Missão Imperial e Destino Manifesto: o léxico da ideologia nacional dos Estados Unidos na Guerra Fria (1947-1991)
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Missão Imperial e Destino Manifesto - Sandro Marques dos Santos
1. Um Povo eleito em uma Terra Prometida: as raízes do nacionalismo norte-americano
E a vós vos tenho dito: Em herança possuireis a sua terra, e eu a darei a vós, para a possuirdes, terra que emana leite e mel. Eu sou o Senhor vosso Deus, que vos separei dos povos.
Levítico 20:24
Em seu surgimento, o nacionalismo dos Estados Unidos diferenciou-se dos nacionalismos europeus que nasceram simultaneamente a ele. Enquanto os nacionalismos do Velho Mundo enfatizaram permanência e continuidade, um passado glorioso em terras ancestrais, os norte-americanos deram destaque a ideia de nação como comunidade política, como compartilhamento de uma mesma experiência republicana de governo. Em alinhamento com esse pensamento, a Declaração de Independência não fez nenhuma referência aos Pais Peregrinos, ou a qualquer forma de antiguidade do povo dos Estados Unidos como justificativa histórica para a independência. A ruptura dos laços entre os colonos e o Império Britânico era também uma ruptura entre passado e presente. As gerações de norte-americanos subsequentes, entretanto, não puderem experienciar esse explodir do continuum histórico. Por essa razão, a segunda geração de nacionalistas nas Américas, deram início ao processo de leitura genealógico do nacionalismo – como expressão de uma tradição histórica de continuidade serial.
Assim, a partir de 1802, o passado peregrino começa a ser lido como um repúdio da dominação inglesa e tentativa de fundação de um governo nativo à América
. Entretanto, ainda que uma noção de ancestralidade nacional tenha surgido nos Estados Unidos (ancestralidade não apenas com os peregrinos, mas eventualmente com os próprios independentistas), a ênfase na ideia de nação como experiência política permaneceu central para o nacionalismo do país. E, na medida em que os Estados Unidos se tornaram uma nação de imigrantes, essa adesão aos princípios da Constituição e da Declaração de Independência como o que conecta um povo culturalmente tão diverso se tornou ainda mais importante. Mas central para essa ideia de nacionalismo civil também foi uma crença surgida ainda nos tempos coloniais: a crença de que a América
era uma terra prometida concedida a um povo eleito.
Os rudimentos do tema de destino providencial na América
podem ser encontrados na colonização britânica no Novo Mundo. O estabelecimento de colônias não era um empreendimento ordinário. Não apenas pelo que ele implicava em termos de riscos financeiros e de riscos às vidas daqueles que se dispunham a fazer a viajem transatlântica, como também por seu significado simbólico. Muitos colonos viam seus assentamentos como um projeto de extensão da civilização através da qual Deus operava pela redenção da humanidade. Os puritanos particularmente tinham na descoberta e posterior colonização da América uma oportunidade para a purificação da Igreja longe do caos e corrupção do Velho Mundo. Uma nova Israel era possível em novas terras. Logo, a própria ideia de América estava ligada ao paradigma bíblico de um povo, como os antigos hebreus, que recebeu uma missão sagrada em uma nova terra.
Não podemos, é claro, tomar a motivação religiosa como a racionalidade única (nem se quer a dominante) por de trás do desejo de formar colônias. Entretanto, uma visão religiosa era a principal fonte de significado maior para o autoentendimento daqueles que se aventuraram além-mar. Essa sacralização de empreendimentos seculares perdurou como traço importante nas Treze Colônias. É nesses termos que a Guerra dos Sete Anos será entendida. Precedentes bíblicos foram fundamentais para apresentar o conflito entre franceses e britânicos como uma batalha entre liberdade e tirania, na qual o futuro da cristandade dependia. Essa guerra reviveu o medo protestante do catolicismo ao mesmo tempo em que vinculou o destino do cristianismo com as esperanças pelo futuro da liberdade. Disso resultou um fervor nacionalista britânico nas colônias, que abrandou as tensões entre colonos e entre esses e a metrópole. Mas esse nacionalismo não perdurou, pois, poucos anos após a proclamação da paz, o futuro da liberdade seria vinculado ao rompimento dos laços com a terra mãe britânica.
A recusa das Treze Colônias de arcarem com o rebalanceamento financeiro pós-guerra via impostos sem a devida representação parlamentar desencadeou uma crise política com a metrópole e aprofundou essa conexão entre liberdade e convicções religiosas tradicionais. Mas já não eram mais adversários tirania católica e tirania francesa, mas tirania britânica. E o valor central no confronto desse inimigo, a liberdade, adquiria um sentido cada vez mais republicano. Uma retórica de origens britânicas estava se transformando em uma poderosa ferramenta contra a Coroa e o Parlamento. Uma síntese entre republicanismo e religião se formava para explicar e apoiar rebelião colonial. O panfleto Senso Comum (1776) de Thomas Paine, que tanto fez pela mobilização da opinião colonial contra a Coroa britânica, é um exemplo particular dessa síntese. Ainda que um crítico da religião organizada e um deísta (uma perspectiva teológica no mínimo heterodoxa e possivelmente herética na visão de religiosos mais tradicionais), Paine não se preveniu de usar as escrituras para os fins da causa republicana. Como resultado, uma visão da América como um local sagrado e providencialmente selecionado para propósitos divinos encontrou uma contrapartida na ideia secular da nova nação América
como um grande experimento de liberdade para o benefício da humanidade como um todo.
Assim, a despeito das visões racionalistas e deístas que alguns de seus membros pudessem ter, o grupo de homens que veio a ser conhecido como Pais Fundadores era vigoroso em pronunciar o destino providencial da nova nação. A ideia do Deus deísta como um relojoeiro que, uma vez tendo criado o universo (ou o relógio na clássica metáfora), o deixa operar por si mesmo era posta de lado em favor de um Deus intimamente envolvido com os eventos da história dos Estados Unidos: Providência divina foi a força que levou os Estados Unidos à liberdade; eventualmente, a providência, através do exemplo dos Estados Unidos, direcionaria o mundo para o mesmo fim.
Aos Fundadores, somaram-se ao clamor pela nação providencialmente escolhida os clérigos das colônias. Longe de prescreverem as convicções antirrepublicanas que usualmente (fora dos Estados Unidos) acompanhavam suas crenças religiosas, o clero protestante abraçou o republicanismo. O que o tornou instrumental para conquistar apoio popular à causa revolucionária. Mais colonos estavam preparados para engajar-se em revolta armada pela influência dos sermões de domingo do que pelas leituras de livros e panfletos liberais. Nesse sentido, destituídos de outros atributos que pudessem construir solidariedade nacional, esse republicanismo cristão proporcionou o vocabulário simbólico para a jovem nação.
A eventual vitória na guerra revolucionária concedeu ainda maior credibilidade a ideia de que os Estados Unidos eram de fato abençoados com um destino maior. Representando ambos esse otimismo surgido do sucesso militar da revolução e essa síntese de sacro e secular, a figura de George Washington, principal comandante militar do patriotas e futuro presidente, foi elevada a posição de uma quase santidade política. Da perspectiva do republicanismo, Washington era comparado pelos seus compatriotas a Cincinato, o general romano modelo de dever civil; enquanto na perspectiva religiosa, ele era comparado a Moises, o patriarca que direcionou o povo hebreu à Terra Prometida. Vemos, então, a forma como visões religiosas e republicanas foram unidas para celebrar a fundação dos Estados Unidos como um momento especial na história moderna tal como a colonização havia sido no passado. Consequentemente, a nova Israel de Deus foi transformada em uma república; um destino colonial tornou-se um destino nacional.
É precisamente nessa transição de mitos puritanos de colonização para um mito nacional que nasce o Mito do Destino Manifesto. Nesse mito nacionalista, residia nos Estados Unidos a responsabilidade de provar a viabilidade da forma republicana de governo e, por extensão, a responsabilidade sobre a sua futura expansão. Naquele momento, entretanto, não havia um chamamento em favor da condução de missões em outras partes do mundo. Certamente era desejo dos Pais Fundadores que os ideais de sua revolução chegassem a outros povos, mas seria o exemplo do sucesso de sua república, não sua força em armas, a agência dessa mudança. Ninguém poderia forçar outras nações a serem livres. Entretanto, mesmo sem a contrapartida de uma ação direta para sua promoção, é nesse momento que a expansão da democracia e dos princípios a ela associados foi colocada como fundamento da missão norte-americana. Mas, novamente, no que dizia respeito a outros povos, essa seria uma missão de liderança pelo exemplo somente.
Era para o benefício de todos os povos que os Estados Unidos se isolassem em sua experiência republicana. Pois, na visão dos norte-americanos, essa experiência só poderia ser bem-sucedida se ela fosse prioritariamente desenvolvida internamente. Muitos especialmente temiam uma contaminação
pelos vícios do Velho Mundo se o país se engajasse em disputas e alianças que o levassem a travar conflitos estranhos aos seus reais interesses. Tal como os puritanos no período colonial, os Estados Unidos construíam sua identidade em contraposição a um Outro europeu. Genericamente, a Europa era, em sua visão, um continente formado por países corruptos devido à natureza própria de seu sistema político e de suas atitudes externas hostis e imperiais. Desse modo, não é possível separar as percepções norte-americanas desse período sobre sua política interna e externa dos desenvolvimentos europeus, pois eles tanto direta como indiretamente, afetavam as possibilidades e as imagens que os norte-americanos tinham de sua posição e lugar no mundo.
Temendo se tornarem peões nos jogos de poder europeus, os Estados Unidos decidiram por manter solidariedade retórica com outros povos, enquanto mantinham uma política externa que reconhecia as possibilidades e os limites para um país destituído da musculatura diplomática e militar de um Império Britânico. Assim, se a política externa norte-americana era diferente ou melhor do que a das potências europeias, era unicamente pela virtude de os Estados Unidos serem uma república; sua política sendo, portanto, reflexo dos interesses de sua população e não de uma dinastia. Logo, "a política externa existia para defender, não definir, o que a América