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Província fluminense: um território a serviço da nação
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Província fluminense: um território a serviço da nação
E-book388 páginas4 horas

Província fluminense: um território a serviço da nação

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Sobre este e-book

As históricas desigualdades do Brasil devem ser sempre discutidas se desejamos uma nação que caminhe para superar mazelas sociais, repensando criticamente processos como independência política sem povo e abolição escrava sem direitos. Lendo a história brasileira a partir da Geografia, este texto doutoral (publicado agora como livro) discute a gênese da estruturação do território nacional relacionando rede urbana e oligarquias rurais por dois motivos principais: tais relações, aparentemente desconectadas, se mostraram reais na pesquisa às fontes primárias que originou esta tese e tal olhar busca reduzir uma lacuna percebida neste sentido nos estudos sobre a formação socioespacial brasileira.
Assim, no quadro imperial e seu ideário excludente de nação, analisamos dinâmicas territoriais na província do Rio de Janeiro mostrando que a unidade nacional pretendida extrapolava a ordem econômica rural e se estruturou a partir de núcleos urbanos, que, em redes, regulavam e controlavam produção e comércio, regiões e populações. A província fluminense e sua sociedade nobiliárquica e estratificada expõe as "ideologias geográficas" norteadoras do projeto imperial de nação que viu o Brasil menos como sociedade (negando direitos e cidadania à maioria de sua população) e mais como território (tomado como propriedade privada e fonte de poder para poucos). É a captura desse descompasso que move o presente livro.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento10 de jan. de 2022
ISBN9786525216829
Província fluminense: um território a serviço da nação

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    Província fluminense - Valter Macedo

    1. A PESQUISA E SEUS CAMINHOS

    Analisar o processo histórico de formação do território fluminense durante o século XIX, quando se realizou no Brasil a efetivação de um projeto nacional significa observar como determinadas frações desse território passaram a se configurar como espaços delimitados e diferenciados no contexto político, econômico e social da província durante o período imperial. Tal temática torna-se oportuna quando observamos que há um hiato na literatura sobre o Estado do Rio de Janeiro naquilo que se refere à sua conformação territorial, não nos oferecendo uma informação precisa sobre sua constituição.

    Tentando contribuir para o preenchimento desta lacuna, o campo problemático de nossa pesquisa pode ser enunciado como a relação entre o projeto de constituição de Nação no Brasil pós-Independência e o processo de organização urbana e territorial fluminense. Trabalharemos especificamente com a ideia de que o projeto nacional pretendido para o Brasil independente pode ser visto como aquele que, na base territorial, considera o urbano como mecanismo de articulação das esferas regionais e, na vertente simbólica, pensa este urbano como instrumento civilizatório. Através deste foco, observamos que se o processo de articulação do território fluminense se deu através de uma economia agrícola e da consolidação de uma aristocracia composta por senhores rurais que giravam em torno do poder central, tal processo só poderia acontecer pela constituição de uma rede de cidades, visto que é através dela que produção, circulação, consumo e dominação política efetivamente acontecem.

    Assim, partimos da premissa de que existiu uma relação direta entre cidade, região e a política territorial imperial e, para dar conta de uma análise por este viés, temos a consciência de que o nosso esforço deverá conjugar uma dimensão temporal ao estudo de uma dada forma de organização do espaço. Seguindo os ensinamentos de Santos (1985), quando nos alerta da geografização dos espaços produzidos como resultado de um conjunto de variáveis que interagem entre si e que mudam no transcurso da história dos lugares, pensamos priorizar os sistemas que se sucedem em detrimento dos fatos isolados.

    No contexto da expansão econômica europeia no período considerado, indicamos as seguintes questões em nosso trabalho: 1) A partir da política colonial portuguesa de gestão do espaço, pensamos nos termos do processo de organização territorial fluminense que passam a vigorar no período pós-Independência do Brasil, quando dos ideais nacionalistas; 2) Entendido que, do jogo político em torno do Estado Imperial, consolidaram-se determinadas forças que definiram os moldes da construção de valores e de espaços unificados, assinalamos a emergência de um projeto centralizador/civilizador de base territorial urbana e regional; 3) Por tal premissa, importante será entender as características de tal política centralizadora no espaço que envolve a então capital do Brasil e sua hinterlândia mais imediata, correspondente ao atual Estado do Rio de Janeiro; 4) Ademais, há de se considerar as formas de ação dos atores envolvidos (Estado, nobreza cafeeira e do açúcar e demais proprietários de escravos e de terras) para a manutenção do prestígio e da legitimidade; e 5) Reflexo dos interesses em pauta, pensamos na importância conferida às vias de comunicação e de circulação para a unidade a ser dada ao território fluminense, reportando-nos aqui à operacionalidade de uma rede urbana que permitiria a dinamização de distintas regiões comandadas pela sede do poder imperial e que, diminuindo a autonomia municipal, possibilitou arranjos políticos em torno de interesses regionais.

    Tais questionamentos revelam os objetivos da tese. Em primeiro lugar, relembramos que nosso trabalho está atento ao fato de que o tema rede urbana e oligarquias rurais parece ser de extrema relevância para se compreender a organização sócio-espacial brasileira (CORRÊA, 1998, p. 114), apresentando um estudo sobre o território fluminense que se insere nos debates atuais sobre as determinações históricas da urbanização brasileira. Em última análise, visamos somar esforços no sentido de apresentar um olhar sobre o processo de ocupação territorial na província do Rio de Janeiro que articula as dimensões do local e do regional em um contexto de afirmação nacional. Nosso trabalho, ao tentar cumprir seus objetivos e abordar as questões listadas, terá que buscar na interdisciplinaridade o tratamento de seus marcos teóricos. Se já enfatizamos que será priorizado o olhar da geografia retrospectiva nos moldes apresentados por autores como Azevedo (1956, 1957a), Abreu (1996) e Moraes (2002), também é verdade que não poderemos nos distanciar de campos disciplinares como o das Ciências Políticas (no que se relaciona com as discussões sobre nação, Estado e poder), do Urbanismo em sua interface com a História (urbanização pretérita, Império no Brasil) e com a própria Geografia (território, rede geográfica, rede urbana, região).

    Ao indicarmos tais campos, fica assinalado que nosso estudo sugere a hipótese de que podemos pensar em um projeto nacional de unidade territorial a partir de um urbano simbólico e material que considera a dimensão política da região em que se insere. Dialogamos inicialmente com os escritos do historiador francês Fernand Braudel e sua defesa em nome de uma ampla escala para se compreender a História e, de forma específica, com os textos do geógrafo brasileiro Antonio Carlos Robert Moraes quando discute a questão da representação e da consciência do espaço.

    1.1. O Viés Geográfico-Histórico

    Na linhagem da revolução metodológica no campo dos estudos históricos a partir da revista Annales d’histoire Économique et Sociale, publicada na França em 1929 por Lucien Febvre e Marc Bloch, os trabalhos de Braudel o alçaram ao posto de principal continuador e herdeiro de uma nova maneira de se conceber e escrever a História. Aberto sem concessões à interdisciplinaridade em uma proposta em que a Geografia e a Economia se revestiam de um interesse especial, Braudel ampliou a dimensão do historiador ao observar o caminhar das sociedades humanas através de seus variados ritmos, superando o método tradicional de olhar para o passado através da escala humana, da ação dos grandes homens. Sem se desfazer do interesse por esses relatos, ele concebe níveis distintos para os tempos da História, centrando atenção nos processos mais extensos do que o da vida dos indivíduos. Em última análise, ele buscava a relação entre os fatos e as estruturas que modelam as sociedades, sejam elas materiais ou relativas às mentalidades. Com esta nova postura metodológica, a História mudou de objeto uma vez que mudou de temporalidade. Nas palavras do próprio autor:

    A recente ruptura com as formas tradicionais da história do século XIX não foi uma ruptura total com o tempo curto. Sabe-se que ela redundou em benefício da história econômica e social, em detrimento da história política. Daí, uma reviravolta e uma inegável renovação; daí, inevitavelmente, modificações de método, deslocamentos de centros de interesses com a aparição de uma história quantitativa que, certamente, não disse sua última palavra (BRAUDEL, 1992, p. 47).

    Neste processo de mudanças, a influência desempenhada por outras ciências no grupo dos Annales muito se deveu ao importante texto, organizado em 1903, do geógrafo Vidal de la Blache sobre a história francesa. Neste trabalho, que no contexto daquele país visava fundar um patriotismo legitimador da República, o autor partia do território para construir a ideia de um grupo social que, limitado e condicionado por circunstâncias objetivas do meio geográfico, havia constituído uma pátria e um Estado. Não que Vidal de la Blache visse no meio impedimentos para os impulsos sociais, mas lembrava dele como uma resistência a ser percebida e impossível de ser dissociada da História. Assim, o tempo dos homens encontrava o atrito do espaço, mas não o espaço através do determinismo físico defendido pela Geografia que se fazia na Alemanha e que se afirmava como referência em tempos de institucionalização desta ciência.¹ Ao romper com esta corrente, acabou tomado como influência no processo através do qual os historiadores descobriam no espaço o elemento responsável por uma maior densidade do tempo histórico.

    Em particular, para Braudel, a Geografia passou a configurar um instrumental de trabalho que o possibilitaria encontrar as realidades mais lentas e importantes no trato explicativo sobre as características observadas nos seus objetos de estudo. Importante frisar que este instrumental passava agora a ser manuseado de forma completamente distinta da tradição, uma vez que não mais se oferecia apenas para descrição introdutória do meio físico a ser considerado. Nas obras assim organizadas, estas introduções geográficas à História viam o espaço apenas como palco para os acontecimentos das sociedades. Através de Braudel, o espaço passou a ser considerado também no âmbito da análise histórica como elemento condicionante e reflexo da ação humana.

    Este caminho possibilitou a mais importante mudança metodológica sentida na História durante o século XX e aproximou de vez os textos dos Annales dos geógrafos proeminentes, notadamente franceses e alemães. Destes últimos, por exemplo, Braudel tomou a tríplice divisão habitual da Geografia em espaço, economia e sociedade como base analítica para o seu principal trabalho (O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Philippe II) e suas postulações quanto à episteme da História.

    Para ele, esta tríplice divisão se confirma quando enfatiza que a História para ser vista em ampla escala deve ser decomposta em três planos escalonados que se referem aos distintos tempos em que transcorrem os acontecimentos estudados: um tempo geográfico, um tempo social e um tempo individual. O primeiro se refere à história quase imóvel, a do homem em suas relações com o meio que o cerca; uma história lenta no seu transcorrer e a transformar-se, feita com freqüência de retornos insistentes, de ciclos incessantemente recomeçados, o segundo tempo à história lentamente ritmada, (...) dos grupos [sociais] e dos agrupamentos e o terceiro tempo que se refere à história tradicional, da dimensão do indivíduo, a história ocorrencial, dos eventos, uma história com oscilações breves, rápidas, nervosas (BRAUDEL, 1992, p. 13-14).

    Ao discorrer sobre este último, ele o considerou como agitação de superfície e alertou:

    Desconfiemos dessa história ainda ardente, tal como os contemporâneos a sentiram, descreveram, viveram, no ritmo de sua vida, breve como a nossa. Ela tem a dimensão de suas cóleras, de seus sonhos e de suas ilusões. (...) Os acontecimentos retumbantes não são amiúde mais que instantes, que manifestações dos largos destinos e só se explicam por eles (BRAUDEL, 1992, pp. 14-15).

    Ao falar ainda sobre a apropriação da História pelas demais ciências sociais, enfatizou que a tendência era a de desconhecer um aspecto da realidade importante para a primeira: a duração social, os tempos múltiplos e contraditórios da vida dos homens, que não são apenas a substância do passado, mas também o estofo da vida social atual (BRAUDEL, 1992, p. 43). E, neste sentido, para ele, que deu ênfase ao fato de que nada é mais importante, no centro da realidade social do que a oposição viva, íntima, repetida indefinidamente entre o instante e o tempo lento a escoar-se, a conclusão a ser concebida ressaltava que os estudos importantes realizados por historiadores vinham contribuindo para a afirmação da multiplicidade do tempo e da centralidade do tempo longo para as análises mais profícuas. Neste sentido, é emblemática a seguinte citação:

    Todo trabalho histórico decompõe o tempo decorrido, escolhe entre suas realidades cronológicas, segundo preferências e opções exclusivas mais ou menos conscientes. A história tradicional, atenta ao tempo breve, ao indivíduo, ao evento, habituou-nos há muito tempo à sua narrativa precipitada, dramática, de fôlego curto (BRAUDEL, 1992, p. 44).

    E defendendo a grande medida como mecanismo de superação a este entrave, enfatizou que a nova história econômica e social articula ao relato ou recitativo tradicional um interesse pela conjuntura que põe em questão o passado por largas fatias: dez, vinte ou cinqüenta anos, chamando a atenção para sua premissa de que bem além desse segundo recitativo, situa-se uma história de respiração mais contida ainda, e desta vez, de amplitude secular: a história de longa, e mesmo, de longuíssima duração (BRAUDEL, 1992, p. 44).

    Nestes termos, o autor passava a considerar como essencial o entendimento das estruturas na compreensão voltada para o passado mais distante e que persistia. Convém, no entanto, salientar que, aqui, ele tratou de diferenciar sua ideia do próprio estruturalismo afirmando que:

    Por estrutura, os observadores do social entendem uma organização, uma coerência, relações bastante fixas entre realidade e massas sociais. Para nós, historiadores, uma estrutura é sem dúvida, articulação, arquitetura, porém mais ainda, uma realidade que o tempo utiliza mal e veicula mui longamente. Certas estruturas, por viverem muito tempo, tornam-se elementos estáveis de uma infinidade de gerações; atravancam a história, incomodam-na, portanto, comandando-lhe o escoamento. Outras estão mais prontas a se esfarelar. Mas todas são ao mesmo tempo, sustentáculos e obstáculos. Obstáculos, assinalam-se como limites (envolventes, no sentido matemático) dos quais o homem e suas experiências não podem libertar-se. Pensai na dificuldade de quebrar certos quadros geográficos, certas realidades biológicas, certos limites da produtividade, até mesmo, estas ou aquelas coerções espirituais: os quadros mentais também são prisões de longa duração (BRAUDEL, 1992, pp. 49-50).

    Ao pensar desta forma, Braudel avançou em relação aos pioneiros da Annales olhando para a História como um conjunto de rupturas e continuidades. Para ele, ela traz não apenas o que muda (como pensava Marc Bloch), mas também permanências. Assim, pode compreendê-la como globalidade, marcada pela dialética permanente entre mudança e não-mudança e associá-la a uma constante interdisciplinaridade para o seu entendimento. E, neste sentido, dois outros conceitos que ele associa à sua ideia de tempo longo e que são fundamentais em nosso trabalho são os de civilização e o de economia-mundo.

    O primeiro deles, cuja definição remonta do século XVIII, é, para o autor, a própria tradução da larga medida por traduzir pares como estrutura-conjuntura e instante-duração através de sua ideia de oposição à barbárie. O segundo conceito, proveniente do pensamento alemão, interage com a questão da vida material em sua relação com a história econômica e diz respeito às distintas regiões do planeta integradas pela atividade econômica.

    Nestes termos, se constrói a globalidade defendida em sua nova História. Para o caso de crítica ou incompreensão, Braudel esclarece recorrendo ao quadro da Europa entre os séculos XIV e XVIII e olhando, especificamente, para os seus numerosos surtos de progresso e repetidos abalos de crises agrícolas estacionais:

    A dificuldade, por um paradoxo apenas aparente, é discernir a longa duração no domínio onde a pesquisa histórica acaba de obter seus inegáveis sucessos: o domínio econômico. Ciclos, interciclos, crises estruturais ocultam aqui as regularidades, as permanências de sistema, alguns disseram de civilizações (...) evoquei após alguns outros, os traços principais do capitalismo comercial para a Europa Ocidental, etapa de longa duração. Não obstante todas as modificações evidentes que os percorrem, esses quatro ou cinco séculos de vida econômica tiveram uma certa coerência, até a agitação do século XVIII e da revolução industrial da qual ainda não saímos. Alguns traços lhes são comuns e permanecem imutáveis, enquanto em torno deles, entre outras continuidades, mil rupturas e agitações renovavam o aspecto do mundo (BRAUDEL, 1992, pp. 51-52).

    Em síntese, a História decorrente dos escritos de Braudel é aquela que se impõe por constantes variações e continuidades e na qual importantes eventos nestes ciclos nem sempre são percebidos se a medida para a análise for a curta e tênue escala temporal humana. Para o autor, os três tempos indicados devem ser considerados pelo pesquisador para que ele fuja do inadmissível erro historizante que consiste em trabalhar com uma dessas escalas em detrimento das demais.

    Marcada a influência em nosso trabalho de uma análise histórica que perceba também a longa duração, o outro ponto a ser destacado se refere à visão da Geografia como materialidade e representação. E, neste contexto, foi importante no olhar sobre o nosso objeto a relação que Robert Moraes aponta entre a História do Brasil e a questão do território (MORAES, 1988, 1991 e 2002). Com apoio decisivo nestes textos, caminhamos na busca por um entendimento das determinações geográficas de um momento específico do Brasil. Ao tentar a compreensão das bases territoriais do discurso e das políticas imperiais, enfatizamos a dimensão espacial como norteadora de pressupostos básicos do nosso processo histórico.

    Nesses textos, ao discutir de modo sistemático o tema da representação e da consciência do espaço, o autor distinguiu três níveis de sua abordagem: o do horizonte geográfico, o do pensamento geográfico e o das ideologias geográficas. A primeira destas abordagens faz referência ao conhecimento do senso geral sobre o meio físico da superfície terrestre e está circunscrita ao conjunto de informações geográficas do indivíduo comum. No estágio mais elaborado de construção mental, o pensamento geográfico diz respeito àquela abordagem constituída pelo discurso do saber culto e pelas representações sistemáticas e normatizadas da consciência do espaço do planeta. Por sua vez, o autor considera como ideologias geográficas o conjunto de representações sobre o espaço com um caráter político explícito, conferindo ao território uma importância fundamental no debate sobre as relações entre política e cultura e desvendando os diferentes usos ideológicos da Geografia em momentos importantes da História.

    Não é sem propósito que o autor, atentando para o contexto de afirmação das nações europeias, afirma que:

    Na verdade, as teorias modernas dessa disciplina foram, em muito, veículos de legitimação das nacionalidades e dos respectivos projetos nacionais. O discurso geográfico foi, sem dúvida, um elemento central na consolidação do sentimento de pátria. Pode-se mesmo dizer que esse seria o principal núcleo divulgador da ideia da identidade pelo espaço (MORAES, 1991, p. 166).

    A valorização dos atributos espaciais como base para as formulações ideológicas de medidas de cunho político caracteriza o uso do território como suporte e produto destas ações e, de uma forma geral, este processo resulta na valorização de determinadas partes do território em detrimento das demais. Além do mais, por esta análise, podemos perceber que o pensamento geográfico pode constituir-se em veículo para as ideologias geográficas, mesmo que estas sejam antagônicas entre si. Interessa-nos, em particular, perceber como e quais temas desta ciência estiveram presentes nos diversos tipos de representações discursivas que emanam da vida política brasileira em determinados momentos de sua trajetória.

    Entender tal questão requer pensar inicialmente que, de acordo com Moraes, todo grupo ou indivíduo social carrega consigo uma forma particular de representação do espaço e é decorrente dela que cada um projeta suas intervenções materiais no meio concreto. Toda representação do espaço, portanto, acaba por denotar uma ação política, pois se insere na produção material das sociedades e na disputa por formas hegemônicas de ação entre os mesmos grupos ou indivíduos sociais.

    Se adotarmos uma concepção gramsciana de hegemonia na qual ela é entendida como uma situação de domínio de uma dada classe ou indivíduo através do controle tanto das condições intelectuais quanto materiais de produção, universalizando seus interesses, perceberemos a centralidade do conceito de ideologias geográficas para a reflexão sobre a produção material dos territórios, tomados também como locus dos sistemas de representação dominante. Pensamos ser esta ótica eficaz para avaliar as questões do nosso trabalho, sobretudo por ser o período imperial rico na construção de símbolos e sistemas de representação para afirmação dos propósitos da nação que estava sendo implantada.

    A partir desta noção de ideologia geográfica, outros textos fundamentais para a análise e compreensão da carga simbólica dos espaços se somaram em nosso estudo, como os escritos de Milton Santos e de Pierre Bourdieu. Seguindo a linha que discute tal questão a partir das ideologias dominantes, Santos (1999) nos lembra que a totalidade social é composta por aspectos de realidade e de ideologia e que esta última é importante ao produzir símbolos que assumem forma de objetos concretos ou de discursos criadores do real. Lembramos ainda das representações objectais, teorizadas por Bourdieu (1989), que se materializam em coisas ou atos a partir de manipulações simbólicas das representações mentais que expressam interesses e pressupostos dos agentes sociais. Corroborando tais ideias, é importante reafirmar que, na base das construções concretas está uma ideologia hegemônica e que a realidade é densa de metáforas e se impõe através da produção recorrente de imagens e do imaginário que, naturalizando um pensamento dominante, o faz passar por único (SANTOS, 2000).

    Ao considerar tais questões a partir ainda desse olhar, pensamos que a análise dos fatos deve perceber que o próprio movimento da sociedade que se estuda transforma a significação de suas variáveis constitutivas e por isso mesmo, a cada nova divisão do trabalho, a cada nova transformação social, há, paralelamente, para os fabricantes de significados, uma exigência de renovação das ideologias e dos universos simbólicos, ao mesmo tempo em que, aos outros, tornam-se possíveis o entendimento do processo e a busca de um sentido (SANTOS, 1999, p. 103).

    No nosso estudo em particular, tais indicações impõem considerar que refletir sobre a organização espacial em um território (sobretudo no que se refere à conformação de sua rede urbana) significa considerar o discurso dominante e sua gama de representações. Perguntamo-nos sobre as lógicas que norteiam a conformação das morfologias espaciais, em especial aquelas concentradoras, observando, por exemplo, o padrão de urbanização estabelecido, as relações da economia imperial com a Europa e o modelo de desenvolvimento das economias regionais. Ao eleger o modo como se redesenhou a rede de cidades fluminenses, intentamos considerar a organização do sistema urbano não como resultante, mas como parte constitutiva nos processos de mudança na província e no império. A dinâmica e as alternativas de localização da atividade econômica, bem como os movimentos da população, constituem-se em aspectos indutores importantes e conformaram um território em constante transformação. O movimento da economia associado às políticas de urbanização acabou por imprimir formas fazendo-se valer de um conjunto de representações como as de sociedade moderna e nação.

    Por último, vale lembrar que, ao centrar nossa atenção na temática da rede urbana, temos a consciência de que operamos com escalas ou, de forma mais enfática, trabalhamos com o problema da escala tal como enunciado por Castro (1995), que ressaltou ser esta uma estratégia de compreensão do real via representação. Assim, nos é imposta a obrigação de laborar continuamente com a mudança de escalas tanto cartográficas quanto as conceituais (ora a da rede urbana, do espaço urbano e ora a da província). E com este rol de preceitos, é oportuno resgatar Roberto Lobato Corrêa e o seu alerta de que o importante, para o pesquisador, é não perder de vista as relações entre os modos como o urbano pode ser geograficamente analisado, não esquecendo de que a operação escalar não introduz uma visão deformada, geradora de dicotomia, mas, ao contrário, ressalta as ricas possibilidades de se analisar o mundo real, o urbano no caso, em dois níveis conceituais complementares (CORRÊA, 2003, p. 136). O objetivo é o de chamar a atenção para os processos sociais que, ocorrendo no âmbito da rede urbana, conformam o espaço urbano ou vice-versa, entendendo que tais conexões entre escalas impõem uma análise que as utilize como método para dar unidade ao estudo do espaço tomado como objeto de pesquisa.

    Podemos ainda resgatar a primeira citação desta unidade para reafirmar os cuidados tomados para um trabalho consciente das variáveis que interagem entre si e que podem mudar no transcurso da história dos lugares. Para cada aspecto desta atenção, um grupo de indicações teóricas foi buscado para a nossa tentativa de integração das diferentes escalas (inclusive de temporalidade) de análise. Afinal:

    (...) não se pode fazer uma interpretação válida dos sistemas locais na escala local. Eventos à escala mundial, sejam os de hoje ou os de ontem, contribuem mais para o entendimento dos subespaços que os fenômenos locais. Estes últimos não são mais que o resultado, direto ou indireto, de forças cuja gestação ocorre à distância. Isto não impede que estes subespaços sejam dotados de alguma autonomia em razão do peso da inércia gerada pelas forças produzidas ou amalgamadas localmente (SANTOS, 1985, p. 22).

    Os autores trazidos até o momento se somam nesta citação e nos mostram que não existe uma escala ideal para a análise da realidade, uma vez que esta é complexa e demanda soluções práticas para o entendimento do objeto. No mais, sabemos que a cada enfoque sua variação ocorrerá pela importância e abrangência das ações de cada grupo de atores sociais envolvidos. Por esta imposição envolver juízo de valores, algumas posturas do texto merecem indicação depois de termos ressaltado até aqui os pressupostos que orientam o nosso trabalho de tese, justificando a opção pelo método geográfico-histórico e destacando a importância do discurso e das escalas para o processo explicativo a respeito da formação territorial fluminense.

    1.2. Posturas Diante Do Objeto

    Já havíamos dito que a área do atual Estado do Rio de Janeiro viu o seu número de núcleos urbanos mais que triplicar entre o final do período colonial e a década de 1890. Para sermos mais precisos, nela existiam 15 aglomerados urbanos (entre cidades e vilas) antes de 1822 e, no pós-1889, já havia um total de 48 sedes de

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