida e a morte. Referindo-se a essa circunstância em termos de rastro
e traço, Rodrigo escreve:
para apreendermos seriamente a imagem fotográfica é necessário pensar numa ciência dos restos
[...] que leve em consideração as várias camadas de significação já previstas no substantivo francês reste: pequena quantidade restante de um todo, o que permanece depois de uma destruição, extração; portanto, traços, vestígios, dejetos, cinzas. E o verbo francês rester complementa essa concepção de ciência, pois sua raiz se origina do latim restare, em francês s’ arrêter, imobilizar, bom como être de reste, continuar a ser, manter, permanecer. Esse jogo de palavras nos possibilita pensar na concepção barthesiana da fotografia: alguma coisa do sujeito que se pôs diante da objetiva foi imobilizada [s´est arrêté] e ali permaneceu [est reste] como um vestígio, traço [du reste], daquilo que foi [ça a éte], mas que, quimicamente, está ainda aqui [c’est encore là]. (p. 176)
A instantaneidade dramática desse milésimo de segundo que imobiliza a imagem e a vida, Rodrigo a aproxima da aura benjaminiana, tornando mais complexo seu sentido:
Propomos, portanto, que a passagem da aura ao punctum deva ser feita com mais cautela, mesmo que possa ainda parecer possível tomar um conceito pelo outro. Se analisarmos mais de perto o punctum barthesiano que [no limite,] pode ser entendido [...] com a emanação ou sombra luminosa que se desprende do objeto fotografado, esses raios luminosos são mais vivos, mais ativos do que nos permite compreender o conceito de aura
benjaminiano. Afinal o punctum é esse não sei o quê que vem do quadro da foto estremecer seu contemplador, acenando-lhe como uma imagem forte. Uma espécie de verdade
do ser. (p. 186)
Em seguida, o autor se aproxima da aura
benjaminiana chamando a atenção para seu aspecto tão inefável quanto indizível, enquanto o punctum é mais violento, ativo e arrebatador, a aura mais contemplativa, passiva e rememorativa
.
Eis por que a lembrança que se inscreve no punctum é diversa da benjaminiana, memoriosa, na qual é o inconsciente que se torna consciente inconscientemente. O punctum corresponderia mais à noção benjaminiana de choque – muito embora possa haver choque
na experiência da aura, se ele for de estupor, como pode haver punctum no studium, diferentemente daquelas ‘fotos-choque’ que são estruturalmente insignificantes, não há nada a dizer diante delas
(p. 61). Elas são tão somente estudiosas
, querem capturar e abranger todo o sofrimento que descrevem
em seu lirismo barato
.
Punctum e choque podem reaver o sentido medical da aura, já relatado por Galeno no século I, quando descreve e analisa o sintoma premonitório da epilepsia, doença sagrada: sintoma neurológico geralmente visual – pontos brilhantes, luzes cintilantes ou visão embaralhada – luzes intermitentes, alucinações visuais, pontos cegos, sensibilidade a pontos brilhantes, sensações que precedem um ataque epilético, como verdadeira tempestade elétrica. No conceito de aura haveria a sinopse de várias conotações, em que o aspecto psíquico e o neurológico são ambos determinantes.
Além disso, a aura que precede a crise epilética produz uma lucidez de consciência na qual quem é por ela afetado tem, antes da crise, uma capacidade extrema de estabelecer relações entre as séries de acontecimentos separados e distintos entre si. Este seria o hic et nunc do choque. Choque não apenas como o que surpreende e paralisa, mas, sobretudo, o que produz uma desorientação no princípio de realidade, entre vida e morte.
A morte da mãe foi, para Barthes, um luto impossível. Mas, se na fotografia o negativo é fantasma, a revelação uma ressurreição
, o romance impossível de ser escrito coincide com a narrativa dessa impossibilidade, o dizer minimal, uma a-linguagem, o neutro do haikai e da fotografia que podem ser compreendidos como atestação, restituição, ressurreição. Instante puro
, ele é uma espécie de memória imediata
que suspende a passagem do tempo.
Assim, se há, como anota o autor citando Haroldo de Campos, dois Barthes, um sistemático, apolíneo, disfórico
[o rigoroso
, o metódico do estruturalismo e do sistema da moda], há também o a-sistemático, dionisíaco, eufórico, jubilante (o do prazer do texto) é por se inscrever na concepção barthesiana da fotografia sua filosofia.
Cético moderno
, nas palavras de Leda Tenório da Motta, no haikai, como na fotografia, as coisas são devolvidas a seu grau zero, não decorativo. Rodrigo Fontanari nos apresenta o pensamento de Barthes e o sentido da delicadeza e da melancolia segundo uma metafísica da impermanência, a lei do efêmero, a vanidade da arrogância dogmática e a grandeza do instante, sempre primeiro e último na álgebra do tempo.
Olgária Chain Féres Matos
Mestre em Filosofia pela Universidade Paris I (Panthéon-Sorbonne),
doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo,
professora titular do Departamento de Filosofia da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo e professora visitante da Universidade Federal de São Paulo.
Sumário
Apresentação
Prefácio
Nota prévia
O olho de Barthes
Notas sobre Roland Barthes e o estruturalismo
De Saussure a Hjelmslev
Estruturalismo e a semiologia
Roland Barthes diante das estruturas
Sobre A câmara clara
A gênese do livro
O corpus e o método
Os conceitos de A câmara clara: studium e punctum
A preparação do romance: a fotografia como experiência de escritura
Roland Barthes, as imagens e as tradições bem-pensantes
Civilização da imagem: do mito ao mito
Do Mito da Caverna ao studium
Da Medusa ao punctum
Por uma antropologia da imagem fotográfica: a máscara
O sal da subjetividade: a química da imagem, a escritura do objeto
A impressão do real: fotografia como imagem indiciária
Figuras do espanto: o objeto semiológico como relíquia
A aura e o punctum, suas simetrias e dissimetrias
Revelação e metamorfose, o nascimento da estética barthesiana
Uma poética do instante, unidade mínima de tempo
O fragmento e a fotografia: o trabalho poético do haikai
Os signos perdem Roland Barthes
Referências bibliográficas
Bibliografia de Roland Barthes
Bibliografia geral
Nota prévia
Ligeiramente remanejado, este trabalho tem origem numa tese de doutorado, defendida no Programa de Estudos Pós-Graduados em Comunicação e Semiótica da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, sob orientação de Leda Tenório da Motta, que, atualmente, revela-se como uma das mais expressivas e atuantes críticas literárias que, incansavelmente, tem se dedicado ao legado barthesiano e, portanto, também ao exercício de exegese da fortuna crítica do autor em solo brasileiro.
Ele é, assim, a continuação de um projeto de longo prazo, que já resultou em artigos, cursos, e conferências, assim como, cabe aqui mencionar, muitas das ideias e relações estabelecidas e apresentadas, neste trabalho, devo bastante ao estágio de pesquisa subvencionado pela Fapesp e realizado, na Universidade de Paris VII, junto ao Centre Roland Barthes, dirigido por Julia Kristeva, e ao grupo de pesquisa Littérature au Présent, coordenado por Éric Marty, cujos acolhimento e amparo foram fundamentais para obter acesso aos manuscritos de A câmara clara e a outros importantes documentos que constituem o Grand Fichier do autor referente às suas anotações preparatórias para redação da obra, como as "pochettes" intituladas Sur la Photo e Illustrations, permitindo-me assim reconstituir todo o repertório fotográfico que compôs a escritura desta nota barthesiana sobre fotografia
como também mergulhar
no universo barthesiano da imagem.
As referências são dadas a partir das obras completas em cinco volumes estabelecidas e organizadas, em 2002, por Éric Marty e editadas pela Seuil. Menciono sempre o autor, o título do livro ou texto citado seguido da sigla OC, abreviação de Œuvres complètes, e a referência ao tomo em questão. Desse conjunto não fazem parte os três cursos no Collège de France, entre 1976-1980, que são citados em separado. A tradução é de responsabilidade do autor. Porém, sempre que possível, cotejo com as traduções brasileira ou portuguesa. As ilustrações reproduzidas nesse trabalho provêm, em sua maioria, de uma parte das próprias obras de Roland Barthes, sobretudo, de A câmara clara e de uma pesquisa in loco do autor em torno dos manuscritos, de outra. No mais, houve um esforço por parte do autor para que as fotografias se inscrevessem, de alguma forma, naturalmente no corpo do texto, que elas entrecortassem o texto. As referências muitas vezes não são totalmente indicadas, salvo menção contrária devidamente sinalizada, numa espécie de legenda
da foto.
No mais, houve um esforço por parte do autor para que as fotografias se inscrevessem, de alguma forma, naturalmente no corpo do texto, que elas o entrecortassem. Em relação às imagens, dado que não foi possível incluí-las no livro, as referências finais relacionam as obras que contenham as reproduções das obras às quais o texto faz menção.
O olho de Barthes
Dedicamo-nos aqui à elaboração de um estudo crítico e metateórico da obra de um dos mais importantes pensadores de século XX, Roland Barthes, mais especificamente, às reflexões por ele desenvolvidas para o campo das representações fotográficas, notadamente, aquelas que recobrem os conceitos centrais de seu derradeiro ensaio, A câmara clara: nota sobre fotografia, a saber, o studium e o punctum.
Definamo-los muito sumariamente. O studium como aquela propriedade da fotografia que a configura como um campo do saber e da cultura, que informa e comunica algo a respeito daquele que foi fotografado, uma qualidade que se apresenta naturalmente ao espírito do observador. O punctum refere-se à singularidade do outro, que incide sobre o espectador, sem a ele diretamente se direcionar. Envolvendo um amplo recorte dos textos barthesianos, a respeito de fotografia e de imagem, tal como ocorrem nas Œuvres complètes de Barthes, esta pesquisa busca o fio condutor
de um pensamento sobre a fotografia que, não obstante ser bastante sui generis, vem interessando cada vez mais os estudiosos.
Nesse percurso investigativo, enfatizamos o estabelecimento de pontes entre ambos os conceitos e as respectivas antigas tradições gregas a que, por hipótese, se refeririam. Do nosso ângulo, uma dessas tradições é aquela linha socrático-platônica dos simulacros, que toma as imagens como reflexos vãos. A outra, aquela linha mitológica das máscaras górgonas que, ao contrário, evoca a força das imagens sobre os que a contemplam.
Comecemos pelo punctum e por essas divindades marítimas que os mitólogos gregos chamaram de górgonas, e das quais se disseminaram máscaras pelas cidades gregas, principalmente pelas lápides tumulares. Conta a narrativa mitológica – rememorada por Vernant em O universo, os deuses, os homens (2000) – que as górgonas, entre as quais está a Medusa, ferem de morte quem as ousar encarar. Se, conforme o relato, a que teremos que voltar mais adiante, Perseu logrou matar a Medusa, foi porque não a olhou de frente mas, usando o escudo espelhante que lhe emprestou Palas Atena, mirou-a através do reflexo de sua imagem sobre a superfície bem polida dele.
Pensamos que isso pode se relacionar com o imaginário do punctum, uma vez que ele também é sentido em Barthes como aterrador. Se o studium pode ser lido à luz da caverna de Platão, a que se referem geralmente os bons comentadores da representação fotográfica, o punctum retroage a racionalidade platônica ao medo primitivo, próprio da Grécia filosófica bem-pensante, até a Grécia arcaica, aquela dos mitos. Aqui entra em cena o efeito estarrecedor da foto, o sinistro, o médusante, o horror diante do outro. É o próprio Barthes que escreve, em A câmara clara, diante de certas fotos, eu me desejava selvagem, sem cultura
(Barthes, La chambre Claire, OC, V, 2002a, p. 794).
Tal exame deve nos levar ainda a postular certa coerência profunda da obra barthesiana. Em seu Roland Barthes: saber com sabor, Perrone-Moisés (1985) já a entrevê quando sinaliza A câmara clara como uma espécie de negativo fotográfico, do qual o positivo seria O império dos signos. De nosso lado, na esteira de pensamento de Motta, em Roland Barthes: uma biografia intelectual (2011), preferimos ver Mitologias como o negativo fotográfico do qual o positivo seria A câmara clara. Pois, se é verdade, por um lado, que Mitologias tirou o mundo da crítica cultural de seu eixo, denunciando principalmente o trabalho das palavras
(ibid., p. 189), é igualmente verdade que também enfrentou as imagens e colocou a fotografia e os fotógrafos como outros tantos mitos e mitólogos.
Isso permite a Motta notar que A câmara clara vem "desconcertar o que estava arranjado, curvando-se