Inocentes & Culpados: repensando o julgamento inquisitorial ibérico
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Sobre este e-book
Criada pelos Estados Ibéricos e apoiada pela Igreja Católica no século XVI para investigar e punir indivíduos que não estivessem agindo de acordo com a moral religiosa, a Inquisição Moderna foi uma instituição que agiu através de denúncias e segredos, forjando heresias e apontando como principal inimigo o cristão-novo. Ao analisar o funcionamento do Tribunal do Santo Ofício, através de documentos inquisitoriais e trabalhos diversos publicados sobre o tema, percebe-se o caráter indispensável que a instituição teve no sentido de restringir as liberdades individuais, em prol de uma ideia de uniformidade baseada numa verdade absoluta – a fé católica. Em um período de tantas transformações como foi o da modernidade, a Inquisição se tornou uma das principais instituições de manutenção do Antigo Regime, assegurando o poder nas mãos do clero e da nobreza.
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Inocentes & Culpados - Maria Carolina Scudeler Silva
Para Luiza e Alice, que fortalecem
minha caminhada.
PREFÁCIO
A suspensão dos trabalhos inquisitoriais, em Portugal, completa 200 anos em 2021. É uma data simbólica que está sendo comemorada com seminários e publicações. Hoje, é grande o número de estudiosos que se debruçam sobre o tema, como são diversas as suas interpretações. Maria Carolina Scudeler faz parte de uma corrente, hoje vista como honrosa, a chamada escola Novinsky
. Sua inspiração e orientação teórica, assim como a minha, vieram da professora Anita Novinsky, que nos deixou em julho de 2021. No entanto, em um passado bem próximo, fazer parte desse grupo não era razão de reconhecimento alheio. O orgulho era nosso, mas ao termo era dado um sentido pejorativo, pois os trabalhos da pesquisadora, que abriu caminho aos estudos inquisitoriais e à discussão sobre os marranos e bnei anussin, passaram a ser criticados e vistos como parciais e desatualizados. Verdade é que muitos poucos desses escritos críticos apresentam a qualidade e o rigor científico que Anita cultivou em toda a sua vida, mas ganharam espaço nas academias e mídias.
A trajetória acadêmica e o excelente trabalho de Maria Carolina, que ora se publica Inocentes & Culpados, estão inseridos nesse contexto e, com certeza, esse livro daria uma enorme satisfação à professora. Peço licença à Carolina para usar esse prefácio também como uma homenagem à Anita Novinsky.
Maria Carolina desenvolveu um trabalho inspirador e sério nas pesquisas e coerente em suas conclusões. Pessoas leigas ou com conhecimentos superficiais sobre Inquisição podem utilizá-lo como ferramenta de compreensão do fenômeno e ponto de partida para discussão de temas que estão tão distantes no tempo de nós, quanto próximos em experiências vividas na contemporaneidade. Os estudos inquisitoriais nos aproximam das práticas judiciais, dos sistemas políticos modernos, do alcance das várias áreas do Direito e Maria Carolina soube como tratar essas questões de maneira a nos deixar ainda mais interessados nelas.
Podemos entender muito claramente as primeiras experiências inquisitoriais: ações locais e específicas dos Bispados frente a seitas dissidentes ou populações mais arredias, mas as Inquisições ibéricas e, em particular a portuguesa, são fenômenos ímpares, de difícil assimilação para os padrões de Justiça e do Direito atuais.
A dinâmica inquisitorial ibérica foi única. Julgava de antemão, após as denúncias e/ou confissões, antes dos processos finalizados. O que apontam os documentos e o que Maria Carolina prova é que o réu era considerado sempre culpado e que provar sua culpabilidade era a única forma de conseguir sair vivo dos cárceres. Esse fator, e o segredo, formaram o cerne do sistema. O segredo permeava todo o processo: o réu não sabia a que crimes respondia (tinha que descobri-los), assinava termo de que nunca falaria sobre o que se passava no interior da Inquisição e que, se o fizesse, seria preso novamente, desta vez com muita pouca chance de redenção.
O Tribunal, com seus Monitórios, esclarecia ao corpo de funcionários o seu papel de responsabilidade na defesa da pureza da fé, mas deixava claro o seu caráter político. A estrutura (física e burocrática) era muito dispendiosa e as necessidades econômicas foram resolvidas com os confiscos de bens. No entanto, os interesses materiais extrapolavam o Tribunal e alcançavam o poder monárquico (a quem eram devidos os confiscos, teoricamente) e o imaginário popular.
De todos os pontos discutidos por Maria Carolina, achei interessante pensarmos sobre as penas estabelecidas pelo Santo Ofício da Inquisição. Afinal, até que ponto podemos considerá-las caminhos da redenção? Os réus expostos ao tormento confessavam honestamente suas culpas? A tortura era eficiente para que não houvesse reincidência na heresia? Quais podem ter sido as consequências psicológicas da tortura (psicológica e/ou física) nos réus? Quanto e como as penas de galé e degredo objetivavam a recuperação espiritual? Os processos inquisitoriais são suficientes, como fontes, para responder a esses questionamentos? Há novas respostas para essas questões, sistematicamente formuladas?
Maria Carolina responde alguns desses tópicos:
Na nossa visão, é evidente que esse caminho seguido pelo julgamento – de confissão e arrependimento das culpas – demonstra que a morte de um herege não traz o benefício que traria uma conversão. Como a Inquisição não errava nunca, ao réu apenas restavam basicamente duas alternativas: confessar e se arrepender, independentemente de ser culpado, ou negar tudo e ir para a fogueira. A última, apesar da teatralização do evento, não era tão eficiente quanto uma conversão bem-sucedida, pois enquanto a morte significava apenas o poder da instituição – da qual nenhuma pessoa podia escapar – a primeira significava essencialmente a verdade cristã, cuja infalibilidade era exclusiva – cada arrependido era a demonstração concreta desse fato
. Portanto, a Inquisição não procurava o arrependimento porque era boa, mas sim porque esse era o melhor resultado para as suas aspirações.
Citando Eymerich, Maria Carolina resgata o caráter da Inquisição, mais político do que religioso, já que:
é preciso lembrar que a finalidade mais importante do processo e da condenação à morte não é salvar a alma do acusado, mas buscar o bem comum e intimidar o povo. Ora, o bem comum deve estar acima de quaisquer outras considerações sobre a caridade visando o bem de um indivíduo.
Os pesquisadores ou o público mais interessado, sabem dos regulamentos do Santo Ofício e são sabedores de que tanto os castigos quanto as penas foram aspectos fundamentais na estrutura do Tribunal.
O que nos perguntamos repetidamente é o porquê da aplicação dos castigos físicos e, nesse momento, não estamos tocando na questão da tortura psicológica impingida aos réus. A primeira justificativa, que acredito vir à tona, para a maioria das pessoas, é a de que a época moderna, na qual inserimos a Inquisição, era um momento em que a violência era empregada como método pelo aparato policial, tanto quanto pelo inquisitorial, e que, portanto, não deveria receber tantas críticas. Para tanto, podemos nos reportar ao trabalho de Michel Foucault, como Vigiar e Punir, por exemplo. Assim, a leitura da história nos faria entender que o Santo Ofício, bem como as outras instâncias, estavam justificados na sua correspondência com o momento histórico. De qualquer maneira, sabemos que nenhum método é escolhido sem objetivos claros e precisos. E o que sempre nos salta aos olhos, por outro lado, é o fato de que, apesar da Inquisição ser um Tribunal, ela tinha características específicas: seus representantes o batizaram de santo. Dessa forma, para a Igreja cristã, ou para uma parte dela, que se dizia alheia à violência, a Inquisição foi uma grande contradição em seus métodos e, quiçá, em seus fins.
Em artigo que discute a prática da tortura e a pena da fogueira, Ronaldo Vainfas aborda questões que podem dialogar com este trabalho. O autor parte da descrição de um auto de fé, no qual a emblemática frase Misericórdia e Justiça
era exposta para representar aos espectadores, a súmula dos objetivos da Inquisição. A instituição é vista pelo autor como o exemplo ibérico mais apurado de uma intolerância própria do Antigo Regime, mas nenhuma discussão progredirá caso confundirmos o Tribunal com seus algozes, ou reduzirmos os inquisidores a meros incendiários legalmente investidos.
Para alguns dos defensores do Tribunal, este era necessário à sociedade, para a manutenção da fé pura, insistentemente agredida por crenças antigas, como o Judaísmo, ou novas correntes nascidas no seu próprio interior, em seitas dissidentes. A conclusão é a de que a tortura era um meio extremo, mas válido, para fazer os presos chegarem à confissão das culpas a eles imputadas. E esta, como sabemos, era imprescindível na readmissão do herege à religião oficial ibérica. O objetivo da confissão exigida dos presos em nada se assemelhava àquela que almejava apenas o perdão e o conforto, estabelecido pelo Tratado de Latrão em 1215.
A veracidade das confissões no cárcere e principalmente aquelas extraídas durante sessões de tortura é que precisa continuar a ser analisada. A investigação do professor Saraiva, também apontada por Maria Carolina em seu livro, iniciada anos atrás, ainda suscita debates. Para Saraiva, o processo era um simulacro de tão corrompido.
Os representantes do Tribunal determinavam de antemão que todos os descendentes de judeus eram prováveis judaizantes, logo réus em potencial. Os inquisidores desconsideraram a verdadeira conversão de diversos judeus, acabando por afastar muitos outros da religião, pois estes percebiam, pelas próprias experiências, ou de parentes e amigos, a hipocrisia do sistema. Como distinguir nas confissões os crimes de heresias reais de práticas nunca realizadas?
Nesse ponto, os defensores da Inquisição caem em contradição, pois, para além da pureza da fé, os tribunais ibéricos estavam pautados na questão da descendência hebreia. Não há como negar, porque os números não mentem, já que a expressiva massa de prisioneiros era cristã nova. Um dos primeiros interrogatórios e um dos mais importantes era o da genealogia. Nesse momento, os inquisidores insistiam em conhecer os familiares dos réus, porque acreditavam que os costumes do judaísmo se perpetuavam em casa, ensinados no interior dos lares e abrigados da exposição pública. Isso, porém, foi lei durante quarenta anos em Portugal, pois, mesmo com a conversão, o próprio édito estabelecia que as práticas da religião judaica poderiam ser realizadas, por um período de vinte anos, acrescidos de mais vinte, somente se estivessem confinadas aos lares. Logo, por princípio, não poderiam ter perseguido o que a lei permitia. Mas, cristão novo, caso insistisse em sua inocência, dizendo-se fiel cristão, morria. Morria se não confessasse e morria se fosse inocente. Para Anita Novinsky, segundo os estilos
inquisitoriais, morriam, principalmente, os mais fiéis cristãos.
O padre baiano, Manoel Lopes de Carvalho, por exemplo, que foi batizado por Anita Novinsky como o Giordano Bruno brasileiro, ouvia os gritos dos torturados que ecoavam nos seus ouvidos, quando os Inquisidores lhes prometiam misericórdia e pediam que confessassem. Depois de várias sessões de tortura, o padre pronunciou sua própria sentença ao dizer:
Eu sou cristão, e não vocês"! O pobre padre foi queimado vivo no ano de 1726.
A respeito dessa confissão, ou retratação, exigida pelos Inquisidores, desde a época de Galileu, há muitos relatos de presos, padres, e até de ex-funcionários da própria instituição que, de maneira veemente, a atacavam e desmascaravam.
Diversas vozes poderosas se levantaram contra essas confissões, tais como as de Antonio Ribeiro Sanches, e do padre Antonio Vieira. Anita destaca que, para o padre Vieira, por exemplo, os cristãos novos eram penitenciados completamente inocentes, porque as regras e o funcionamento do Tribunal obrigavam o réu sempre a assumir a culpa
e muitos crimes eram forjados em um Tribunal onde os inocentes padeciam e os culpados triunfavam.
Para a professora Anita Novinsky, a confissão preenchia uma função político-ideológica, pois aumentava o número de novos prisioneiros e os seus bens, que eram sequestrados, em um primeiro momento, e geralmente confiscados no final dos processos, garantiam a manutenção da dispendiosa máquina burocrática.
Quanto às confissões feitas durante as sessões de tortura, perguntamos mais uma vez: esses homens e essas mulheres confessavam honestamente suas culpas? Perguntamo-nos mais: o que seria, no interior das prisões do Santo Ofício, confessar sincera e honestamente
as culpas? A tortura era eficiente para que não houvesse reincidência na heresia?
As respostas mais enfáticas vêm dos processos inquisitoriais, uma das mais ricas fontes para tentarmos entender o mecanismo de defesa dos réus frente à complexa engrenagem montada pelos inquisidores. Pelos relatos e, principalmente, por textos deixados pelos réus e que incorporam os processos, podemos concluir claramente que a confissão nem sempre era honesta, não objetivava se reabilitar perante a religião, mas era uma forma de abreviar momentaneamente a dor física. Consistia também numa tentativa de fuga do inferno abreviado
, do desespero causado pela desonra, pela vergonha da nudez, pelo espanto diante da impotência, pelo medo da morte iminente.
Quais eram então as torturas praticadas? O primeiro relator de processos inquisitoriais que conhecemos, Pedro Lupina Freire, já nos alertava nas Notícias Recônditas que, no ato da prisão, eram tirados do preso tudo o que este levava de ouro e prata, cruz ou imagens, tirando-lhes também todo os livros, mesmo aqueles que não contivessem salmos do Testamento Velho
. Tanto os livros de orações quanto a presença de um padre para as confissões e alívio espiritual lhes eram negados.
Outra tortura era a própria prisão, concebida em seu caráter físico: uma casa de quinze palmos por doze de largura, escura, onde presos para verem alguma cousa, tinham que ficar em pé, pois quando sentados, nada viam; e assim, comiam às escuras, desejando a noite para lhes dar luz
.