Antes do MP3: um estudo sobre a prática da pirataria musical entre 1980 e 1981
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Antes do MP3 - Enio Everton Vieira
Agradecimentos
À minha família e amigos próximos;
Aos membros da ONG Instituto GAS – Grupo de Atitude Social, pela amizade e trabalho juntos;
À minha orientadora, professora Dra. Rosana Maria P. B. Schwartz, pelas conversas descontraídas, reflexões necessárias e valorosas sugestões;
Aos professores Dr. Sergio Estephan e Dra. Denise Cristina Paiero, pelas contribuições, sugestões de leitura e melhorias propostas;
À professora Dra. Kelly Cristina de Oliveira, pelas dicas acadêmicas e revisão do trabalho;
E a todos os músicos com quem já toquei, que de alguma maneira me forneceram material de reflexão sobre os temas deste trabalho, em especial às bandas Mindtrigger, Dark Division e a Banda do GAS.
Prólogo – Uma lembrança auditiva
Uma das minhas primeiras lembranças vem de quando eu tinha cerca de três ou quatro anos de idade. Estava na casa de meus padrinhos e, de repente, no aparelho de rádio, soava uma voz estranha que repetia algo extremamente familiar: eu ouvia, pela primeira vez, minha própria voz. Meus padrinhos haviam me gravado poucos minutos antes, me perguntando coisas básicas como o meu nome, a idade, o que eu estava fazendo e outras brincadeiras.
Por muitos anos eu guardei essa gravação. Na minha adolescência, na impossibilidade financeira de comprar todos os álbuns das minhas bandas preferidas, colecionava todo tipo de fitas gravadas: de rádio para fitas, de discos de vinil para fitas, de fitas para fitas, e posteriormente de CDs para fitas. Cheguei a ter mais 400 fitas com as mais variadas gravações, todas organizadas em ordem alfabética, segundo ordem de lançamento dos álbuns, até que eu tivesse dinheiro suficiente para comprar o álbum em sua versão original (que, por vezes, também era comprado em formato de fita).
Mas a gravação com minha voz, aquela era sagrada. Não a ouvia, mas tampouco tinha coragem de apagá-la regravando algo por cima.
Anos depois, durante minha graduação em História, uma ideia: meu trabalho de conclusão de curso seria sobre pirataria musical. Mas não a pirataria óbvia, de CDs copiados vendidos em camelôs no centro de São Paulo, prática comum durante a primeira década dos anos 2000. Eu queria falar do papel das fitas cassete na pirataria caseira, aquela que eu mesmo praticava, aquele modo artesanal de copiar música. Verdadeiro e prático exemplo do faça-você-mesmo.
Minha ideia original era resgatar e historicizar as práticas caseiras de trocas de fitas através de anúncios de compra e venda nas revistas que eu consumia quando adolescente, publicações como a (Show)Bizz e Rock Brigade (isso ao longo da década de 1990). Em meio às minhas buscas, me deparo com a (para mim, na ocasião) desconhecida SOMTRÊS, publicação que se autointitulava a primeira revista de som e música do Brasil
. Folheando suas páginas descubro todo um mundo não explorado da reportagem musical pela historiografia cultural, com reportagens sobre equipamentos de som, resenhas de álbuns, entrevistas, ensaios e, também, as cartas dos leitores, com vários anúncios de compra e venda de gravações em fitas cassete. Fiquei impressionado com o fato de que no final dos anos 1970 e início dos 1980 os aficionados por música já se correspondiam trocando gravações, o que me incentivou a fazer uma pesquisa sobre as origens desta prática, isso bem antes da possibilidade de troca de arquivos em MP3.
Ademais, fiquei fascinado pelas reportagens do período sobre como a gravação de discos em fitas cassete estavam acabando com a indústria da música
, discurso idêntico ao da época da popularização do MP3. Vi ali uma oportunidade para buscar as raízes da prática do compartilhamento de música, algo ainda pouco estudado por historiadores e cientistas sociais, de um modo geral. Mal imaginava eu que a pesquisa seguiria evoluindo e se transformaria em minha dissertação de mestrado.
O texto que segue nesta obra é, integralmente, minha dissertação, defendida em maio de 2020 pela Universidade Presbiteriana Mackenzie, e com subtítulo original de estudo sobre as cartas dos leitores da revista SOMTRÊS e o comércio informal de fitas cassete
. A escrita foi propositalmente concebida com uma linguagem mais simples possível (visando desde o princípio sua futura publicação), mas sem descuidar dos rigores obrigatórios de um trabalho acadêmico. Além da mudança de subtítulo para a esta publicação, ocorreram outras poucas adaptações, em especial no que diz respeito às citações diretas da revista SOMTRÊS, que estão todas em formato de notas de rodapé, para dar um pouco mais de fluidez à leitura. As citações de autores nos quais utilizei como embasamento teórico e/ou fonte historiográfica seguem no formato clássico acadêmico.
Como celebração pelo título acadêmico, fiz (mais) uma tatuagem: uma fita cassete no antebraço direito, representando minha história como fã de música, e, na etiqueta do desenho da fita, o título da dissertação (Before MP3) simbolizando a união do início de minha jornada acadêmica com o adolescente que passava horas de seu dia esperando por novidades nas rádios para registrá-las em fita (na torcida que o locutor não interrompesse e/ou falasse durante a música!).
E quanto a gravação com minha voz quando criança? Essa, infelizmente, se perdeu há tempos. Mas a lembrança auditiva segue viva, forte, cravada na pele, no diploma e agora, também, impressa.
SUMÁRIO
Capa
Folha de Rosto
Créditos
Introdução – Um leitor descontente
Capítulo I - O conturbado cenário político e cultural de 1979-1981
1.1 – ENTRE O MILAGRE E A CRISE
1.2 – SOMTRÊS E O MERCADO EDITORIAL BRASILEIRO
1.3 – UMA PUBLICAÇÃO LIVRE
EM MEIO A REPRESSÃO
Capítulo II - Expansão e crise na indústria do som e música
2.1 – OS CONFLITOS ENTRE A FM E A AM
2.2 – EVOLUÇÃO DAS TECNOLOGIAS DE REPRODUÇÃO MUSICAL
2.3 – A CRISE DA INDÚSTRIA MUSICAL NOS ANOS 1980-1981
Capítulo III - As motivações por trás do comércio paralelo de música em 1980-1981
3.1 – A FALTA DE DIVERSIDADE DAS RÁDIOS
3.2 – O MERCADO INFORMAL DE SOMTRÊS
3.3 – AS PROPOSTAS PARA SUPERAÇÃO DA CRISE
Considerações finais
Apêndice I – Tabelas
Apêndice II – cartas selecionadas
Referências
Landmarks
Capa
Folha de Rosto
Página de Créditos
Sumário
Bibliografia
Introdução – Um leitor descontente
Em setembro de 1980, a revista SOMTRÊS¹ cedia espaço em suas páginas para seus leitores expressarem suas opiniões sobre os mais diversos assuntos. Através da seção de cartas, leitores enviavam suas dúvidas, elogios e críticas para a redação da revista, prática comum desde o seu segundo número, que havia chegado às bancas brasileiras pela primeira vez em janeiro do ano anterior. A carta publicada na edição de setembro de 1980 trazia o desabafo de José Bonifácio da Silva, leitor que se mostrava descontente com a programação das rádios da cidade de São Paulo. Segue abaixo trechos de sua carta, que ficou sem resposta por parte da revista:
Como muitos outros audiófilos gosto imensamente de efetuar minhas gravações diretamente das fontes de FM estéreo. Apesar dos moderníssimos equipamentos que as rádios usam, [...] nós somos castigados com programações de baixo nível, enfadonhas e, acima de tudo, repetitivas. Até parece que os programadores têm preguiça em renovar as seleções musicais, como se não existisse uma discoteca em cada emissora. Das 13 rádios FM estéreo daqui apenas duas ou três emissoras [...] apresentam uma programação até certo ponto agradável. De que adianta a potência de milhares de watts se a programação não corresponde ao interesse dos ouvintes? Com a palavra os entendidos, porque caso contrário, passamos para a AM que é mais realista.²
José sintetiza, em suas reclamações, algumas das várias mudanças que causavam desconforto nos chamados audiófilos
– pessoas que acompanhavam as novidades em equipamento de som e lançamentos musicais – , tais como: certa decepção com a novidade das rádios FM, que mesmo possuindo uma qualidade técnica superior às AMs, apostavam em uma programação com pouca diversidade musical; fãs de música que efetuavam suas gravações graças à popularização das fitas e gravadores cassetes, uma novidade tecnológica cada vez mais popular no Brasil na virada da década de 1970 para 1980.
Essas mudanças técnicas – os modernos equipamentos que permitiam o surgimento das primeiras rádios FM no Brasil, além dos gravadores e fitas cassete – chegavam no país devido à gradual abertura econômica promovida pelos governos militares, um processo pelo qual a economia e a política nacionais passariam de forma lenta, gradual e segura
(NAPOLITANO, 2014, p. 103) do controle militar para governantes civis. Com tantas novidades, talvez o aficionado por música se sentisse mais seguro refugiar-se nas rádios AM, ainda um modo seguro e confiável de se apreciar as canções preferidas, como veremos mais adiante.
Havia fãs de música tentando entender novas tecnologias, em meio um confuso cenário político e econômico, gravando suas canções favoritas diretamente das rádios, tudo isso ocorrendo em um período conturbado da História do Brasil. Combinando um trabalho de investigação histórica com a análise de conteúdo, tomamos a carta de José Bonifácio como ponto de partida para, pouco a pouco, buscar entender o que ocorria no país, e como uma revista de equipamentos de som e música teve um papel ambíguo nesse conturbado período, promovendo um discurso contra as práticas de cópia de música efetuadas por leitores como José Bonifácio, ao mesmo tempo em que fomentava com entusiasmo as mesmas tecnologias que permitiam e facilitavam gravações caseiras de rádios e discos: vulgarmente conhecidas como pirataria. Utilizaremos cartas e reportagens de SOMTRÊS relacionando-as a outros dados históricos, pois toda a análise de conteúdo implica comparações contextuais
(FRANCO, 2018, p. 22).
Enquanto publicava reportagens diversas sobre a crise da indústria musical que ocorria no início da década de 1980, os editores de SOMTRÊS timidamente reprimiam seus leitores contra as práticas de pirataria. Buscamos neste trabalho compreender até que ponto as facilidades promovidas pela tecnologia cassete afetaram, de fato, a indústria musical, se a pirataria pode ser considerada a grande vilã pela queda de vendas de discos ocorrera no período, e até mesmo questionamos se tal prática de cópia caseira pode ser classificada como pirataria
.
Utilizamos como fonte primária a extinta revista SOMTRÊS, revista especializada em equipamentos de som e música, editada entre 1979 e 1989. SOMTRÊS foi uma publicação voltada para amantes não apenas da música, mas das novidades em áudio e vídeo e várias reportagens sobre toca fitas, vídeo cassetes, toca-discos, amplificadores, aparelhos de som automotivo, instrumentos musicais, e muitos outros produtos voltados para consumidores e músicos. Todos os números da revista se encontram na Sala Sérgio Milliet da biblioteca Mário de Andrade, no centro de São Paulo. Enquanto fonte primária, a revista foi muito pouco utilizada em pesquisas acadêmicas, e seu uso para uma pesquisa historiográfica como esta é importante, pois a imprensa retrata os mais variados aspectos de uma época, registrando informações sobre a sociedade a vida das pessoas
(CHIZZOTTI, 2010, p.117). Com essas fontes, se pretende fazer uma pesquisa qualitativa do tipo descritiva. Segundo Chizzotti, O processo de pesquisa qualitativa não obedece a um padrão paradigmático. Há diferentes possibilidades de programar a execução da pesquisa. Vale muito o trabalho criativo do pesquisador
(CHIZZOTTI, 2010, p. 105).
Em nosso recorte temporal, consultamos todos as edições da revista publicadas entre os anos de 1979 e 1982, posto que o foco da pesquisa, sobretudo no que diz respeito às práticas de pirataria musical, encontra-se nos anos de 1980 e 1981. Buscamos os anos imediatamente anteriores e posteriores ao nosso recorte temporal para termos uma visão mais ampla do período e uma melhor contextualização da instabilidade que afligia a indústria musical nesses anos. Além disso, ao analisar o conteúdo tanto das reportagens quanto das cartas e anúncios dos leitores da revista SOMTRÊS, o objetivo da análise de conteúdo será o de compreender criticamente o sentido das comunicações, seu conteúdo manifesto ou latente, as significações explícitas ou ocultas
(CHIZZOTTI, 2010, p. 98). Através das cartas dos leitores, poderemos fazer um estudo do tipo de redes comerciais e sociais que eram empregadas no início dos anos 1980, fora do eixo das grandes lojas de discos e/ou equipamentos de som, e nas normas que regem esse tipo de comércio.
Toda ação social é vista como o resultado de uma constante negociação, manipulação, escolhas e decisões do indivíduo, diante de uma realidade normativa que, embora difusa, não obstante oferece muitas possibilidades de interpretações e liberdades pessoais. A questão é, portanto, como definir as margens – por mais estreitas que possam ser – da liberdade garantida a um indivíduo pelas brechas e contradições dos sistemas normativos