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Cruz e Sousa: Dante negro do Brasil
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E-book549 páginas11 horas

Cruz e Sousa: Dante negro do Brasil

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Sobre este e-book

Cruz e Sousa é singular em termos étnicos e existenciais. Isto é deixado bem claro por Uelinton Farias desde o começo do texto, ao caracterizá-lo como "negro retinto", de origem banta, sem qualquer mescla de sangue europeu, logo "diverso em origem de muitos homens negros que lhe seriam contemporâneos, entre os quais Machado de Assis, José do Patrocínio, Luiz Gama, Ferreira de Araújo, Olavo Bilac, Alcindo Guanabara, Capistrano de Abreu, Barão de Cotegipe, André Rebouças e muitos outros".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento16 de out. de 2015
ISBN9788534705806
Cruz e Sousa: Dante negro do Brasil

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    Cruz e Sousa - Uelington Farias Alves

    EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA

    A ideia de escrever este livro surgiu há cerca de dez anos, quando transcorreu o centenário da morte de Cruz e Sousa (1898-1998). Naquela época não houve meios de concretizá-lo. Mas lembro-me perfeitamente que o seu Estado natal, Santa Catarina, realizou uma série de brilhantes eventos relativos à data, que incluía mostras expositivas, palestras e lançamentos de livros sobre o Poeta Negro. O Rio de Janeiro, no entanto, não ficou de fora dessas homenagens e atuou de forma decidida nas cortesias ao grande poeta.

    Passada uma década desta importante efeméride, eis que surge a grande oportunidade de realizar uma nova homenagem ao autor inconfundível de Broquéis, Missal, Evocações Faróis e Últimos Sonetos, livros que marcaram incontestavelmente a história da literatura brasileira. Não se pode dizer que esta oportunidade surgida nasceu do acaso; na verdade, ela é fruto da visão empreendedora da equipe da Pallas Editora, então capitaneada por Cristina Warth, que ao apostar no projeto editorial desta obra, imprimiu nela o mesmo grau de seriedade e dedicação que sempre pautou o trabalho pioneiro da editora ao longo desses anos.

    Nas últimas décadas, algumas descobertas trouxeram à superfície documentos e informações relevantes sobre a vida e a obra do Poeta Negro, que foram divulgados de forma fragmentada ou que não tiveram a devida valorização biográfica no seu conjunto. Este livro chega com o compromisso de preencher essa importante lacuna, visando a escapar das reedições de obras caducadas pelo passar do tempo.

    Em vista disso, o leitor de Cruz e Sousa irá encontrar nesse trabalho referências sobre a vida e a obra do poeta até então desconhecimiolo das do grande público ou até mesmo inéditas. O conteúdo pretende repensar a sua trajetória ao longo dos 110 anos de sua morte, bem como reaproximar o leitor dos textos canônicos que decididamente fundamentaram a escola simbolista no Brasil.

    Por último, não podia deixar faltar os indispensáveis agradecimentos àquelas pessoas e instituições que, durante certo tempo, me apoiaram e apostaram na realização desse sonho, envidando esforços e me estimulando a seguir em frente. Cabe aqui destacar – in memorian – as figuras do escritor Henrique L. Alves, do pesquisador José Galante de Sousa e do bibliófilo Plínio Doyle, este meu mestre do Sabadoyle. Além deles, gostaria de registrar o meu agradecimento também às equipes da Biblioteca Nacional, da Fundação Casa de Rui Barbosa, da Biblioteca da Associação Brasileira de Imprensa, da Biblioteca Pública, do Arquivo Público do Estado de Santa Catarina e do Arquivo Público do Estado de Pernambuco, na pessoa do solícito Hildo Leal. Por último, mas não com menor importância, agradeço a paciência da família: Daise, Thais e Rodrigo, que suportaram as minhas ausências.

    Estas são as minhas falas mais urgentes, tão urgentes quanto o desejo de dividir esta experiência com o conjunto da sociedade leitora e apreciadora do nosso Dante Negro do Brasil.

    UFA

    COMEÇO DE TUDO

    João da Cruz e Sousa nasceu em 24 de novembro de 1861, na Cidade de Nossa Senhora do Desterro, atual Florianópolis, capital da Ilha de Santa Catarina. Era de uma família de negros retintos, provavelmente de origem banta, região da atual República Centro-Africana, pertencente a uma das melhores linhagens africanas já chegadas ao Brasil, formada de negros laboriosos, bonitos, sensíveis às manifestações culturais, sobretudo à dança e à música, afeitos a atividades manuais, como a metalurgia, por exemplo. Não possuía qualquer mescla de sangue europeu, diverso em origem de muitos homens negros que lhe seriam contemporâneos, entre os quais Machado de Assis, José do Patrocínio, Luiz Gama, Ferreira de Araújo, Olavo Bilac, Alcindo Guanabara, Capistrano de Abreu, Barão de Cotegipe, André Rebouças e muitos outros. Seus pais, porém, eram naturais da própria Cidade do Desterro. Como Cruz e Sousa, que se tornaria o maior poeta simbolista catarinense e, via de regra, brasileiro, o pai, Guilherme de Sousa, quando do nascimento do filho, ainda era escravo do coronel, depois marechal-de-campo, Guilherme Xavier de Sousa e sua esposa Clara Angélica Xavier de Sousa, conhecida como Dona Clarinda; a mãe, Carolina Eva da Conceição, lavadeira e cozinheira, segundo consta nos registros da época já estava liberta. Guilherme trabalhava como pedreiro e, quando Cruz e Sousa nasceu, ele já deveria contar com a idade entre 40 a 50 anos, presumivelmente.

    O então coronel Guilherme Xavier de Sousa, como soldado a serviço do Império Brasileiro, logo se ausentaria de sua terra natal, com a adesão do Brasil à Tríplice Aliança, que resultou na guerra contra o Paraguai.

    Em uma página de memória, o filho já ilustre, poeta reconhecido, lembraria com carinho do operário humilde da terra¹, o mestre Guilherme de Sousa.

    Contrariando a corrente dos biógrafos do futuro poeta que o querem livre das amarras do cativeiro, para nós o menino João da Cruz nasceu ainda sob o jugo da condição de escravo, como o próprio pai ainda o era. Tais condições nos intrigam até hoje. Pai escravo; mãe liberta. Não que isso fosse uma exceção no Brasil desde a época colonial. Mas, aduzimos, se Cruz e Sousa não foi escravo, foi, pelo menos, meio escravo. Por parte de pai, era escravo; já pela parte da mãe, livre. Essa dicotomia nos faz supor que o coronel Guilherme Xavier de Sousa mantinha dois regimes ideologicamente dominantes, igualmente totalitários: um com negros livres, alforriados, como era o caso da mãe do futuro poeta; outro com negros escravizados, no eito, na senzala, como era o caso do pai. Por falar em senzala, onde afinal moravam o mestre Guilherme e a esposa Carolina nessa fase de suas vidas? Na senzala, já que o pedreiro Guilherme era escravo, ou na Casa Grande, uma vez que Carolina era liberta? Nesse período os dois não eram casados, como se verá adiante.

    Em Santa Catarina, sobretudo na Cidade do Desterro, a maioria da população era de origem branca, europeia, vinda, principalmente, de Portugal. Talvez naquela época esta parcela representasse cerca de 78% do total desses habitantes, como, no geral, era a geografia do território brasileiro. Ou até mais. Embora se diga que os negros eram tratados com algum desvelo pelos seus senhores brancos (e nesse caso para justificar a ascensão de Cruz e Sousa à vida social da província), desde décadas anteriores o preconceito de cor era o imperativo mais forte que separava negros e brancos na capital da Ilha de Santa Catarina. O biógrafo Abelardo F. Montenegro, em livro que já se encontra em terceira edição, comprova que leis e posturas municipais dessa primeira metade do século XIX, compreendendo o ano de 1845, consagram pérolas como a seguinte: He proibido em qualquer caza de negócio ter caixeiro escravo, sob pena de 8$ de multa². As posturas das Câmaras Municipais de São José e de Lages também proclamavam que proibiam que fossem os escravos enterrados sem mortalha³.

    De acordo com a mesma fonte, constam outros casos absurdos e selvagens. Diz um deles que, pelos lados da Lagoa, a 29 de abril de 1860, tentaram queimar o escravo José, besuntando-o de alcatrão. A infância e a meninice de João da Cruz, na Cidade do Desterro da segunda metade do século XIX, foi marcada pelos sobressaltos de vidas submetidas ao jugo do escravismo.

    A sua visão de mundo de menino pobre, porém, bem tratado pelos pais, que lhe cobriam de muito afeto, apenas fez suavizar o que presenciou do desdouro e do esfacelamento da família negra, afeita quase sempre a tratamentos mesquinhos, a atividades subalternas, além, é claro, da miserabilidade a que toda a comunidade estava sujeita, sem nenhuma exceção. Afora os serviços domésticos, aos quais, em sua maioria, eram submetidos, e os trabalhos da lavoura, na chuva e no sol forte ou ao tempo das estiagens, sob o frio inclemente do velho vento sul, os negros serviam nas embarcações dos pescadores, nas armações de baleia, ou na faina diária como agricultores, lenhadores, carregadores, jornaleiros, serventes, encarregados da limpeza das casas, vendedores ambulantes. Operários de várias classes, como pedreiros, carpinteiros, pintores, tanoeiros e caixeiros de comércio dos seus senhores. As mulheres exerciam, em geral, atividades domésticas, empregando-se na cozinha, como doceiras, engomadeiras, amas-secas, babás, entre outras tantas atividades que faziam, sem cessar, muitas vezes até doentes.

    Devido a essas atividades incessantes e muitas vezes impróprias à estrutura física do indivíduo escravo, o número de mortes entre essa população era sempre bastante elevado. Em um apanhado geral, no livro de registro de óbitos de escravos da Igreja Matriz de Nossa Senhora do Desterro, no período entre 1779 e 1811, o registro de falecimento de escravos totalizou 776 vidas, de diversas idades, origens e nações.

    Era um número alto para a época, pois no ano de 1810, para se ter apenas uma ideia do que estamos falando, o percentual de escravos em terras catarinenses era de 7.203 indivíduos, contra uma população livre (branca) de 23.136 pessoas. Portanto, aquele número representava mais de 10% da população negra escravizada falecida. Em termos econômicos, era uma defasagem e tanto.

    Não se sabe ao certo de que nação Cruz e Sousa se originou. É bem provável, como já dissemos, que a sua origem venha do cafre banto, com um refinamento de características e expressões muito definidos. Diz Oswaldo R. Cabral, no seu livro intitulado História de Santa Catarina⁴, o seguinte sobre a origem desse povo:

    O grupo Banto é dividido em dois grandes agrupamentos, o oriental e o ocidental. Os ocidentais dividem-se em 34 nações, das quais em Santa Catarina se encontravam representantes das seguintes: Angolas, Cabindas, Camundás, Cassanges, Camundongos, Benguelas, Monjolos, Quissamãs e Rebolos, mais numerosos os Benguelas. Os orientais, com 28 povos, em Santa Catarina eram representados apenas por um pequeno contingente de Moçanbiques, tidos como os piores elementos, rebelados e turbulentos. Do grupo Sudanês, no país todo em menor número, e os quais pertenciam os Minas, os Mandingas, os Fulas, os Songas e outras nações.

    Registra também Oswaldo Rodrigues Cabral, agora em outro trabalho, no seu monumental livro Nossa Senhora do Desterro⁵, no capítulo intitulado Memória, esta passagem:

    Dizem os tratadistas que os Minas eram bonitos, proporcionais, bem feitos de corpo, de traços suaves, cor menos escura e cabelos menos encarapinhados. Eram de índole meiga e sociável, laboriosos, dóceis, pacíficos, obedientes e humanitários. Os Angolas eram bons, domésticos, inteligentes, pueris, mas libidinosos, loucos por divertimentos e apaixonados por adornos. Eram robustos.

    A venda desses escravos era outra coisa de grande consternação. Não havia o menor critério ou pudor para esse tipo de comércio. Idade ou parentesco, nada disso se cogitava. Tomemos como exemplo o jornal O Argos, de 6 de novembro de 1861, portanto a 18 dias do nascimento de Cruz e Sousa, com a publicação desse inditoso anúncio:

    Acha-se na rua do Príncipe, no̱ 32, sobr., 1 mulatinha para vender, de 7 para 8 anos de idade.

    No mesmo jornal, mas a 16 de dezembro de 1861, agora já nascido o futuro poeta, outro anúncio que assim dizia:

    Vende-se 1 crioulinha de 4 para 5 anos de idade e 1 crioulinho de 18 meses; quem os pretender, na casa de Antônio Francisco Faria, rua do Príncipe, 1, se indicará.

    Ou ainda mais este anúncio:

    Vende-se (sic) 4 escravos, sendo 2 pretas que costuram, lavam e cozinham perfeitamente, tendo uma de idade 32 anos e outra 22 a 23; e dois crioulos de idade, um de 8 a 9 anos e outro de 4 a 5 anos, nesta tipografia se indicará o vendedor.

    Havia também anúncios de outra natureza, mostrando os motivos das vendas. Como este publicado também no jornal O Argos, da edição de 4 de outubro de 1859:

    Vende-se 1 escravo, tanoeiro, apto para qualquer outro serviço, sendo o motivo da venda por causa de viver em rixa com seu parceiro e pedir para ser vendido.

    Um outro anúncio, publicado dessa vez no jornal O Novo Íris, de 1850, tinha esse teor: Na rua do Livramento, no̱ 10, precisa-se, e com a maior brevidade, de uma ama-de-leite; não se olha o preço, sendo limpa e com abundante leite, dando-se preferência a que não tiver cria⁶.

    Ou ainda:

    Vende-se uma escrava de nação Angola, maior de 30 anos, sabendo cozinhar e lavar, não sendo perfeita engomadeira; trata do arranjo da casa e de crianças; afiança-se não ser viciosa; para tratar na rua da Paz, no̱ 23, com Manoel Domingos Tavares.

    Assim, daí por diante…

    Havia casos em que os senhores se envolviam com a justiça devido a alguma transação escusa na qual o escravo entrava como moeda de troca. Como foi o caso de alguns senhores da época da Lei no̱ 340, de 1852, punidos por quererem burlar a cobrança de uma taxação relativa à transferência de escravos para fora dos domínios da província. Como manter o escravo no local desvalorizava muito a peça ou a mercadoria, no tocante à sua venda junto ao comércio, e esses senhores tencionavam levá-lo para ser vendido a alguma fazenda do Rio de Janeiro ou de São Paulo, o dono da peça procurava, de uma maneira ou de outra, tirá-lo maliciosamente da área. Quando esta operação fracassava, por razões diversas, ou em função da fiscalização das autoridades, vejam só!, o escravo ia para a cadeia pública enquanto o governo resolvia a situação com o seu dono. Os senhores, proprietários ou responsáveis pelo escravo, no entanto, aguardavam confortavelmente no sossego de seus lares, no seio da boa família, o resultado da investigação governamental e o seu veredicto; na hipótese de uma condenação dos senhores, em geral estes ganhavam apenas uma punição, não passava disso, o que nem sempre resultava em pagamento de multa em dinheiro, mas logo tinham a restituição de suas peças. Já o escravo… Há algumas máximas que se perpetuaram com o tempo, desde aquela época, e que até hoje marcam o estado de espírito predominante daquele período. Dessas máximas, algumas das que ficaram mais fixamente em nossa memória:

    Escravo não era gente; era coisa.

    Escravo não poderia freqüentar escolas.

    Escravo não poderia ser caixeiro de casa comercial.

    Escravo não tinha pátria, nem podia adotá-la,

    nem se fosse crioulo nascido já na terra.

    Escravo não tinha permissão para andar à noite na rua, gritar, xingar, namorar, cantar, participar de entrudo (carnaval), beber ou professar qualquer tipo de religião, a menos que o fosse expressamente permitido pelos seus senhores.

    Aqueles que desobedecessem a essas proibições, que vigiam como verdadeiras leis, eram severamente punidos com multa em dinheiro, maus-tratos no eito ou no pelourinho e, caso não pudessem seus senhores ou os próprios escravos pagar por suas infrações, os mesmos iam ou permaneciam na cadeia, onde passavam a prestar gratuitamente serviços de conservação e limpeza das celas, incluindo a retirada de lixos, de excrementos, como fezes, que deveriam ser atiradas pelos terrenos baldios das vizinhanças ou nos rios, limpar as escarradeiras, que a moda era cuspir pelo chão. Trabalhos dos quais o branco fugia como o diabo foge da cruz.

    Mesmo com toda essa atitude severa por parte do poder público e os maus-tratos sofridos, que pareciam tirar-lhes qualquer valor, havia um paradoxo no ar: na maioria das vezes o valor de um escravo era bem superior ao que um tenente ou um capitão recebia de soldo anualmente.

    A partir de 1850, com a institucionalização da Lei no̱ 581⁸, proposta por Euzebio de Queiroz, ficou proibido o tráfico de escravos africanos para o Brasil. Com isso intensificou-se o comércio de escravos entre as províncias, como foi o caso de Santa Catarina.

    Em 1860, havia em Santa Catarina pouco mais de 16 mil escravos. Era de se supor que a situação narrada acima, em função da ganância dos escravocratas e demais interessados no comércio humano dos que possuíam o estigma de terem nascido com a pele negra, piorasse com o passar do tempo e com a ampliação desse número, que crescia na mesma direção que a população livre, com algumas exceções, é lógico, como mostra a tabela, extraída do capítulo Quadro geral de crescimento da população de Santa Catarina, do livro de Osvaldo R. Cabral⁹, já mencionado, História de Santa Catarina, compreendendo o período de 1810 a 1881, como está a seguir:

    Esta estatística, que ao longo dos anos teve seus altos e baixos (percebe-se a distância que separa alguns anos sem pesquisa), dá uma ideia do contingente populacional habitante das terras catarinenses, com início em período que antecede o nascimento do futuro Poeta Negro, e abrange o ano de 1881 até sua fase de franca atuação escolar e cultural, tendo em vista que nessa fase já havia concluído o curso de Humanidades, no Ateneu Provincial Catarinense, e já havia feito sua estreia na imprensa local, que data do ano de 1879.

    Nesse contingente populacional negro é que se insere João da Cruz e Sousa, bem como, e, principalmente, a sua família, que tinha o pai e a mãe como figuras essenciais.


    ¹ Abrindo Féretros, de Evocações in Obra Completa de Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1995, p. 631.

    ² Cruz e Sousa e o movimento simbolista no Brasil. 3a edição, Fortaleza: UFC, 1998, p. 28.

    ³ Idem.

    ⁴ Editora Lunardelli, 3a̱ edição, 1987, p. 167.

    ⁵ Editora Lunardelli, vol. 2, 1979, p. 382.

    ⁶ Edição de 6 de setembro de 1850.

    O Argos, edição de 28 de agosto de 1857.

    ⁸ Aprovada em 4 de setembro de 1850.

    ⁹ 1987, p. 167.

    SUAS ORIGENS

    Guilherme de Sousa (1807(?) — 1896) era filho de João, escravo do major Francisco de Sousa Fagundes¹⁰, daí veio o seu sobrenome Sousa, repassado ao restante da família. O coronel Francisco era, por sua vez, pai de dona Clara Angélica de Sousa Fagundes (o seu nome completo de solteira), mais tarde Xavier de Sousa, devido ao seu casamento com o tenente-coronel, depois marechal-de-campo, Guilherme Xavier de Sousa, patente alcançada em ato de 1/6/1867. O militar exerceu dois mandatos: a 15ª e 17ª Legislatura, entre 1864 e 1869¹¹. A avó paterna do poeta chamava-se Luiza Rosa da Conceição, também escrava, que por sua vez era natural e batizada na Matriz da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro. A mãe do poeta Cruz e Sousa, Carolina Eva da Conceição, era filha da escrava Eva e, conforme dito anteriormente, era alforriada.

    Este traço da ancestralidade da família do poeta Cruz e Sousa, já descrito por mim num artigo intitulado A origem de Cruz e Sousa¹², é marcante na genealogia do próprio vale catarinense. No aludido artigo, transposto para o jornal catarinense, assim eu assinalava esta assertiva:

    A raiz ou a origem da árvore genealógica do poeta Cruz e Sousa, na verdade, teve início remoto, em qualquer ponto obscurecido pelo tempo na África negra, no longínqüo século XVIII ou XIX, a partir do cafre bantu, da espécie de indivíduos que no Brasilcolônia foram codnominados — angolas, cabindas, benguelas, congos, moçambiques — conforme a nação (algo parecido com um reinado africano) que marcava as suas origens.

    Em outro tópico do mesmo artigo, escrevo a seguinte passagem:

    Os bisavós de Cruz e Sousa devem ter chegado provavelmente em algumas destas viagens num destes chamados navios negreiros, tão freqüentes naqueles tempos, que por tantos anos singraram os mares rumo às costas brasileiras:

    Até onde foi possível chegar em nossas pesquisas, a árvore genealógica do Poeta Negro Cruz e Sousa pode ser assim constituída:

    Avós paternos de Cruz e Sousa: João, escravo de Francisco de Sousa Fagundes, pai de dona Clara Angélica Xavier de Sousa, esposa do marechal Guilherme Xavier de Sousa. João era casado com Luiza Rosa da Conceição, também escrava, ambos desterrenses. Não se sabe ainda se o casal teve outros filhos, além do filho Guilherme, conhecido hoje por ter sido pai do mais importante poeta simbolista brasileiro e catarinense. Há um indício de que Cruz e Sousa tenha tido um tio de nome José, alfaiate de profissão¹³. Guilherme de Sousa casou-se com Carolina Eva da Conceição (? — 1891), que era filha da escrava Eva. Dessa união nasceram os meninos João da Cruz e Sousa e Norberto da Conceição Sousa. Norberto da Conceição Sousa (1864 — ?), sem deixar maiores registros de sua existência, desapareceu após 1888 ou 1890 para a direção de Minas Gerais ou São Paulo, chegando a morar em Santos, onde tinha como amigo o Dr. José Ribeiro da Costa, e residindo à rua do Rosário, no̱ 155. Teve poucos contatos depois disso com a mãe e o pai. Com o advento da Abolição da Escravatura, ele e Cruz e Sousa deixaram suas cidades para ganhar a vida. O poeta veio para o Rio de Janeiro, diferente de Norberto. Ex-aluno do Colégio da Conceição e do Ateneu Provincial Catarinense, Norberto teve a mesma educação esmerada que o irmão famoso. Não se sabe o motivo que o levou a tomar rumo inverso ao de Cruz e Sousa, na vida e na carreira das Letras. Não se conhece qualquer registro de próprio punho seu. Mas nos registros dos jornais, sabe-se que foi um bom aluno¹⁴.

    Quando Guilherme e Carolina se casaram, em 16 de agosto de 1871, quase um ano depois do falecimento do marechal Guilherme Xavier de Sousa (1818—1870), o preto Guilherme já era dado como liberto. De duas, uma: ou o escravo foi libertado pouco antes da morte do militar ou logo depois. Ao contrário do que vem sendo dito e repetido por todos os biógrafos, não houve bens de herança partilhada aos pais de Cruz e Sousa pelos serviços prestados à família¹⁵. Tanto isso é verdade, que, logo após o falecimento do marido, Dona Clara Angélica foi brindada com uma pensão (decreto de 23/5/1871), refundida logo em seguida pela Regente D. Isabel (decreto de 8/7/1871), sem prejuízo do meio soldo¹⁶, no valor de 180 mil-réis mensais.

    Por curiosidade documental, leiamos o que diz a certidão de casamento dos pais do poeta Cruz e Sousa:

    Aos desesseis dias do mez de Agosto de mil oito centos settenta e um n’esta Freguesia de Nossa Senhora do Desterro e Capella do Rozario, as oito horas da manhã, feita uma denunciação, dispensadas as duas por causa canônica, na forma do Concilio de Trento, Constituições do Bispado e Leis, na minha presença e das testemunhas abaixo asignadas se receberão em matrimonio Guilherme, digo, por palavras do presente, Guilherme de Souza, filho legítimo de João, escravo que foi do finado Francisco de Sousa Fagundes e hoje liberto, e de Luiza Rosa da Conceição, natural e baptisada na Matriz desta Parochia e Carolina Eva da Conceição, filha de Eva, liberta a contrahente, natural e baptisada na Matriz desta Cidade. E apresentarão e reconhecerão por seus filhos, dois meninos de nome João da Crúz e Noberto da Crúz, havidos da união que tiverão. E não sabendo os contrahentes escrever, pedirão que assignasse a seo rogo, o contrahente, ao Senhor Francisco José Eleutério, a contrahente, ao Reverendo Manoel. G. Coelho Gama d’Eça. E logo lhes dei as bênçãos de costume. Do que para constar fis este termo, que assignei com as testemunhas. O Vig. Sebastião Antônio Martins / Francisco José Eleutério / P. Manoel Coelho Gama d’Eça / João de Sousa Fagundes / Virgílio José Paulo.¹⁷

    Já alforriado, podendo até se casar, o pai de Cruz e Sousa (o sobrenome saiu com acento agudo no Cruz) gozava de algum prestígio. Era, ao menos, estimado. Uma de suas testemunhas era ninguém menos que o Barão de Batovi (Manoel Coelho Gama d’Eça), militar com destaque por bravura durante a Guerra do Paraguai, cuja família era tradicionalíssima na Cidade do Desterro¹⁸. Eleutério e Virgílio eram amigos também da família. O primeiro vizinho dos pais de Cruz e Sousa. Seria ele o leitor das cartas que Cruz e Sousa enviava aos pais e também o autor das cartas que estes endereçavam ao filho poeta, quando este se transferira, em 1890, para o Rio de Janeiro¹⁹. Quanto ao João de Sousa Fagundes, este era irmão de Dona Clara Angélica. Já não tinha um dos braços, perdido nos heroísmos épicos das batalhas paraguaias.

    Já o teor da certidão de batismo de Cruz e Sousa, cujos dados para sua biografia são importantes, também faz esclarecimentos sobre os primeiros anos de vida do poeta, além de revelações sobre a vida dos pais:

    João da Cruz — Aos quatro dias do mez de Março do anno de mil oito centos e sessenta e dous nesta Matriz de Nossa Senhora do Desterro baptisei solemnemente e puz os santos oleos ao innocente João da Cruz, nascido a vinte quatro de Novembro do anno passado, filho natural de Carolina Eva da Conceição, crioula liberta, natural desta Freguesia. Foram padrinhos Manoel Moreira da Silva Júnior e Nossa Senhora das Dores. Do que para constar fiz este termo. O vigº. Joaquim Gomes d’Oliveira e Paiva.

    À margem da certidão, descoberta nos livros de batismo dos arquivos da Paróquia de Nossa Senhora do Desterro, em 4 de agosto de 1958, estava escrito o seguinte: Pai: Guilherme Sousa, por subseqüente matrimônio. Uma outra particularidade deste relevante documento é que o padre que batizara Cruz e Sousa era uma das figuras mais notórias e proeminentes da pequena cidade. Considerado um sábio, Oliveira e Paiva fundou jornais, colégios e, além de vereador, foi por diversas vezes deputado, inclusive no período do batizado do Poeta Negro. Em 1865, proclamou um Te Deum para solenizar a visita à Cidade de S.M. o Imperador D. Pedro II. Já Manoel Moreira da Silva Júnior, de uma família que atuava no ramo das embarcações, era filho do também deputado Manoel Moreira da Silva, alcunhado na localidade pelos seus feitos destemidos de Manoel Diabo. Com estes padrinhos ilustres, e sobre a proteção de Nossa Senhora das Dores, João da Cruz e Sousa surgia para a vida, salvaguardado e pronto para desfrutar os benefícios da sorte que lhe soprava sobre a face.


    ¹⁰ Francisco de Sousa Fagundes, segundo consta, era músico, discípulo de José Almeida Moura, primeiro professor de música do Desterro, seria o responsável por aperfeiçoar a arte musical em Santa Catarina. In CABRAL (1979, p. 180).

    ¹¹ PIAZZA (1994, pp. 744-745).

    ¹² Diário Catarinense, 17 de setembro de 1990, p.6.

    ¹³ PÍTSICA (1997, p.185).

    ¹⁴ SOARES (1988, pp.18-19).

    ¹⁵ Os principais mentores que propugnam a idéia da herança: Raimundo Magalhães Jr. Poesia e vida de Cruz e Sousa. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1975; Abelardo F. Montenegro. Cruz e Sousa e o movimento simbolista no Brasil. Fortaleza: UFC, 1998; e Andrade Muricy. Panorama do movimento simbolista brasileiro. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972; entre muitos outros.

    ¹⁶ Ao falecer, em 1875, Dona Clara Angélica Xavier de Sousa ainda tinha nove escravos, libertados por força de testamentos. In MAGALHÃES JR. (Op. Cit., p. 7).

    ¹⁷ Cúria Metropolitana / Arquivo / Arquidiocese de Florianópolis / Paróquia de Nossa Senhora do Desterro, livro 18, folha 26. Fotocópia dessa certidão consta do livro do pesquisador Iaponan Soares (1988, p. 69).

    ¹⁸ Manoel da Gama D’Eça era o Barão de Batovi e seria fuzilado a 25 de abril de 1894, na Fortaleza de Anhatomirim, sob o governo de Floriano Peixoto, que destinara o comando na capital catarinense ao coronel Moreira César.

    ¹⁹ Depositadas no Arquivo-Museu de Literatura da Fundação Casa de Rui Barbosa existem os manuscritos de cinco cartas escritas pela mãe e 18 escritas pelo pai.

    MENINO PRECOCE

    João da Cruz e Sousa nasceu e se criou à imagem e semelhança do pai Guilherme de Sousa. O velho era pacífico, conhecido pelos amigos do Poeta Negro, sobretudo pelo escritor Virgílio Várzea, como o homem de Darwin. Enquanto o irmão mais novo, Norberto da Conceição Sousa, nascido a 6 de junho de 1864, e afilhado de outro figurão da província, que era o médico Henrique Jacques Schutel, saiu-se mais à mãe, Carolina.

    Dr. Schutel, como era conhecido, médico de renome, foi um dos principais colonizadores das terras de Santa Catarina e era pai de Duarte Paranhos Schutel, cuja casa Cruz e Sousa frequentou. Em sua casa ocorriam as mais importantes festividades do Desterro, onde a nata da sociedade desterrense se reunia e se alegrava.

    Affonso Várzea, que também era jornalista, filho do escritor Virgílio Várzea, que fora um dos principais amigos de Cruz e Sousa e seu companheiro de infância e de vida literária na Guerrilha Literária Catarinense, narrada pelo escritor marinhista pelas páginas do jornal Correio da Manhã, de 1907, escreveu importantes artigos sobre Cruz e Sousa e seus descendentes. Alguns desses artigos descem a pormenores sobre a vida do pai e do negrinho do Desterro²⁰. Em um desses artigos, entretanto, revela aspectos da vida familiar dos Cruz e Sousa. Tais informações, naturalmente, devem ter sido trans mitidas ao filho pelo próprio Virgílio Várzea, que conviveu em permanente contato de afeição espiritual com os pais do Poeta Negro, além de ter sido um memorialista nato, que observava tudo com o olhar do historiador, e de quem Affonso Várzea herdou o dom da escrita e o senso de contar de histórias.

    Falando do dramaturgo Francisco Moreira de Vasconcelos, poeta e diretor da Companhia Dramática Julieta dos Santos, em que atuava a menina-prodígio de mesmo nome, da qual Cruz e Sousa passaria a ser secretário e ponto, o filho do marinhista diz textualmente o seguinte, referindo-se ao autor de Broquéis: Aquele que (…) Gastão Bousquet chamou ‘Príncipe Louro de Pele Negra’ andava regularmente trajado, sustentado pelos pais, que moravam no começo da rua Trompowsky, que conduz do Mato Grosso ao bairro da Praia de Fora²¹.

    Ainda de acordo com Affonso Várzea, o pai do Poeta Negro, o mestre-pedreiro Guilherme de Sousa, era baixinho e magricela, tímido e delicado. A mãe, Carolina, gorda, grande e forte, lavava e cozinhava para fora. O filho Norberto, alto e espadaúdo, como a mãe (irmão, portanto, de Cruz e Sousa, que tomara a estrutura paterna), ganhava a vida como tanoeiro, colaborando no sustento do lar modestíssimo.

    Parte deste texto se parece com o famoso artigo de Virgílio Várzea, estampado no jornal Correio da Manhã, do Rio de Janeiro, do ano de 1907, no qual ele, Virgílio, traça o perfil emocional do amigo e poeta, de modo que este conteúdo passará a ser a referência mais usada por estudiosos, pesquisadores e biógrafos de Cruz e Sousa:

    De um talhe espiégle e elegante, muito preocupado com a sua pessoa, Cruz, como os pais — o velho preto Guilherme, mestre pedreiro, e a preta Carolina, de uma atividade incessante e prodigiosa — não precisassem do seu auxílio para viver, gastava tudo o que ganhava nas lições particulares que tinha, em trajes variados, finos e bem feitos, pelo que andava sempre muito asseado e bem vestido, despertando ainda, por esse lado, maiores odiosidades e invejas.²²

    É gloriosa a atitude do velho Guilherme e de Dona Carolina, escravos que foram, serviçais que continuaram a ser a vida inteira para que os filhos não lograssem o destino incerto e cruel que a vida lhes reservara.

    A educação dos filhos passou a ser uma prioridade, praticamente uma obsessão, para os pais escravos e humildes. Eles se preocupavam com o futuro dos filhos. Era a forma de fazerem a passagem de uma geração civilizada na base do chicote, da farinha de mandioca com água do poço, para a luz do conhecimento que só os livros poderiam trazer. Quando houve a possibilidade de verem seus filhos se abrigarem sob o manto dessa bendita luz sagrada, o ensino de Humanidades, os pais do futuro poeta teceram suas armas, como numa batalha renhida, em que se mata ou se morre, e partiram em busca da conquista daquilo que pensavam — muito sabiamente para a época, em se tratando de dois negros bastante ignaros — a verdadeira redenção, a alforria da alma e da razão humana, pelo conhecimento²³ .

    Com base no regulamento do Ateneu Provincial, criado entre 1873 e 1874, nas antigas dependências do Colégio da Conceição, foi que Guilherme de Sousa viu a oportunidade de colocação dos filhos menores. A lenda de que Cruz e Sousa estudou as primeiras letras com a esposa do marechal Guilherme Xavier de Sousa, dona Clara Angélica, continua correndo como verdade absoluta. Infelizmente.

    Por falta de provas documentais mais contundentes, não podemos aduzir outras considerações sobre estes fatos. Resta-nos, no entanto, ficar com a narrativa do biógrafo Raimundo Magalhães Júnior, que em seu livro Poesia e vida de Cruz e Sousa, descreve episódios como o das primeiras incursões do poeta no campo da literatura.

    O negrinho João da Cruz tem agora oito anos. É um diabrete, vivo, esperto, convencido de que é gente. Já tem propensões literárias. Não só aprendeu a ler e a escrever corretamente como ainda é capaz de compor versos. Quando o marechal Guilherme Xavier de Sousa regressa, o negrinho dá-lhe as boas-vindas, lendo-lhe algumas rimas. O militar, boquiaberto, não pode acreditar naquele milagre. Rimar qualquer coisa, naqueles tempos, causava espanto e mesmo um herói nacional, como Osório, gostava de passar por poeta, escrevendo pachorrentamente seus sonetos, bem menos dignos de admiração do que seus outros atos de bravura. Surpreendido, o marechal mal pode acreditar nos progressos do menino. Para dissipar as dúvidas, criva-o de perguntas, destinadas a medir-lhe o grau de inteligência e os conhecimentos adquiridos. A cada resposta de João, a incredulidade vai cedendo lugar à admiração. Por fim, num largo sorriso, o examinador não se contém mais e exclama, num rasgo de verdadeiro entusiasmo:

    — Tens inteligência, crioulo! Tens inteligência…

    Mas, aos seus olhos de homem prático, de soldado curtido ao sol das batalhas, aquilo tem qualquer coisa de absurdo, como se não se ajustasse aos quadros da sociedade brasileira da época. E completa, como se antecipasse, numa visão profética, os dramas futuros do negrinho:

    — Ora, para que havia de dar esse crioulo!

    A constituição desses fatos, contudo, é certa que tem os seus exageros. Mas quais e onde eles estão? O século XIX traz muitos exemplos de negros bem-sucedidos: os irmãos André e Antônio Rebouças, também negros retintos, são um deles. Tiveram sucesso não só no estudo, no Brasil e no exterior, mas na vida profissional, como engenheiros, autores de obras fundamentais, ativistas políticos da abolição, jornalistas e empresários.

    Não achamos de todo impossível, no entanto, voltando repentinamente ao ensino das primeiras letras de Cruz e Sousa, que a uma mulher sem filhos e frequentemente deixada sozinha em função das constantes viagens do marido, militar que combateu na Guerra do Paraguai, não assumisse a si, até para passar o tempo, o ensino de primeiras letras ou básico do menino negro. Mas, não consigo não perguntar: era só o filho de Guilherme e Carolina que gozaria dessa oportunidade?

    No entanto, em suas memórias, ainda inéditas em livro e intituladas No caminho do destino, Araújo Figueredo diz ter encontrado Cruz e Sousa pela primeira vez na vida na escola da professora Camila; ele, acompanhado da mãe, tinha 6 anos, ou seja, o ano era 1869.

    Araújo disse ter encontrado o poeta sentado, em companhia de alguns rapazes e raparigas, numa esteira ao meio da sala. Segundo o poeta de Ascetérios, Cruz e Sousa era um crioulinho muito simpático, de testa espaçosa, olhos vivos e atraentes, lábios grossos e dentes de uma alvura de marfim brunido²⁴.

    É lógico que o poeta das belas praias catarinenses faz uma descrição do Poeta Negro como se o visse, em verdade, em sua fase madura. Entendemos que esta parte da vida de Cruz e Sousa continua sendo um verdadeiro mistério para biógrafos e estudiosos desse fascinante personagem.

    Em um artigo intitulado Meninos da Figueira²⁵, o jornalista Affonso Várzea assim descreve o poeta desse período histórico a que estamos aludindo:

    Joãosinho era da casa para a escola e da escola para casa muito direitinho, sempre bem arrumado em suas roupinhas.

    Diz também o filho mais velho de Virgílio Várzea que no colégio de primeiras letras o menino pretinho mostrava as maneiras comedidas e discretas da rigorosa educação no lar austero do marechal Guilherme Xavier de Sousa, cujo nome de família lhe fora dado usar.

    Já vimos que esta história de nome não foi bem assim. Muito menos a austeridade do lar. Este e outros mitos criados para se criar um Cruz e Sousa superficial, construído sob a ótica branca das possibilidades apenas conquistadas pelos brancos, cada vez mais está se mostrando uma falácia.

    Affonso Várzea diz ainda — maldosamente, talvez — que comparado ao amigo (Virgílio), musculoso e de tórax largo, um quebra, como se dizia dos garotos atrevidos e peraltas, às maneiras do asseado crioulinho eram como de menina. (Esta, com certeza, é outra maldade praticada contra o poeta

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