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O Legado da Eterna
O Legado da Eterna
O Legado da Eterna
E-book331 páginas4 horas

O Legado da Eterna

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Sobre este e-book

Após décadas de conflito, humanos e bruxas forjaram uma frágil paz entre as raças. Entretanto o ressentimento e as lembranças do conflito não desapareceram. Nesse tempo de tensão, surgem rumores que Yoshabel, líder da Walpurgis, um grupo radical de bruxas, ressurgiu dos mortos para retomar sua campanha.Um grupo de caçadores de bruxas, responsável por conter as criminosas da raça, investiga esses rumores e procura conter a ameaça do grupo. Enquanto isso, uma pequena vila é devastada pela Walpurgis, deixando Rebeca, a primeira bruxa adotada por um humano, órfã.Rebeca sai em busca de justiça e vingança por sua vila, enquanto os caçadores se preparam para um conflito, porém com um objetivo em comum: derrotar a Walpurgis e desvendar o segredo de Yoshabel.
IdiomaPortuguês
EditoraEstronho
Data de lançamento16 de mar. de 2022
ISBN9786587071183
O Legado da Eterna

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    O Legado da Eterna - Gabriel Marques e Souza

    AGRADECIMENTOS

    A Deus, o maior dos autores.

    À minha família, por todo o apoio e encorajamento, em especial a minha esposa Marcela, minha maior crítica e fã número 1 (título que ela deu a si mesma).

    Aos amigos do Faço Amanhã, sempre meus primeiros leitores e também os revisores mais cruéis; em especial à Lara Valeria, cuja revisão sem misericórdia sempre elevou a minha escrita.

    À toda a equipe do hospital Mater Dei, instrumentos de Deus para sustentar a vida do meu filho durante a produção desse livro.

    À cada um dos leitores que vão se aventurar comigo nesse mundo.

    PRÓLOGO

    S

    eria como tentar enfrentar Deus…

    Davi caminhava pela rua empoeirada de sua vila, ainda se lembrando do que dissera na carta que enviara. Naquele momento, ele aguardava na entrada da vila, junto a outros dez homens. Era tarde e fazia um calor insuportável; o horizonte ondulava à frente, e o chapéu de palha parecia ferver na sua cabeça, chacoalhava em suas mãos trêmulas, escorregadias, molhadas de um suor que nada tinha a ver com o calor. Ele havia dito aos homens que a Eterna, provavelmente, os deixaria em paz quando não encontrasse sua família na vila. Mas não tinha tanta certeza; algo dentro de si lhe dizia que esse era o fim.

    Se sua filha soubesse o que estava prestes a acontecer, nada a impediria de ir enfrentar a Eterna. Mas ir contra aquela bruxa era suicídio. Por essa razão, ele não podia deixar que ela voltasse, e pediu ao professor dela que a impedisse, qualquer que fosse o custo. Pelo menos, até que tudo estivesse resolvido.

    A esposa de Davi havia recebido uma carta há poucas semanas, vinda da parte da Eterna, com uma mensagem simples: Volte para o grupo, ou sofra as consequências. Ela não podia voltar — não agora que possuía uma família, agora que estava casada com um humano. Não adiantava fugir da vila também, a bruxa queimaria tudo se não os encontrasse lá. Dessa forma, só restava uma saída: enfrentá-la!

    Alguns minutos depois, uma carruagem se aproximou, levantava nuvens de poeira atrás de si. O veículo parou a alguns metros à frente do grupo e de lá saíram três bruxas: a primeira era ruiva, a pele branca, com sardas no rosto e no pescoço e olhos verdes. Era pequena e magra, não aparentava nem vinte anos de idade. As outras tinham a pele morena, cabelos negros e cacheados. Apenas uma usava os cabelos amarrados; apesar de algumas diferenças, pareciam ser irmãs. As três usavam o chapéu cônico tradicional das bruxas: a da frente usava um de cor preta, adornado com um laço verde que combinava com o seu vestido; as outras usavam chapéus de um amarelo bem claro, quase branco, e não havia nenhum adorno.

    — Será que aquela é a Eterna? — perguntou Augusto, o açougueiro da cidade, um homem gordo, careca, de pele branca e olhos castanhos. Não intimidava a ninguém, mas foi o primeiro a se oferecer para ajudar quando soube da ameaça.

    — Parem com essa história de Eterna, vocês sabem que isso é só um mito! — interrompeu Claudio, o marceneiro. O tom que usava era de deboche, entretanto o rosto traía sua preocupação.

    — Mito ou não, ela parece estar liderando o grupo… — o delegado Ferreira falou com seriedade. Ele era jovem e o mais forte do grupo.

    — Ela parece ser mais nova do que minha filha. Mas nunca se sabe com as bruxas… — Davi a encarava, perturbado.

    As três caminharam em direção aos homens; pararam a poucos metros deles e a ruiva iniciou a conversa.

    — Pelo visto, estavam esperando por mim — não parecia perturbada pela presença dos homens. — Então sabem o motivo da minha visita.

    — A senhora é a Eterna? — Augusto perguntou, a voz levemente vacilante.

    A bruxa sorriu com satisfação.

    — A única. E eu não preciso explicar por que estou aqui. Onde está a traidora? E a menina que ela adotou?

    Augusto e Claudio direcionaram olhares inquisitivos a Davi. Era claro que eles não sabiam o que ela queria dizer com a traidora, porém logo se voltaram para a bruxa, não era hora de discutir entre si.

    — Elas não estão mais na vila — respondeu Ferreira, a voz firme escondendo um turbilhão de medo. — E mesmo que estivessem, não iriam com vocês. O lugar delas é com a família.

    Antes que qualquer pessoa pudesse reagir, a bruxa fez um único gesto com os dedos, ao mesmo tempo em que uma pedra se ergueu do solo como uma estaca e empalou o delegado. Os homens gritaram em um misto de medo e surpresa; alguns saíram correndo e foram consumidos por chamas disparadas por ela.

    — Alguém mais pretende me desrespeitar? — ela perguntou, ainda em tom calmo. — Onde estão as bruxas?

    — Elas não estão na vila — Davi repetiu, engolindo seco. — Foram mandadas para fora, assim que soubemos que você estava a caminho.

    A bruxa cruzou os braços e assumiu uma postura relaxada.

    — Certo, então eu vou esperar aqui. Se vocês as trouxerem para mim, eu não destruo a vila de vocês. O que acham? — ela não parecia com pressa.

    Como a conversa não fosse a lugar nenhum, Davi deu a ordem.

    — AGOORAAAAA! — gritou ele.

    Das janelas ao redor apareceram homens com espingardas e rifles, começaram a disparar. Uma das bruxas caiu imediatamente, atingida em cheio no coração. Davi fugiu o mais rápido que pôde; ele precisava avisar aos padres para que ajudassem a evacuar mulheres e crianças. Contudo, ao dar dois passos, escutou um estrondo e, quando olhou para trás, ficou desorientado. De repente, a paisagem da vila que lhe era tão familiar havia se transformado em um inferno: a região ao redor da Eterna estava tomada por chamas, objetos voavam em todas as direções e esmagavam, empalavam e mutilavam homens que tentavam acertar ao menos um tiro. Animais também atacavam, parecia uma alucinação.

    Davi logo entendeu, em completo horror, que a bruxa não seria atrasada pelo ataque dos moradores; por isso correu na direção de sua casa, tinha de salvar pelo menos a esposa. Mas estava velho demais e o inferno o seguia de perto, ele podia sentir o calor em suas costas. Entrou na casa, arfando, desesperado. A visão escurecia. Ele mal sabia por onde passava: saltava móveis, derrubava qualquer coisa em seu caminho

    — Maria! Pelo amor de Deus! Foge, por favor! Foge, pelo amor de Deus! Ela vai matar a todos…

    Davi chegou ao quintal do outro lado, estava perto… Ele avistou Maria por uma fração de segundos antes que ela fosse atravessada na barriga por uma lasca de madeira.

    Ele se virou e viu a criatura que o perseguia. Tentou partir para cima da bruxa, mas foi arremessado contra a parede por uma força invisível. Sua esposa estava encolhida no chão, ainda viva. Ele queria fazer algo, mas não conseguia se mover, todo o seu desejo de proteger a família era inútil diante da força que o mantinha preso.

    — Você sabe por que eu estou aqui, não sabe? — a calma da Eterna parecia querer dar lugar a fúria, mas ela se mantinha composta.

    — Eu vi você morrer! — Maria disse, se arrastando para longe.

    — E agora você me vê ressurreta — a Eterna disse isso como se fosse muito natural. — Por que você não voltou para junto de mim, Maria? O que você dirá às Ancestrais?

    Os olhos de Maria se arregalaram em pânico, e tudo o que conseguiu responder foi:

    — Eu não sou sua inimiga! Eu só quero viver em paz!

    — Casada com um humano! Deixando sua filha chamar um deles de pai! PAI!

    Maria tentou responder, mas a bruxa não estava mais interessada. A Eterna deu as costas e atravessou o coração da mulher com outra lasca de madeira que fez levitar. Davi se debateu contra a parede, gritando, ainda pressionado pela força implacável. A bruxa sequer se virou, a força cedeu e uma estaca o atravessou.

    Capítulo 1 - CAÇADORES DE BRUXAS

    A

    s palavras que Rebeca leu na carta ainda estavam em sua mente. Ela caminhava pelos destroços da vila onde cresceu, desviando dos corpos deixados no chão. As pernas mal conseguiam sustentar o corpo.

    — Não foi como enfrentar Deus — ela disse, sabendo que ninguém a ouviria. — Aquela bruxa é a cria do diabo…

    Ela estudava em outra cidade há mais de um ano, aprendia a confeccionar bonecos com um marceneiro, quando recebeu uma carta de seu pai endereçada ao professor. As saudades falaram mais alto do que o bom senso e ela a abriu, ansiosa por notícias da família. O conteúdo, ao invés de acalmar seu coração, a deixou desesperada: o pai insistia que o mestre a mantivesse longe da vila, dizia algo sobre um ataque da Eterna, mas não informava a razão. Era uma carta escrita às pressas, confusa, transparecendo em todas as partes o desejo do pai de mantê-la longe dali. E, no entanto, lá estava ela, tarde demais.

    Duas bonecas de madeira caminhavam ao seu lado, possuídas pelo seu poder, enquanto ela procurava sem esperança por sinais de sobreviventes. Rebeca também era uma bruxa, a primeira a ser adotada por um humano. As notícias desse fato haviam corrido devagar pelo país, desagradando a humanos e bruxas na mesma medida, mas nunca o suficiente para que criassem transtornos aos seus pais ou vizinhos, infelizmente a primeira vez foi também a última.

    Seguia por uma das duas únicas ruas da pequena vila no meio do nada. A maioria das casas de madeira havia sido incendiada, mas Rebeca ainda reconhecia cada uma delas: o bar onde o pai costumava ir às sextas, o único consultório médico, a escola onde estudara. Não foi fácil para ela viver entre os humanos, mas ela gostava dali. Gostava da maior parte das pessoas cujos cadáveres agora estavam espalhados pelo chão.

    Aquele lugar já foi cheio de vida e som: pessoas conversando na varanda, os pescadores gritando uns com os outros enquanto puxavam as redes. O pai era o mais barulhento dentre eles. E agora havia apenas o som dos passos dela e de suas bonecas.

    Finalmente chegou à sua casa, ou o que restou dela. Acreditava que sua mãe se esconderia no porão, então pretendia ir direto para os fundos, mas parou na sala ao encontrar os pais caídos no chão.

    Ver os corpos deles foi o suficiente para esgotar as poucas forças que haviam restado para conter suas emoções. Rebeca caiu de joelhos e se inclinou em cima do pai, enquanto chorava. Os cabelos negros da bruxa caiam em uma cascata desordenada ao redor do rosto, grudavam na pele por conta do suor e das lágrimas.

    Percebeu que o pai foi atravessado por uma estaca na barriga — compreendeu que ele teve uma morte lenta e dolorosa — e estava coberto de sangue seco. Essa visão foi o suficiente para fazê-la vomitar; já fazia tempo que Rebeca não via nem o próprio sangue, uma vez que bruxas não tinham muito em seus corpos.

    A mãe estava logo à frente, também atravessada por lascas de madeira: uma na barriga, outra no coração. Não havia sangue, ela já era velha, seca do sangue que lhe percorria o corpo em sua juventude, mas na aparência mal se diferenciava daquela de quando a adotou: a pele morena e lisa, os cabelos cacheados sem qualquer fio grisalho, uma linda mulher, pelo menos aos olhos de Rebeca.

    — Eu queria ter chegado antes… — enfim disse o que pensava desde que colocou os pés ali.

    Ela estendeu as mãos para algumas cordas próximas. Elas logo se moveram, possuídas por seu poder, e se enrolaram nos pés dos pais. Pretendia usá-las para arrastar os corpos para fora, mas logo encontrou um carrinho de mão e apenas ordenou às cordas que a ajudassem a colocar os dois em cima dele.

    A habilidade de Rebeca a permitia possuir objetos inanimados, conferindo-lhes força e algumas habilidades. Quanto mais apegada ela fosse ao objeto, mais poderoso ele seria.

    Depois de caminhar por quase vinte minutos, encontrou um lugar na mata que parecia bom o suficiente e começou a cavar. Ela desejou ter algo para comandar que pudesse manejar a pá por ela, uma vez que a própria pá não seria capaz de se mover sozinha mesmo com seus poderes, porque não possuía articulações, nem era flexível, mas não havia nada por perto. Ela se recusava a animar corpos.

    Todo o processo de cavar durou várias horas. Rebeca não conseguia mais saber quando estava chorando pelos pais, por exaustão ou por raiva. O trabalho deixava sua mente livre para imaginar os horrores que transcorreram naquele lugar: o fogo que consumiu as casas, a luta vã dos moradores que não seriam mais capazes de se protegerem contra esse inimigo do que a pá velha que manejava ao tentar perfurar o solo duro.

    O fruto de seu trabalho foram duas covas rasas.

    Ela arrastou cada corpo até sua cova e se sentou entre elas, descansando o corpo e mente para que pudesse aguentar a próxima parte.

    — Vocês me deram um lugar para viver quando eu havia perdido tudo. Cuidaram de mim, mesmo eu não sendo sua filha de verdade. Eu não seria nada sem vocês, nem sei o que eu farei da minha vida agora…

    Ela respirou fundo, tentando ver se encontrava em si forças para continuar o trabalho, mas ainda não.

    O vento ao redor soprava, a noite prometia ser tão quente quanto o dia foi. O suor secava na pele, deixando manchas escuras de cinzas e terra grudadas, delineadas apenas pelo caminho tortuoso de suas lágrimas.

    — Eu amo vocês, e fui amada por vocês. Vou sentir sua falta todos os dias. Todos os dias…

    Ela não conseguia dizer mais nada, só podia chorar agora. E foi o que fez, por muito tempo.

    O sol já começava a se pôr quando ela decidiu que era melhor ir embora dali. Pegou a pá e começou a jogar a terra por cima dos corpos. Pensou em fazer o mesmo pelo resto dos moradores, porém morreria de exaustão antes de terminar a metade. Ela ainda não sabia o que faria dali para frente, mas tinha um encontro marcado com a Eterna.

    :: ::

    Carlos e Malo não eram irmãos de sangue, nem parecidos, mas eram irmãos mesmo assim. Malo era alto, forte, moreno; tinha a cabeça raspada e um rosto sério, carregava nos ombros uma grande bolsa. Carlos era magro, branco, tinha cabelo preto e era muito difícil vê-lo falando sério.

    Eles estavam sentados no fundo do bar, bebiam cerveja e comemoravam um bom dinheiro que ainda não haviam recebido. A ideia fora de Carlos.

    — Meu irmão aqui é um cara muito sério — Carlos dizia alegremente à atendente, que ouvia por educação —, ele é cheio de coisinhas, sabe? Fica falando: mas, Carlos, a gente não devia gastar dinheiro que ainda nem recebeu!. Mas eu digo: a gente vai receber logo em seguida, não tem problema! O que você acha?

    Ele girava preguiçosamente um chapéu de palha em sua mão enquanto falava.

    — Eu não sei senhor… — mas depois pareceu notar algo. — O senhor pretende pagar a conta?

    Carlos lhe concedeu um sorriso travesso.

    — Claro! Eu nunca fiquei devendo ninguém nessa vida!

    A atendente lançou um olhar para Malo, que até então estivera calado.

    — É verdade, ele sempre paga. Eu nunca sei como, mas ele dá um jeito.

    — Ceeeerto… — ela concordou, e seguiu para a antessala, para falar com o dono.

    O bar não estava muito cheio, nem muito vazio, o que era de se esperar. A maioria dos homens capazes, com exceção dos caçadores de bruxas, havia sido convocada para a guerra, deixando apenas os inválidos, os velhos e os covardes que fingiam invalidez para afogarem suas frustrações nesses lugares. Malo não tirava os olhos da mulher que cantava no palco. Era uma morena linda, de cabelos negros com cachos volumosos, seios fartos, cintura fina e uma voz maravilhosa.

    — E aí, o que você acha? — Carlos batia os pés, agitado. — Estou começando a ficar ansioso.

    — Mais alguns minutos; eu acho que ela só está cantando por cantar.

    — Tudo bem.

    A atendente voltou, levava mais dois copos de cerveja.

    — E aí, como anda o velho João? — Carlos provocou.

    A moça se sobressaltou. Carlos riu.

    — Fique tranquila, eu também ia avisar o dono se um cara chegasse no meu bar falando as mesmas besteiras que eu, mas eu conheço o João há uns bons anos.

    — Ah! sim, ele não pareceu muito preocupado.

    Malo sorriu, dando de ombros, ao dizer:

    — Com certeza, o João tem amigos demais; ninguém arriscaria dever a ele.

    — Sim — Carlos acrescentou —, principalmente porque ele é amigo do delegado.

    A atendente pareceu surpresa, deveria ser nova no trabalho; mas não disse nada e voltou para seu posto.

    De repente o clima no restaurante mudou, todos olharam para a cantora.

    — Agora ela começou — Malo constatou, apreensivo.

    Ambos se sentiam pressionados, quase que por uma força externa, a fixarem sua atenção na cantora. A Sereia já era uma criminosa conhecida, cujo poder era complicado de lidar e, por isso, ainda não havia sido pega, mas os dois irmãos pretendiam corrigir isso.

    Algumas pessoas entraram no bar, elas não pareciam conscientes; provavelmente eram escravas de seu poder. Os dois ficaram mais tranquilos ao verem que eram todos homens; isso impediria outras bruxas de se infiltrarem no meio do grupo, uma vez que as bruxas eram semelhantes a mulheres humanas.

    — Malo, cuida deles; eu me preocupo com a bruxa.

    Os homens que haviam acabado de entrar no bar se lançaram na direção de Carlos assim que ele disse aquilo. Eles eram inocentes, mas não havia muito a ser feito, uma vez que se caía no encantamento da Sereia. Malo começou a descarregar o revólver. Os homens se atropelavam na entrada do bar, Malo tentava atirar neles logo ali. Eles pisavam nos corpos dos companheiros e continuavam forçando a passagem. Alguns acabavam conseguindo passar e Malo os abatia em seguida. Ter uma só entrada era conveniente.

    O fato de ter tantos ali era perturbador: a bruxa tinha o costume de encontrar homens em um bar qualquer, os encantar, usar para o que precisasse e, depois, eliminar todos. Se ela havia mantido esse grupo consigo, provavelmente suspeitava que seria atacada em breve.

    Muitos dos clientes do bar sequer tomaram nota do que acontecia; permaneciam fixados na Sereia. Os poucos que conseguiram sair do transe gritaram e tentaram se esconder debaixo de mesas ou bancos.

    Carlos caminhava com pressa em direção à bruxa, mas parecia estar apreciando o momento. Eles haviam descoberto há algum tempo que, uma vez que a Sereia começava seu encantamento, ela não era mais capaz de parar até que finalizasse. Então bastava descobrir onde ela atacaria a seguir, esperar ela começar, e torcer para o efeito não fosse instantâneo. O plano foi de Carlos.

    O problema principal era que, quanto mais eles demorassem, maior seria a influência da bruxa em suas mentes; e, se permitissem que ela completasse o encantamento, mesmo que alguém matasse a bruxa depois, todos os dominados por ela morreriam junto, incluindo os dois. Ele contava com Malo para conter os homens na entrada, e, pelo som dos tiros, parecia estar indo tudo bem.

    À medida que ele se aproximava o olhar da Sereia se converteu da calma de uma cantora que conhece seu público, ao desespero profundo de alguém que sabia que seu fim estava próximo.

    — Simone Alinette, também conhecida como A Sereia, você foi condenada pelos crimes de roubo a bancos e múltiplos assassinatos, com agravantes por uso de bruxaria. Você foi sentenciada à execução a ser feita imediatamente pela União dos Caçadores de Bruxas.

    A bruxa parecia querer fugir, mas não conseguia sair do lugar. Carlos conseguia sentir a força de sua canção, ela entrava em sua mente e o preenchia com um fascínio pela Sereia, como se ele pudesse fazer qualquer coisa por ela. Ele quase desistiu de capturá-la, apenas para poder ouvir para sempre aquela canção, porém ao escutar mais um dos disparos do irmão, ele conseguiu se lembrar de seu objetivo.

    Carlos disparou nas pernas da criminosa, e a fez cair no chão. Então ele pegou a adaga de caçador que carregava no cinto e abriu o peito da bruxa. Enfiou a mão dentro de seu corpo e puxou para fora o coração negro que ainda pulsava devagar; mas não havia nem uma gota de sangue: a Sereia era uma bruxa muito velha.

    A bruxa se agarrava aos braços dele, o arranhava, tentava pegar o coração de volta. Então Carlos cortou as veias com a adaga e a Sereia caiu morta a seus pés.

    Os homens que haviam sido dominados por ela morreram no mesmo instante.

    Não era viável trazer bruxas como prisioneiras, pelo simples fato de que elas não podem ser presas da mesma forma que humanos. Caso se amarrassem os braços e as pernas de um ser humano, ele seria dominado, mas com bruxas era diferente. A única forma de anular temporariamente seus poderes era as impedindo de se concentrar, e o método mais simples de fazer isso era causar-lhes dor. Por isso, entre as opções de manter uma bruxa cativa sob constante tortura, ou tornar crimes de bruxaria como puníveis pela morte, essa última opção parecia mais humana.

    Carlos olhou ao redor para o caos gerado no lugar, depois para o coração da bruxa em suas mãos, e, por fim, para a garçonete encolhida próxima ao balcão e disse com tranquilidade:

    — Bom, agora, sim, a gente vai poder pagar as cervejas! Avisa o João que eu mando o dinheiro para ele assim que receber por esse serviço!

    A atendente acenou com a cabeça, incapaz de dizer alguma outra coisa.

    Malo caminhou até ela.

    — Você está bem?

    Ela acenou novamente.

    Malo pareceu satisfeito, então saiu para checar os outros clientes do bar. A maioria não tinha se machucado muito e, por sorte, o encantamento ainda não os tinha envolvido o suficiente para que morressem junto com a bruxa.

    — Tudo certo? — Carlos perguntou ao irmão.

    Malo esticou os braços, se espreguiçando levemente.

    — Sim, sem problemas.

    — Então, vamos embora. A gente ainda tem mais um compromisso antes de entregar os corações.

    Ele jogou o coração para Malo, que o guardou na sacola que carregava, depois seguiu para pegar o chapéu sobre a mesa; era marrom, de couro. Também pegou o chapéu de palha de Carlos e o entregou ao irmão.

    Ambos saíram do bar. Do lado de fora, todos os curiosos da cidade já haviam se reunido para ver o que acontecera.

    — Nada de mais aqui, pessoal. Apenas uma bruxa criminosa! — Carlos disse, ao sair, se fingindo de sério.

    Malo checou para ver se o coração estava bem escondido dentro da sacola.

    — Outra bruxa? — ele pôde ouvir alguém perguntar. — Elas andam causando muitos problemas ultimamente.

    Malo não gostava desse tipo de conversa, mas já fazia algum tempo que não dizia nada a respeito. Ele não queria confusão.

    — Vamos embora, Carlos, antes que alguém tente roubar o coração.

    — Vamos, vamos.

    A cidade de Altina, onde estavam, era uma das raras daquela região do país que, em geral, era composta por diversas vilas mais ou menos próximas. As casas eram construídas de pedras, uma delegacia, uma igreja, e na fronteira, quase zombando da cidade, a construção inacabada da estação de trem, abandonada há anos, desde de que a guerra começou no sul. Malo e Carlos eram de Encosta, uma vila vizinha que, em teoria, fazia parte de Altina.

    — E aí? Vamos passar na casa da Sara agora?

    Carlos pensou por um segundo.

    — Sim, estou um pouco preocupado por ela não ter aparecido para caçar a Sereia. Normalmente ela não perderia isso por nada.

    Sara, ou Dona Altina, como era conhecida, era uma das nobres mais jovens que participavam da liderança da União dos Caçadores.

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