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A mediação e a conciliação como métodos de pacificação social: uma abordagem no âmbito dos serviços extrajudiciais
A mediação e a conciliação como métodos de pacificação social: uma abordagem no âmbito dos serviços extrajudiciais
A mediação e a conciliação como métodos de pacificação social: uma abordagem no âmbito dos serviços extrajudiciais
E-book323 páginas3 horas

A mediação e a conciliação como métodos de pacificação social: uma abordagem no âmbito dos serviços extrajudiciais

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Sobre este e-book

Métodos consensuais de solução de conflito, mediar e conciliar, especificamente, fazem parte das relações humanas. Na sociedade pós-moderna, no entanto, tais métodos têm ganhado maior incentivo, pois as formas tradicionais de solução de litígios têm se apresentado de forma morosa e bastante onerosa. A análise da sociedade atual, sob a óptica do sociólogo Zygmunt Bauman, demonstra as características dessa época de relações fluidas, na qual os padrões sociais são continuamente remoldados.
Compreender a sociedade pós-moderna é fundamental para entender a importância dos métodos consensuais de solução de conflitos que visam resolver as contendas com base no entendimento das partes e não de decisões impostas, o que culmina com a resolução da chamada "lide sociológica".
Assim, a importância do desenvolvimento da conciliação e mediação vai muito além de dirimir um litígio, mas pode implicar uma mudança cultural, rompendo a chamada "cultura do litígio" que predomina em nosso contexto social.
Não sejamos ingênuos, porém! O rompimento com os parâmetros estabelecidos exigirá um grande esforço, principalmente dos aplicadores do direito.
A edição da Resolução n. 125, de 2010, pelo Conselho Nacional de Justiça, é um marco nessa mudança da relevância atribuída aos métodos consensuais de solução de conflito, culminando inclusive com a possibilidade de sua realização nas Serventias Extrajudiciais.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento8 de fev. de 2022
ISBN9786525227146
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    A mediação e a conciliação como métodos de pacificação social - Sandra Maria Barcelos

    1 INTRODUÇÃO

    Embora os meios autocompositivos tenham sido denominados pela doutrina norte-americana como meios alternativos de solução de conflitos, o Conselho Nacional de Justiça preferiu intitulá-los de meios adequados, o que retira deles a ideia de estarem em uma posição secundaria em relação ao método de solução pela jurisdição por meio de uma decisão judicial.

    Sob esta ótica, foi editada a Resolução nº. 125 de 2010, que representa um marco, no sistema brasileiro, no que tange ao tratamento adequado dos conflitos de interesse. A partir dela, estabeleceu-se a sistemática para implementação, de forma mais efetiva, dos métodos autocompositivos no Brasil.

    Após sua vigência, editaram-se outros atos normativos que deram continuidade a esta nova política de tratamento de conflitos estatuída pelo Conselho Nacional de Justiça.

    O Código de Processo Civil, Lei nº. 13.105 de 16 de março de 2015, em sua parte geral, no Título Único, do Capítulo I, que trata das Normas Fundamentais do Processo Civil, estabelece que a mediação e outros métodos de solução consensual de conflitos deverão ser estimulados pelos operadores do direito, inclusive no curso do processo judicial.

    O diploma processual reservou, ainda, uma seção específica, disposta no capítulo sobre os auxiliares da justiça, aos conciliadores e mediadores, estabelecendo requisitos, procedimento e princípios aplicáveis a sua atuação.

    Além disso, os institutos da conciliação e da mediação foram mencionados em vários outros dispositivos do Código de Processual Civil, até mesmo com a determinação da obrigatoriedade da audiência de conciliação e mediação, salvo se as duas partes demonstrarem desinteresse em transigir.

    A Lei nº. 13.140 de 2015, Marco Legal da Mediação, trouxe as bases de implementação e efetivação do instituto em nosso sistema ao estabelecer diretrizes para a mediação judicial e extrajudicial. O referido diploma tratou, inclusive, sobre sua utilização pelos mais diversos setores da sociedade organizada, como escolas, entidades comunitárias, bem como aquelas levadas a efeito nas serventias extrajudiciais.

    Neste contexto, fica evidente a intenção de consolidar uma política pública adequada e permanente de incentivo e aperfeiçoamento dos métodos autocompositivos de solução de conflitos.

    Em relação aos serviços extrajudiciais, o exercício da conciliação e da mediação, que já havia sido objeto de regulamentação por Corregedorias Gerais de Justiças de alguns Estados, como São Paulo e Ceará, tendo sido suspenso pelo Conselho Nacional de Justiça pelo fato de que a regulamentação da matéria é de competência federal, agora passou a contar com a normatização adequada para sua realização pelos tabeliães e registradores.

    O Conselho Nacional de Justiça, então, editou o Provimento nº. 67, de 26 de março de 2018, que dispõe sobre os procedimentos de conciliação e de mediação nos serviços notariais e de registro do Brasil.

    Tal regulamentação representa importante passo para a prestação da atividade de conciliação e de mediação pelos notários e registradores, apesar das críticas que devem ser feitas a algumas de suas disposições.

    Assim, o presente estudo tem o objetivo de analisar os aspectos da vida pós-moderna e, a partir daí, compreender a origem e as formas adequadas de tratamento dos conflitos de interesse.

    Outro ponto importante do estudo é a busca por compreender qual o caminho para se romper com a chamada cultura do litígio. É preciso, nesse sentido, investigar o quanto a prestação das atividades de conciliação e de mediação pelos serviços extrajudiciais pode contribuir para maior efetividade do consenso entre as pessoas.

    O trabalho estrutura-se nos seguintes termos: no primeiro capítulo, discorre-se sobre a sociedade pós-moderna, pautando-se pela visão do filósofo polonês Zygmunt Bauman e sua relação com o incremento das contendas. A discussão inicial, assim, analisa os tipos de conflitos e os meios desenvolvidos para sua resolução, agrupando-os em autodefesa, autocomposição e heterocomposição. Por fim, trata-se do sistema multiportas, desenvolvido pela doutrina americana.

    O segundo capítulo aborda a jurisdição, o acesso à justiça e sua relação com a pacificação social das controvérsias. Essa seção discorre sobre a visão tradicional de jurisdição como monopólio estatal e sua eficiência para a solução justa e tempestiva dos conflitos, o princípio de acesso à justiça em um conceito clássico e a necessidade de sua adaptação às demandas da sociedade pós-moderna, ressaltando sua efetivação por meios adequados de solução de conflitos. Por fim, a análise observa os aspectos positivos e negativos da via jurisdicional.

    O capítulo três dedica-se ao estudo dos meios adequados de solução de conflito. A análise parte da abordagem do seu desenvolvimento no direito comparado, destacando-se o direito norte-americano e o direito europeu, além de alguns países em específico.

    Em seguida, o trabalho tem como foco o direito brasileiro e dispõe sobre a evolução dos institutos na legislação trabalhista, na arbitragem e nos juizados especiais. Demonstra-se que a Resolução nº. 125 de 2010, do Conselho Nacional de Justiça, fixou as bases para o maior desenvolvimento da conciliação e da mediação. A partir dela, o Código de Processo Civil, a Lei nº. 13.140 de 2018, e outros atos normativos editados também reforçaram tal intenção.

    O capítulo quarto, por sua vez, aborda especificamente os institutos da conciliação e da mediação, discorrendo sobre conceitos, semelhanças, diferenças e princípios informadores. Nesse momento da discussão, comentam-se os procedimentos que podem contribuir para maior efetividade dos institutos da conciliação e da mediação. Trata-se, ainda, da passagem da cultura do litígio para a cultura que prestigia as diferenças, a educação como meio de efetividade da conciliação e da mediação, a importância da formação interdisciplinar dos conciliadores e mediadores e, por fim, a realização da conciliação e da mediação online.

    No quinto e último capítulo, o estudo concentra-se na proposta inicial do trabalho: conciliação e mediação nos serviços extrajudiciais. Nesse sentido, discorre-se sobre a Lei nº. 13.140 de 2015, marco legal do exercício da mediação e da conciliação pelos notários e registradores, os Provimentos nº. 65 de 2017, nº. 67 de 2018 e nº. 72 de 2018, que regulamentaram a matéria, e a Recomendação nº. 28 de 2018, todos expedidos pelo Conselho Nacional de Justiça.

    Por fim, destacam-se os aspectos positivos e negativos da referida regulamentação, ressaltando-se que a efetividade da conciliação e mediação como meio adequado de solução de conflitos nos serviços extrajudiciais exigirá um esforço mútuo tanto dos delegatários quanto da autoridade regulamentadora, sendo necessária a revisão de dispositivos que representam verdadeiro entrave ao referido fim.

    A fim de fundamentar o presente estudo, utilizou-se o método científico dedutivo, por meio da análise de leis, resoluções, provimentos e outros atos normativos, bem como estudos doutrinários a respeito do tema proposto.

    A partir desses esclarecimentos iniciais, cabe a análise da proposta e a demonstração dessa nova política de tratamento adequado de conflitos instituída pelo Conselho Nacional de Justiça, considerando-se a importante contribuição que as serventias extrajudiciais podem dar para sua efetivação.

    2 NOÇÕES GERAIS SOBRE O CONFLITO E SUAS SOLUÇÕES NA SOCIEDADE PÓS-MODERNA

    2.1 A SOCIEDADE CARACTERIZADA PELA MODERNIDADE LÍQUIDA CONFORME O PENSAMENTO DE ZYGMUNT BAUMAN

    O termo Modernidade Líquida foi cunhado primordialmente no século XX, como opção a chamada pós-modernidade.¹ A referência a este novo contexto social foi definitivamente consagrada no início do século XXI, tendo como um de seus principais disseminadores o sociólogo polonês Zygmunt Bauman, que publicou algumas obras nas quais discorre sobre esta nova conjuntura.

    Para Bauman, a principal característica dessa transição foi a passagem da sociedade de produção² para a sociedade de consumo.³ Explica o referido autor: Somos consumidores numa sociedade de consumidores. A sociedade de consumidores é uma sociedade de mercado. Todos nos encontramos totalmente dentro dele, e ora somos consumidores, ora mercadorias.⁴ Segundo o sociólogo, este processo de transição da sociedade de produção para a sociedade de consumo levou a uma fragmentação da vida humana.⁵

    Bauman⁶ ressalta que essa situação que deu origem à sociedade pós-moderna emergiu do derretimento radical dos grilões e das algemas, que, de forma certa ou errada, eram responsáveis por limitar a liberdade individual de escolher e de agir das pessoas.

    Para a expansão do capitalismo, era necessário que os indivíduos se desprendessem de amarras como família, igreja e outras tradições que os impediam de se autorregular, fazer escolhas por si mesmo ou, mais precisamente, consumir. Assim, destaca o autor:

    Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluída, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunidade e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro.

    Esta libertação, no entanto, não era absoluta. Pretendia-se que os indivíduos livres usassem esta liberdade apenas para se realocarem em novos nichos, passando a se guiar, então, por novos padrões e regras.

    Ao contrário do que se esperava, porém, estes novos padrões não foram apresentados. Para Bauman, são esses padrões, códigos e regras a que podíamos nos conformar, que podíamos selecionar como pontos estáveis de orientação e pelos quais podíamos nos deixar depois guiar, que estão cada vez mais em falta.

    O referido autor ressalta que houve o derretimento dos padrões de condutas que orientavam os indivíduos, de modo que, em estado líquido, é mais fácil moldá-los do que mantê-los em forma:

    A nossa é, como resultado, uma visão individualizada e privatizada da modernidade, e o peso da trama dos padrões e a responsabilidade pelo fracasso caem principalmente sobre os ombros dos indivíduos. Chegou à vez da liquefação dos padrões de dependência e interação. [...] Dar-lhes forma é mais fácil que mantê-los nela. Os sólidos são moldados para sempre. Manter os fluidos em uma forma requer atenção, vigilância constante e esforço perpétuo – e mesmo assim o sucesso do esforço é tudo menos inevitável.¹⁰

    As características da sociedade pós-moderna apresentadas por Bauman decorreram de mudanças acentuadas na forma de viver das pessoas. Entidades pautadas por valores clássicos, como a família, a igreja e as próprias comunidades em si, agonizam para se reinventar sob o risco de sucumbirem de vez frente a esses novos tempos.

    Nos dizeres do autor, não há como negar ou subestimar a profunda mudança que a modernidade fluida produziu na condição humana. Tal condição é modificada de forma radical pelo fato de que a estrutura sistêmica é remota e inalcançável, bem como pelo estado fluido do contexto imediato da política-vida.¹¹

    Conceitos como família, igreja, bem como outras tradições são como zumbis, ou seja, mortos-vivos: A questão prática consiste em saber se sua ressurreição, ainda que nova forma ou encarnação, é possível; ou – se não for – como fazer que eles tenham um enterro decente e eficaz.¹²

    Diante da falta de referência ou, pior, dos inúmeros padrões que são colocados, os indivíduos titubeiam a todo instante na condução de seus destinos. Destarte, já não há mais projetos de vida conforme defendido pelo existencialismo de Sartre:

    Pois querem dizer que o homem existe antes de tudo, ou seja, que o homem é, antes de tudo, aquilo que projeta vir a ser, e aquilo que tem consciência de projetar vir a ser. O homem é, inicialmente, um projeto que se vive enquanto sujeito, e não como um musgo, um fungo, ou uma couve-flor; nada existe anteriormente a esse projeto; nada existe de inteligível sob o céu e o homem será, antes de mais nada, o que ele tiver projetado ser. [...] Mas se realmente a existência precede a essência o homem é responsável pelo que é. Assim, a primeira decorrência do existencialismo é colocar todo homem em posse daquilo que ele é, e fazer repousar sobre ele a responsabilidade total por sua existência.¹³

    Em um ambiente líquido-moderno, a incerteza fabricada passa a ser um poderoso instrumento, por meio do qual planejar a vida, sendo responsável pelas decorrências dessa, torna-se um ato em contradição ao mercado.¹⁴

    Ao viver em uma sociedade de consumidores, estamos subjugados a suas regras e parece humanamente impossível não se adequar a esta ciranda, o que nos torna totalmente reféns desse sistema e vulneráveis a todas as suas oscilações.

    Na modernidade líquida, é cada um por si e os projetos são para um dia, não para uma vida, pois no decorrer desta as mudanças serão infindáveis. Verifica-se que as pessoas foram individualizadas e estão, a todo momento, repensando os significados e propósitos da vida.

    Nesse novo contexto, a consumação está sempre no futuro, de modo que os objetivos perdem sua atração ou potencial de satisfação logo que são realizados ou até mesmo antes. Ser moderno significa estar sempre à frente de si mesmo, num estado constante de transgressão.¹⁵ Significa, ainda, ter uma identidade que só existirá como projeto não realizado, o que não nos distingue muito da condição de vida que teve nossos avós.

    Assim, a pós-modernidade é marcada pela quebra de preceitos, sendo a volatilidade da vida geradora de um verdadeiro caos, que obriga os indivíduos a estarem em contínuo processo de readaptação.

    Cavalcanti Neto, ao comentar a pós-modernidade, ressalta que ela rompeu com regras sedimentadas na modernidade e nos direcionou a um contexto no qual prevalece exatamente a falta de regras.¹⁶ Nessa perspectiva, dispõe o autor:

    Ele [Bauman] busca durante toda a sua obra demonstrar que a pós-modernidade, chamada de Modernidade Líquida, quebrou diversos conceitos fundamentais da modernidade para jogar-nos em um caos em que a única regra é não ter regra. A referência à liquidez vem exatamente daí, pois o líquido não tem uma forma predefinida, pelo contrário, se estiver em um cilindro, será cilíndrica a sua forma, se estiver em um cubo, será cúbica, se estiver em uma esfera, será esférica.¹⁷

    Outro ponto de extrema relevância citado por Bauman é a invasão do público pelo privado. A Ágora, onde se discutiam, na democracia romana, questões relevantes para a comunidade, passa a ser, nesse momento, espaço de discussões pertinentes à vida privada dos indivíduos.¹⁸ O pior, em tal contexto, é que apenas este tipo discussão desperta o interesse de seus pares.

    A individualização gera consequências por meio das quais o indivíduo passa a ser o pior inimigo do cidadão. Isso, por sua vez, leva ao surgimento de inúmeros problemas relacionados à cidadania, bem como para a política fundada na cidadania. Os cuidados e preocupações dos indivíduos enquanto tais enchem o espaço público, expulsando dele tudo que não esteja relacionado às questões individuais.¹⁹

    A colonização do público pelo privado reduz o interesse público a meras curiosidades sobre as vidas privadas de figuras públicas. Sobre essa questão, Bauman explica que arte da vida pública é reduzida à exposição pública das questões privadas e a confissões de sentimentos privados (quanto mais íntimos melhor). As ‘questões públicas’ que resistem a essa redução tornam-se quase incompreensíveis²⁰.

    Junto com o derretimento dos sólidos, portanto, perdeu-se o interesse por discussões coletivas. Assim, segundo Bauman, [...] o espaço público está cada vez mais vazio de questões públicas. Ele deixa de desempenhar sua antiga função de lugar de encontro e diálogo sobre problemas privados e questões públicas²¹. O autor complementa:

    Quando a política pública abandona suas funções e a ‘política-vida’ assume, os problemas enfrentados pelos indivíduos de jure em seus esforços para se tornarem indivíduos de facto passam a ser não aditivos e não cumulativos, destituindo-se assim a esfera pública de toda substância que não seja a do lugar em que as aflições individuais são confessadas e expostas publicamente.²²

    O contexto envolvendo a vida privada ganha, portanto, mais relevância do que questões de relevância social. O Estado, por seu turno, já não tem mais o poder de outrora para gerir as questões sociais, pois perde sua credibilidade diante das investidas da individualidade.²³

    Salienta Bauman que o espaço será público quando houver livre acesso a ele, sem mecanismos de pré-seleção, isto é, quando não forem exigidos passes nem houver registro dos homens e mulheres que nele penetrar, pois a presença no espaço público deve ser anônima.²⁴ Os que nele comparecem tendem a ser mutuamente estranhos, assim como aqueles encarregados do espaço.

    Nesta perspectiva, os espaços públicos são locais em que os estranhos se encontram e, portanto, constituem condensações e encapsulações dos traços definidores da vida urbana: É nos espaços públicos que a vida urbana, com tudo que a separa de outras formas de convívio humano, alcança sua expressão mais plena, em conjunto com suas alegrias e tristezas, premonições e esperanças mais características.²⁵.

    O esvaziamento do espaço público apresenta, portanto, consequências devastadoras para a vida em sociedade, pois é nele que são desenvolvidas as capacidades humanas capazes lidar com as diferenças e a multiplicidade que compõem o contexto social.

    Para Barroso, o espaço público é uma decorrência dos debates e das opiniões públicas, da transformação do indivíduo em cidadão, encontrando-se nele o início da busca pela liberdade, conforme destaca:

    O espaço público, por sua vez, é fruto da transição da sociedade civil para a sociedade política, da conversão do indivíduo em cidadão. Este é o domínio da opinião pública. Dos meios de comunicação, do debate, dos processos informais e formais de deliberação e de participação política. Como assinalado, o marco histórico – talvez simbólico – de sua existência costuma ser identificado na experiência com a Cidade-Estado grega, notadamente Atenas. A partir de então, todo cidadão passa a pertencer a duas ordens de existências: além de sua vida particular, privada, toma parte também na vida política, com o estabelecimento da distinção entre o que é seu próprio e o que diz respeito a todos. O jardim e a praça, em uma imagem poética. O espaço privado, pela tradição e pela lei, era o espaço do arbítrio: do marido, do pai, do senhor. Foi na esfera pública que se iniciou a aventura humana em busca da liberdade, o embate inacabado entre o despotismo e a civilização.²⁶

    A capacidade de se relacionar, de negociar e compartilhar uma vida em sociedade está diretamente relacionada às habilidades que devem ser apreendidas no espaço público. Assim, o esvaziamento deste, marca inexorável da modernidade líquida, apresenta-se como grande desafio aos que se propõem a repensar a interação entre as pessoas. Para Bauman, o desenvolvimento destas capacidades é essencial na retomada do espaço público:

    O medo e a insegurança são aliviados pela preservação da diferença juntamente com a capacidade de se movimentar livremente pela cidade. É a tendência a se retirar dos espaços públicos e recolher-se a ilhas de mesmice que com o tempo se transforma no maior obstáculo ao convívio com a diferença – fazendo com que as habilidades do diálogo e da negociação venham a definhar e desaparecer. É a exposição à diferença que com o tempo se torna o principal fator da coabitação feliz, fazendo com que as raízes urbanas do medo venham a definhar e desaparecer.²⁷

    A vida moderna mostra-se em frangalhos em todos os aspectos: o enfraquecimento das instituições, a supervalorização do individualismo, o menosprezo pelas questões sociais e a invasão do público pelo privado levam a uma série de problemas que a todos desnorteiam e minam as esperanças de saídas.

    As consequências, nessa sociedade de consumo, aparecem nas relações pessoais, passando a se caracterizar da mesma forma que as relações entre sujeitos e objetos: perecível e consumível.²⁸ Nesse aspecto, estamos sempre dispostos a substituir em vez de consertar. Aparecem ainda nas estruturas de poder que permeiam a sociedade, como a Justiça e o Poder Judiciário, que tem por objetivo enquadrar condutas humanas em padrões de vivência necessários ao convívio social.

    Segundo Cavalcanti Neto, na pós-modernidade, a justiça, presente na humanidade desde os seus primórdios, também se liquefaz. Para o autor, se houvesse um conceito rígido

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