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Maquinaria da unidade; bordas da dispersão: Estudos de antropologia do Estado
Maquinaria da unidade; bordas da dispersão: Estudos de antropologia do Estado
Maquinaria da unidade; bordas da dispersão: Estudos de antropologia do Estado
E-book1.129 páginas13 horas

Maquinaria da unidade; bordas da dispersão: Estudos de antropologia do Estado

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Sobre este e-book

Uma Antropologia do Estado com alto teor de reflexão teórica e envolvimento etnográfico é o que oferecem com maestria os textos dos organizadores e autores deste livro. Sua leitura é um convite e um desafio ao diálogo entre antropólogos, cientistas políticos e sociólogos que se debruçam sobre as práticas estatais. O Estado, suas políticas e seus efeitos , sua unidade e sua dispersão, são analisados em seus contextos brasileiro e latino-americano em algumas áreas diversas: política indigenista, políticas culturais e a relação do Estado com a religião. A principal enunciação teórica é concisa: os Estados não são formados de uma vez por todas. Contrapõe-se assim à a noção de Estado como "ser", ou "ente coeso", presente na linguagem cotidiana e jurídica e que muitas vezes se deixa aparecer como tal na linguagem das ciências sociais. Embora concisa, a enunciação é altamente complexa. Leva a sério que os vários momentos e faces do Estado e das suas práticas políticas respondem a jogos constantes de correlações de forças entre classes, etnias, raças e gêneros.

O Estado visto como processo, e não como ente, permite a articulação do passado, do presente e do futuro, de tal modo que formas antigas coloniais podem ser reveladas ao se apresentarem com novas roupagens no período pós-colonial. Antonio Carlos de Souza Lima, ao analisar a gestação (formação) e a gerência do poder tutelar sobre os povos indígenas introduzida e regulamentada pelo Estado brasileiro sob o regime republicano nos anos 1910/20 do século passado, revela, de forma clara, os princípios da colonialidade advindas do passado e suas atualizações colonialistas presentificadas.

Se o jogo de correlações de forças sociais sempre presentes pressupõe a produção de hegemonia e a produção de desigualdades e exclusão de alteridades, não há espaço teórico para entender a hegemonia produzida como rei cada. Há espaço teórico para analisar o impacto dos movimentos contra-hegemônicos de segmentos subalternos que buscam o acesso a direitos, assim como o impacto dos movimentos de elites que busquem mais privilégios, mais poder e imponham maior desigualdade.

O Estado não é assim redutível a um entendimento como se fosse apenas o exercício de "tecnologias de poder" sobre "os dominados". Embora as práticas estatais sejam exercidas como tecnologias de poder, impactam diferentemente os segmentos sociais e não são impermeáveis a transformações contínuas ou disruptivas. Está em jogo tanto a expansão da democratização como a configuração de um Estado autoritário. O último capítulo e o posfácio se voltam para o atual momento político no Brasil. Um governo que busca um poder autoritário produz o paradoxo de um notório desmonte de instituições estatais que até então se voltavam para a defesa (ainda que parcial e precária) dos povos indígenas, dos quilombolas e do meio ambiente. Não só: lado a lado, notório desmonte das instituições em favor dos direitos humanos, de instituições científicas, de ataque aos antropólogos que parecem estar "incomodando" e de uma necrofilia produzida pelo descaso em relação à pandemia.

Lia Zanotta Machado
Professora Emérita Universidade de Brasília
IdiomaPortuguês
Editora7Letras
Data de lançamento28 de mar. de 2022
ISBN9786559052271
Maquinaria da unidade; bordas da dispersão: Estudos de antropologia do Estado

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    Maquinaria da unidade; bordas da dispersão - Antonio Carlos de Souza Lima

    Maquinaria-da-unidade_capa_epub.jpg

    Sumário

    Introdução

    Fabricando unidade, embalando a dispersão: estudos de antropologia do Estado

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Caio Gonçalves Dias

    Capítulo 1

    A antropologia da administração e da governança no Brasil: uma área temática ou um ponto de dispersão?

    Carla Costa Teixeira

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Capítulo 2

    Para uma abordagem antropológica da(s) política(s) pública(s)

    Antonio Carlos de Souza Lima

    João Paulo Macedo e Castro

    Capítulo 3

    Reconsiderando poder tutelar e formação do Estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Capítulo 4

    Tradições de conhecimento para gestão colonial da desigualdade: reflexões a partir da administração indigenista no Brasil

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Capítulo 5

    Sobre gestar e gerir a desigualdade: pontos de investigação e diálogo

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Capítulo 6

    Notas (muito) breves sobre a cooperação técnica internacional para o desenvolvimento

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Capítulo 7

    Políticas culturais como tecnologia de governo no Brasil (2002-2016)

    Caio Gonçalves Dias

    Capítulo 8

    Planejar e participar: a área da cultura e processos de formação de Estado

    Pedro Gondim

    Capítulo 9

    Sobre batalhas espirituais: notas para a análise de religião e política no Brasil contemporâneo

    Raquel Sant’Ana

    Capítulo 10

    Hacer los lugares mágicos

    Laura Navallo

    Capítulo 11

    Prácticas fundacionales del Estado uruguayo: acción y gestión estatal sobre los pueblos indígenas en el siglo XIX

    Ana Francesca Repetto Iribarne

    Capítulo 12

    Estado e representação: práticas estatais e desenvolvimento no Vale do Jequitinhonha

    André Borges de Mattos

    Capítulo 13

    Belisário Penna e a burocracia sanitária na primeira década do século XX na cidade do Rio de Janeiro

    Taiguara de Souza Moreira

    Capítulo 14

    Se eu pensar nisso, eu enlouqueço: sofrimento psíquico na administração pública

    Monique Florencio de Aguiar

    Capítulo 15

    Certificaciones étnicas: una etnografía de la Consulta Previa en Colombia

    Raúl Alejandro Delgado Montenegro

    Capítulo 16

    Entre participar, representar e assistir: a trajetória de uma clínica jurídica para refugiados e imigrantes no Rio de Janeiro

    Lucas Odilon

    Capítulo 17

    Direitos constituídos e reconhecidos, imagens do Estado: a ambiguidade das ações governamentais na visão do povo Pankararu

    Cristiane Gomes Julião

    Capítulo 18

    Gestão do desastre: etnografia do processo de mediação entre agentes do Estado, mineradoras e vítimas em Mariana (MG)

    Marcos Cristiano Zucarelli

    Capítulo 19

    Antropologia e Estado no Brasil: questões em torno de uma relação complexa

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Caio Gonçalves Dias

    Posfácio

    O Estado são os outros?

    Adriana Facina

    Sobre os autores

    Introdução

    Fabricando unidade, embalando a dispersão: estudos de antropologia do Estado

    Antonio Carlos de Souza Lima

    Caio Gonçalves Dias

    Esta coletânea reúne textos que analisam distintas ações das (nas e com as) administrações públicas governamentais, enfocadas desde a visada epistemológica característica da etnografia, tendo como horizonte teórico a construção de uma leitura própria à antropologia acerca dos processos de formação de Estado no Brasil, na Argentina, no Uruguai e na Colômbia, assim como processos de imaginação social essenciais à constituição de coletividades sociais sob a égide de associações políticas. Com isso, enfatizamos que as locações sociais (TILLY, 2000) abordadas – e estamos pensando inclusive na antropologia como tal – estão aqui percebidas como parte das teias de processos históricos que se desdobram num tempo dilatado, e que, ainda quando não analisadas na longa duração, podem ser melhor compreendidas em escalas de análise que transcendem o local e o sincrônico. Assim, os modos de perceber os fenômenos analisados podem se inspirar em teorias voltadas a macrocontextos, mesmo quando estes não estão exatamente trabalhados (TILLY, 1984).

    Em termos institucionais, as análises aqui apresentadas referem-se a pesquisas desenvolvidas no âmbito do Programa de Pós-graduação em Antropologia Social do Museu Nacional, Universidade Federal do Rio de Janeiro, ainda que conte com pesquisadores de distintas instituições e com profissionais em diferentes etapas de suas trajetórias. No PPGAS/MN, realizaram-se pesquisas pioneiras sobre políticas de governo, como as de Giralda Seyferth sobre imigração e colonização (1974; 1982; 2016, 2020, entre outros); a análise da fronteira em movimento pensada a partir do capitalismo autoritário no trabalho de Otávio G. Velho (1976); os estudos de João Pacheco de Oliveira (1988) e de Antonio Carlos de Souza Lima (1995) sobre as ações de Estado junto aos povos indígenas; e outros mais, aos quais se juntaria o significativo esforço pela constituição de uma antropologia da política (NUAP, 1998) no bojo da retomada da vida democrática no Brasil.¹

    Além da perspectiva histórico-etnográfica na abordagem das ações de Estado frente a diferentes segmentos sociais, da busca de diálogo com a sociologia, com a história social, com a filosofia de Michel Foucault e seus usos nas ciências sociais, os textos aqui coligidos compartilham o interesse em estudar as práticas de poder de setores sociais que compõem os segmentos dominantes de sociedades contemporâneas organizadas sob a forma política de Estados nacionais. Temos produzido uma antropologia que os autores dos centros metropolitanos europeus e estadunidenses (ou neles enraizados) têm qualificado como at home, expressão que só faz sentido quando se tem a dicotomia colônia-metrópole (home) de impérios (neo)coloniais-colônias. Cremos que a situação de países surgidos da expansão europeia na modernidade em muito difere das trajetórias daqueles Estados Nacionais surgidos da luta contra os colonialismos dos séculos XIX e XX. Ademais, se formos pensar a colonização interna do Brasil à luz dos conhecimentos que a historiografia brasileira contemporânea nos traz, pouco ou nada podemos reconhecer de centros e periferias tão marcados: somos at home em relação a quem e a quê?

    Se a imagem pode ser útil para levar leitores estrangeiros ao entendimento da forte relação entre antropologia e construção nacional e pela presença da disciplina na esfera pública no Brasil, ela atende a segmentos específicos da vida acadêmica, já que tais relações existem, mutatis mutandis, também em outros países, mas estrategicamente borrada pelos historiadores da disciplina nos países centrais. Já nas antropologias dos Sul, das periferias ou como se as chame, tais clivagens são por vezes mimetizadas, sendo o trabalho voltado para povos indígenas em chaves próximas às de tradições dominantes na disciplina, mais legítimas, puramente antropológicas ou o que se queira dizer. Quando pensamos nessa condição colonial do Brasil, fazemos isso reportando-nos a um sistema mundial mais que a uma metrópole específica, onde centro e periferia merecem mais ainda ser relativizados, sobretudo no presente.² Assim, não há home no sentido dos britânicos e outros. A geopolítica do desenvolvimento desigual e combinado contemporâneo é bem mais complicada que isso.

    Se parecemos nos contradizer ao invocar a posição reiteradamente reproduzida por nossas elites de inserção subordinada na divisão internacional do trabalho, a pluralidade de centros no caso brasileiro mereceria uma melhor reflexão nas reivindicações/traduções de uma antropologia at home para o caso brasileiro, o que não queremos desenvolver nesse texto. Ademais, como Bernard Cohn (1996) e Pels (1997) já nos chamaram atenção, é verdadeiramente impossível entender a configuração da estrutura política de centros sem as muitas experiências prototípicas de ações de Estado levadas a cabo nas colônias.

    Nos textos aqui reunidos, temos demarcada uma certa zona de dispersão de questões empíricas remissíveis aos campos fenomênicos reportáveis à escorregadia categoria de Estado. A forma como tratamos as ações de Estado para os povos indígenas, as políticas culturais, as práticas de poder internas às instituições burocráticas, as trajetórias de seus ocupantes e os dispositivos de reconhecimento e gestão das diferenças étnicas, entre outros, trazem três outras marcas que devem ser destacadas.

    A primeira delas é a de que não estamos perseguindo em primeiro lugar (embora em geral tenhamos as informações sobre os efeitos sociais das ações daqueles que estudamos) como segmentos sociais menos favorecidos em termos de poder (econômico e político) recebem e agenciam as ações a eles destinadas, situação em que os antropólogos no Brasil estiveram em posição de superioridade hierárquica que lhes garantiu a possibilidade de alianças eticomorais engajadas a favor dos desprotegidos. Essa faceta assegurou uma imagem internacional da antropologia produzida no Brasil, projetando-a (erradamente em larga medida) como influente nas tomadas de decisão, como a economia, a administração ou o direito são. Afinal, por sermos presentes na esfera pública, não fomos/somos sempre acatados.³ Tal imagem permitiu também uma parca definição das origens sociais dos profissionais de antropologia, bem como a idealização de uma espécie de espírito salvacionista nem sempre correspondente às práticas dos profissionais. Nesta coletânea, os autores estão em posição de simetria e diálogo com seus interlocutores ou em posição de inferioridade. Se o texto seminal e pioneiro de Laura Nader (2020[1972]) nos inspirou, bem como as estratégias dos que se propuseram levar adiante a ideia de estudar agências e agentes em posição hierárquica superior em relação aos pesquisadores, que Carla Costa Teixeira (2014) repassa e sistematiza, ou a proposta de Susan Wright e Sue Reinhold de estudar através ("studying through", 2011), cremos ter desenvolvido um conjunto de estratégias convergentes com essas e muitas outras discussões, algumas delas reunidas em coletânea (CASTILHO; SOUZA LIMA; TEIXEIRA, 2014), outras colocadas em textos monográficos (BRONZ, 2014; 2016; VALENTE, 2010; HOFFMANN, 2009; FERREIRA, 2009, 2015; CASTRO, 2009), em que trabalhar com talvez seja a melhor maneira de descrever.⁴ Isto é, em geral, e cada dia mais, acessamos informações vitais para nossas pesquisas pela participação intensa nos universos sociais que estudamos, o que demanda diálogo e negociação ou até mesmo aceitar propostas de trabalho que revertam na produção de um conhecimento inovador e participativamente negociado (HOFFMANN, 2014), cumprindo as normas éticas e o rigor epistemológico necessário ao trabalho científico.⁵

    A segunda marca mantém uma relação direta com essa primeira: as etnografias aqui apresentadas foram construídas não só pela apreensão das formas como nossos interlocutores pensam e agem a partir da observação participante – ou participação observante (INGOLD, 2014; WACQUANT, 2002), ou objetivação participante (WACQUANT, 2006; BOURDIEU, 2003) –, de entrevistas, da análise de rituais onde o pesquisador está fisicamente presente, mas foram muitas vezes construídas (também) por meio de uma análise cuidadosa de amplos corpos documentais. Estes, estrategicamente, podem inclusive servir para apresentar e demonstrar as implicações de problemas que, se fundamentados na coleta de dados pautada na interação social, gerariam inúmeras discussões éticas.⁶ Como estamos todos lidando com instituições complexas e dotadas de mecanismos de poder e extensa documentação, entender o pensamento dessas agências e seus integrantes a partir da criação de instrumentos analíticos de textos torna-se em si uma parte estimulante e inovadora da investigação em antropologia: conquanto nada recente, há muito o que se expandir e aperfeiçoar para o tratamento, agora, sobretudo, de materiais disponíveis na internet.

    A terceira marca diz respeito à dimensão histórica presente necessariamente em todos os trabalhos, mesmo quando não estamos fazendo uma análise sociogenética dos temas e universos empíricos que abordamos. Como já mencionado, seguindo a ideia de processos de formação de Estado (ELIAS, 2006; TILLY, 1975; ROKKAN, 1975; STEINMETZ, 1999; CORRIGAN; SAYER, 1985; CORRIGAN, 1990, entre muitos outros), julgamos que os estudos que realizamos não se cristalizam e fecham em um dado momento do tempo, mas deixam campos abertos projetados ao futuro, espaço para a luta política pela transformação social. Se boa parte da antropologia feita sobre as sociedades complexas, ou sobre os colonialismos e contextos pós-coloniais, muitas vezes deixou intocadas do ponto de vista analítico a cotidianidade das relações de poder entretecidas a estratégias de luta e sua institucionalização estatizada, passível de disseminação por todo o corpo social, nosso trabalho tem buscado perceber, no fluxo do tempo, as condições sociais por que formas de dominação que (re)produzem assimetrias sociais emanam e perpassam esse dispositivo de atribuição hierarquizada de espaços circunscritos e de concentração de recursos, de produção de crenças (antes e sobretudo sobre si mesmo e sua suposta centralidade na vida das coletividades e indivíduos a ele subsumidos) que muitas vezes chamamos de Estado. Ou seja, sob nossa perspectiva, o tempo do cotidiano não se reduz à análise sincrônica, mas supõe a presença do passado no presente e projeta as expectativas sempre mutáveis de futuro.

    Ao longo do tempo, e conforme as questões colocadas, enfatizamos aspectos diferentes na apreensão desse campo fenomênico (SCHÜTZ, 1979). No primeiro capítulo desta coletânea, A antropologia da administração e da governança no Brasil: uma área temática ou um ponto de dispersão?, Teixeira e Souza Lima mostram as várias abordagens que percebem. Entre essas propostas, a antropologia das políticas públicas foi uma das que utilizamos. Partimos, em muitos casos, das ações concretas de Estado, buscando percebê-las para além do esquema corriqueiro de identificação de problemas – estabelecimento de agenda-formulação-tomada de decisão-implementação – monitoramento e avaliação – extinção ou redefinição (ver Capítulo 2 desta coletânea). Procuramos abordar um conjunto de questões que devem a historicidades próprias e a diversas singularidades dos atores que as conceberam, implementaram e avaliaram, assim como às populações-alvo das ações – tratadas em geral como políticas públicas – e que muitas vezes foram dadas como explicações para insucessos dessas ações. Outras vezes, as políticas públicas foram invocadas como explicações de extensas mudanças na vida daqueles a elas submetidas, como se esses fossem estáticos e incapazes de agenciá-las em outras direções. De qualquer modo, em nossa abordagem trata-se muito mais de descrever como os detentores desses mecanismos de gestão pensam e se organizam para agir, em uma espécie de busca do desenho de uma cosmologia política do que etnografar as não menos importantes (muito pelo contrário) estratégias de luta que, entrelaçadas a relações de poder, compõem uma forma de dominação (FOUCAULT, 1983).

    Em outra chave, mas no fundo mobilizando as mesmas questões e preocupações, formulamos dimensões de nossas pesquisas como focadas na análise das práticas de poder, com isso dando relevância à dimensão praxiológica, e com a visão de que, se consideramos a capilaridade dos poderes estatais, muitos processos que produzem assimetrias e efeitos de Estado escapam à dimensão das políticas públicas, as quais preferimos tratar como políticas de governo (ver em especial Capítulos 1 e 2). Analisar certos processos implica ver o cotidiano muitas vezes aparentemente repetitivo e estéril das instituições burocráticas, seus automatismos e tudo o que escapa ao universo jurídico-normativo, sua efetividade prática ou não, e isso descreve como as coisas acontecem, e como elas, de fato, podem acontecer. Ou seja, não se trata de denunciar a decalagem entre o proposto e o feito (tão incômoda aos atores de movimentos sociais, como nos mostra Cristiane Julião nesta coletânea), mas, sim, mostrar como o proposto pode continuar sendo reiterado, apesar de sua ineficácia, e como o feito pode atender a um conjunto de todo distinto de modos de perceber, sentir, verbalizar e agir cultivados em espaços alienígenas aos das instituições de gestão governamental.

    Juntando essas direções, abordamos a performatividade dos processos de formação de Estado, nos planos subjetivos e objetivos, e como isso de certo modo passamos a enfrentar O Estado, realidade empírica de agências e agentes marcada pela dispersão que surge em dados momentos embalada (nos sentidos de revestida, e de acalentada, apaziguada, aconchegada), e conceito que converge para a produção de unidade. E o fizemos mais detidamente não só em cursos, seminários e debates, mas também em textos (SOUZA LIMA, 2012 e os textos ali coligidos) e pesquisas.⁷ Sabemos que o termo Estado é um significante polissêmico. Designa dispositivos de produção de assimetrias e de produção de crenças e representações coletivas voltadas para a produção de um consenso lógico, a luta pelo estabelecimento real ou normativo/figurativo de monopólios de recursos (econômicos, financeiros, simbólicos), as tecnologias de centralização de poderes, as agências e os quadros administrativos que devem ser percebidos e tratados em seus planos não apenas morfológicos, mas também as crenças, os rituais, as formas de apresentação de si – portanto, de etiquetas e padrões performativos etc.

    É importante ir além das percepções mais corriqueiras, expressas na própria linguagem cotidiana do senso comum (erudito inclusive, em especial na filosofia e na ciência política mais comuns, saberes de Estado que costumam ser), o Estado – ente efetivamente dotado de personalidade jurídica –, sendo pensado como uma realidade acabada, um ser com intenções e vontade coesas e unívocas. Os contornos dessa ficção-realidade estão dados na cabeça do cidadão escolarizado, já que a educação básica é um dos instrumentos privilegiados de transmissão de conhecimentos gerais sobre o Estado, por meio das imagens didáticas do sujeito de direito internacional Estado-nação. Isso é feito pelos ritmos temporais (o ano letivo, o calendário escolar de avaliações, os ciclos da educação fundamental, do ensino médio, da educação superior, da pós-graduação) regrados pelas instituições da administração pública, pelos conteúdos veiculados (em especial, nas disciplinas de história e geografia, mas também em língua portuguesa e eventualmente em outras disciplinas) e pelos próprios rituais escolares.⁸ Mas a circunscrição e a marcação de tempos pelo Estado não se resumem à escola: ao ano letivo, somam-se o fiscal/administrativo; os períodos de prestação de contas à fiscalidade (os prazos de declaração de imposto de renda; os de abertura de inventários post mortem), os períodos de vacinação, os períodos de validade das autorizações concedidas para inúmeras atividades, profissionalizadas ou não (como a autorização para dirigir veículos). São os tempos do nascimento e da morte, também com suas certificações sob a forma de documentos (PEIRANO, 1986; 2006; 2009; FERREIRA; LOWENKRON, 2020), e seus locais oficiais de passagem que marcam o próprio fluxo da vida de sua forma ideal, a presença reconhecida ou a ausência denegada (FERREIRA, 2009; 2015), as trajetórias tortuosamente indexadas de certos cidadãos (CASTRO, 2014). Do mesmo modo, poderíamos pensar nas diversas formas pelas quais – no plano formal e por vezes com a interveniência do uso do monopólio da violência legítima, por meio de ações, como nas áreas nas quais as Forças Armadas e as polícias têm jurisdição (espaços aéreos, marítimos e terrestres de soberania nacional e fronteira; rodovias etc.) ou por omissões, como nas amplas regiões em que franquiam e delegam a máfias de todo o tipo (facções criminosas, milícias, firmas de segurança etc.) – se faz uso cotidiano da violência no controle territorial.⁹

    É preciso desnaturalizar a suposta existência permanente e a continuidade estrita dos processos enfeixados no ente Estado assumindo o ponto de vista de pensá-lo como múltiplas performances em permanente devir (corpus jurídico inclusive), percebendo-se a incessante formação dos dispositivos responsáveis pelo que Michael Taussig (2015[1992]) chamou de mágica do Estado. Assim, orbita-se entre a etnografia de contextos de extrema violência e a linguagem ficcional protetiva de autor e seus interlocutores, em seus múltiplos aspectos a partir, entre outras coisas, de sua performatização no cotidiano.¹⁰ É importante, pois, avançar por esse território temático, no sentido de clarificar as muitas discussões subjacentes aos textos aqui apresentados e postos em discussão em aulas, seminários, discussões de textos, de modo a contribuir para o avanço da etnografia, sincrônica ou histórica, e para uma mais eficaz teorização sobre o fenômeno estatal. Desde Henry Maine e Lewis Morgan, eles ocupam a imaginação antropológica em sociedades contemporâneas, espaços por excelência das teorias da ciência política, da sociologia política, do direito, da filosofia.¹¹

    A partir dessas balizas, nossa abordagem da formação de Estado alimenta-se do diálogo com as diversas perspectivas analíticas que apontam para feixes de processos que entretecem dispositivos de permanente (re)instauração de desigualdades duráveis de classe, raça, gênero (e orientação sexual) e etnia, fazendo-se hoje sob um cruzamento singular entre tecnologias de governo operadas desde agências de Estados Nacionais ou de instituições multilaterais e uma crescente transposição de formas de gestão e exercício da violência física e psíquica a corporações, máfias e diversas formas de articulação em rede fora dos parâmetros da legalidade.¹² Isso significa que estamos pensando não apenas no horizonte da tradição marxista, mas também da contribuição weberiana e dos trabalhos de Durkheim e Mauss, e suas decorrências, entre elas primordialmente as contribuições de sociologia de Pierre Bourdieu e as da genealogia do poder de Michel Foucault. Também pensamos na literatura propriamente antropológica mais recente (ou melhor, contemporânea aos nossos esforços no Brasil, lamentavelmente insulados pela língua portuguesa), seja de origem anglófona (HERZFELD, 2016, SCOTT, 1998; SHORE; WRIGHT, 1997; SHORE, WRIGHT, PERÓ, 2010; SHORE, 2000), seja de origem indiano-estadunidense (DAS; POOLE, 2004; GUPTA; SHARMA, 2006, entre outros).¹³

    De Norbert Elias retiramos, entre muitas outras, a ideia de que o processo de formação de Estado diferencia-se até momento recente daquele de construção de nações ([1972]2006). De seu trabalho anterior sobre O processo civilizador (1993), destacamos as dimensões de construção de monopólios (da taxação, da mobilização dos meios de coerção, das leis e normas), da tessitura de uma crescente interdependência das redes territoriais autônomas e dispersas em torno de um único centro de poder. Paralelamente a tais movimentos no plano coletivo, correram no plano individual e subjetivo o processo de controle das pulsões, o avanço das etiquetas, o estabelecimento de padrões de civilidade adequados a uma vida urbana mais intensa e em espaços mais restritos.¹⁴

    Philip Abrams (1988[1977]), em um texto citado por diversos autores das mais variadas tendências e que percorre uma literatura ampla de base marxista, weberiana e funcionalista, destaca que duas grandes dimensões estão amalgamadas no conceito, promovendo uma confusão analítica: o que chama de Estado-como-sistema, em contraposição à dimensão de Estado-como-ideia. Entendemos essa visão como uma chave de cunho heurístico e não como designação de uma duplicidade separável. É importante lembrar com Mitchell que

    O Estado é um objeto de análise que parece existir simultaneamente como força material e constructo ideológico. Parece ser tanto real quanto ilusório. Esse paradoxo constitui-se em um problema em si para qualquer tentativa de construir uma teoria do Estado. A rede de arranjos institucionais e práticas políticas que formam a substância material do Estado é difusa, e ambiguamente definida em suas bordas, enquanto a imagética pública do Estado como constructo ideológico é mais coerente. A análise acadêmica do Estado é propensa a reproduzir em sua própria ordenação analítica essa coerência imaginária e deturpar a incoerência da prática do estatal (MITCHELL, 1999, p. 76; tradução nossa).

    Discutindo com as teorias marxistas da ideologia, Abrams ([1977] 1988) oferece-nos ainda outra ideia que é preciosa, em especial se a considerarmos do ponto de vista heurístico: a de que o Estado não é a realidade por trás de uma suposta máscara ilusória; mas é em si mesmo a máscara. Tal ideia mostra-se uma via privilegiada de análise dos processos de formação de Estado quando consideramos que a máscara é em si um objeto manuseável, e que em muitos rituais de diversos povos ela é a entidade que concretiza as operações de enquadramento ao mesmo tempo material e simbólico. Estas operações, que podem ser descritas e teorizadas, conferem unidade à dispersão da fragmentação de redes de agências e agentes, de práticas com fronteiras mal definidas entre público e privado, entre o governamental e o não governamental. Esta maquinaria da unidade – ou a máscara em si mesma, o Estado-como-ideia, símbolo e materialidade – produtora de consensos morais e de categorias estruturantes da própria existência social em coletividade é parte inseparável do que se chama O Estado. Abordar a máscara etnograficamente, com rigor descritivo, demanda o realinhamento de instrumentos analíticos e um forte esforço de extroversão de nossas próprias amarras cognitivas: se a sociogênese do Estado, em suas múltiplas formas históricas concretas, é coetânea e entrelaçada a modos igualmente diferenciados de controle/gestão das pulsões destrutivas no plano (inter)subjetivo, somos então epígonos destes processos. O momento histórico brasileiro em que escrevemos (maio de 2021) demonstra-o sobejamente.

    Com tal forma de conceituar Estado, em que dominam menos que institucionalidades fechadas ou dogmas prescritivos quanto a funções definidas e prescritas, queremos viabilizar a apreensão etnográfica do que acontece no plano da vida cotidiana, assumindo percebê-lo como uma relação em permanente (re)formação e (re)fluxo, usando-o para construir analiticamente e descrever realidades em processo no tempo e no espaço, encarando tal relação como matriz e resultante de assimetrias de ordens distintas. Se for possível dizer que o Estado se revela também simultaneamente um dispositivo de concentração e de reordenação hierárquica, é porque consegue capturar outros diferentes dispositivos geradores de desigualdades e amplificá-los, coletivizando e singularizando privilégios e obrigações. Antes de denominá-lo como produto (genérico) da luta de classes (genérica), estabelecer dominantes/detentores do poder e trabalhar para comprovar o já sabido, pensamos que é fundamental descrever como ocorre o exercício do poder: convém refletir sobre como se dá a produção da crença na governamentalização dos poderes (muitas vezes incapazes de se exercer plenamente), sua estatização e, em momento mais recente, o implante de tecnologias de governança neoliberal sob as feições singulares às especificidades dos contextos históricos em que tais transformações se produziram.

    Parece-nos pertinente operar no plano etnográfico simultaneamente com o que acreditamos que sejam alguns dos usos analíticos do termo a partir de distintos referenciais teóricos, sem excluí-los, mas, ao contrário, pensando que tais usos, quando entrecruzados, permitem descrever fenômenos que, se tomados separadamente, limitam o entendimento de dimensões dos dispositivos estatais. Ou seja, pensamos ser impossível praticar um certo (e de nosso ponto de vista saudável) ecletismo desde que as proposições se reencontrem no plano da teoria do conhecimento do social (BOURDIEU; CHAMBORENDON; PASSERON, 1993, p. 48-50). Afinal, de nada adianta professar devoção a grandes teorias englobantes, e operar com uma espécie de empirismo selvagem, colhendo procedimentos metodológicos aleatoriamente, sem declarar as inspirações. Etnografias que nos permitem agregar visadas distintas na construção de um objeto possibilitam, ainda, repensar as balizas teóricas de que partiram. Pensamos que nesse plano se podem analisar como teorias nativas certos usos instrumentalistas e deterministas do termo, como os que dizem que as leis são boas e o Estado é que é ruim, porque as aplica mal, que uma é política de Estado e outra uma política de governo.

    Mais do que propor uma teorização apriorística, em geral calcada nos modelos europeus que organizam a narrativa de nossa história colonial e independente, pareceu-nos necessário operacionalizar certas ideias e perspectivas analíticas para compreender as práticas de poder e o funcionamento das instituições em realidades como a latino-americana, entre elas a brasileira, com suas inúmeras singularidades regionais. As colonizações europeias, espanhola e portuguesa sobretudo, impõem inúmeras continuidades que não devem, no entanto, turvar a percepção do quanto os efetivos arranjos históricos são muito distintos dos modelos europeus, das metrópoles ou de outros países.

    De nossa perspectiva, a descrição etnográfica, sincrônica ou diacrônica, permite avançar no desvendamento de certos dispositivos que tornam possível a mágica do Estado na vida cotidiana, sobretudo quando focamos a situação colonial de Estados fundados no controle sobre a posse e a propriedade da terra, no saque dos recursos de populações transformadas em inimigos internos (como prototipicamente o são os povos indígenas, mas também todas aquelas que vivem formas de propriedade distintas da propriedade privada e de uso não capitalista da terra), na permanente (re)produção de desigualdades extremas. Uma das dimensões profícuas na proposição de Pierre Bourdieu (1996; 2014) de pensar a gênese do Estado moderno europeu tratando-o como um metacampo do poder, capaz de acumular um metacapital, é a de que em Estados surgidos dos processos de invasão e colonização europeia desde a idade moderna, caso do Brasil, a constituição desse monopólio dos monopólios (para usarmos os termos de Elias) deve ser bastante relativizado; e sua imagem como capaz de concentrar e centralizar capitais/poderes é bastante relativizada se olhamos o plano das práticas.¹⁵ Na verdade, o monopólio sob a legalidade, entre muitas outras funções, do exercício da taxação (o que funda a existência de recursos ditos públicos) e da coerção física por parte de agências estatais não deve ser confundido com o real controle legítimo e monopolístico das mesmas funções. Afinal, como é parte da história de inúmeros Estados pós-coloniais, e de modo muito marcante daqueles da América Latina, as funções concentradas em um quadro administrativo organizado burocraticamente nunca descartaram um conjunto de formas de associação paralelas ao universo da legalidade que mantiveram amplo controle sobre extensas porções dos territórios nacionais. Hoje, isso parece estender-se significativamente, conectando-se com organizações similares mundo afora. A permeabilidade entre mercado ilegal e aparatos repressivos estatais, sabemos, não cessa de se mostrar ostensivamente à cena pública.¹⁶ Se como Mitchell (1999, p. 95) nos mostra, Estado, economia e sociedade como realidades distintas e discretas resultam de processos (mundanos) de produção social, nem por isso são menos reais, no sentido de que as dinâmicas sociais que os engendram acontecem cotidianamente e advêm da história e estão longe de ser esterilizadas de qualquer passado. Acrescentaríamos que tais dinâmicas variam enormemente ao redor do globo, o que está longe de ser autoevidente e trivial: o Estado moderno não tem uma mesma cara, conquanto enquadramentos e codificações possam apresentar realidades apenas em parte recorrentes.

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    Queremos aqui evocar certas ideias que em geral surgem separadas em/por vertentes analíticas várias. Pode-se, assim, ultrapassar a crença na coerência do Estado – que pede sempre uma abordagem teórico-filosófica, ao estilo de certas elaborações das ciências sociais, ou normativo-prescritiva, ao modo do direito, seu idioma por excelência –, de forma que se possa, com isso, abrir caminho para descrição desses múltiplos feixes de processos em permanente devir. Tais ideias, debatidas em seminários e experimentadas em pesquisas empíricas de cunho etnográfico, têm sido o motor de novas buscas de visadas teóricas e sedimentam alguns modos de tratamento que veremos presentes nos textos dessa coletânea.

    Assim, ao falarmos em Estado, entre outros pontos (e entre os possíveis desdobramentos aprofundados dos que se seguem), buscamos analisar e descrever:

    1) As crenças de uma coletividade, estabelecidas por processos mundanos (para usar o termo de Mitchell) e sobretudo cotidianos, na necessidade e na realidade material de uma associação política com a prerrogativa do exercício do monopólio da legalidade (mas não necessariamente da legitimidade) da coerção sobre um dado âmbito territorial (no sentido de WEBER, 1983[1922]). Tais processos constituem o território sobre o qual exercem seu domínio armado e, com isso, constituem a própria forma associativa, que pode emanar de um âmbito local extremamente restrito, mas articular-se de modo interdependente com redes, corporações, máfias etc., ou seja, com distintos formatos associativos em múltiplas escalas espaciais. Destarte, se continuamos concordando com Charles Tilly (1975, p. 52; tradução nossa), a guerra é a condição característica, e as forças armadas os instrumentos característicos, do sistema de Estado, cremos que os termos guerra, forças armadas e sistema de Estado devem ser encarados na extrema variedade de formas sociais existentes.

    2) O exercício cotidiano da dominação sob a forma da administração (WEBER, 1983[1922], p. 175; WEBER, 1974) – gestão mais ou menos sutil e em permanente tensão entre relações de poder e de violência física, exercidas por segmentos dominantes nesse âmbito, vis a vis estratégias de luta de segmentos dominados (FOUCAULT, 1983) – por meio de um corpo administrativo orientado por valores codificados, referido a um centro de poder e a uma forma/figura central de mando e tomada de decisão muitas vezes corporificados em um único indivíduo. A administração, por seus procedimentos cotidianos de diferentes ordens, mantém a dominação e dá institucionalidade material aos processos de formação de Estado, pelos quais uma coletividade, mesmo quando se pensa igualitária, se hierarquiza assimetricamente, (re)produzindo desigualdades.

    3) O dispositivo de monopolização e concentração de recursos financeiros, humanos, materiais e, entre esses, territoriais. Pode-se, pois, dizer que produzir monopólios (no sentido de Norbert Elias) é uma função do Estado qua dispositivo e simultaneamente uma condição para que se possa tratar uma dada rede de agências e agentes como Estado-como-sistema. Também este dispositivo não deve ser pensado como redutível àquilo que o universo jurídico-normativo define como estatal, sendo preciso pensar os contornos das linhas de força que efetivamente desenham os monopólios, bem como sua plasticidade situacional.

    4) Um certo entramado de redes sociais territorializadas no comando do controle diferencial de recursos de ordem distinta, sentindo-se pertencentes a uma mesma totalidade imaginada e definida normativamente como soberana. A interdependência que tais redes mantêm lhes resguarda maior ou menor independência e integração relativas entre si e face ao corpo administrativo da associação política que é parte da figuração de um centro de poder. De tal centro, emanariam as decisões políticas que norteariam a vida coletiva. Muitas vezes, parece-nos, o que se passa é o exato oposto: os quadros de possibilidades das decisões emanam de fora do centro de poder enquanto locação social instituinte de ações, normas e sanções ou, no mínimo, a tomada de certas decisões implica alta tensão entre classes e frações de classe regionalizadas e setorizadas em termos de atividades na vida produtiva. O que é executado como decisão depende, assim, do domínio exercido por tais redes sobre amplos setores sociais e geográficos.

    5) Os quadros administrativos oriundos e expressivos de tais redes, frutos de mecanismos pelos quais elas se fazem representar em múltiplos níveis, combinam-se com quadros que por vezes guardam algum nível de independência em relação a elas. Quadros de carreira, especialistas dotados de formação técnica, selecionados por concurso (MAIA, 2021), podem também compor as instituições (TEIXEIRA; CASTILHO, 2020) do Estado-como-sistema, a administração pública direta ou indireta. Tais quadros (que podem também se inserir nas redes de domínio acima mencionadas) são agentes fundamentais da figuração do público, do nacional, parte da imagética constitutiva do que seria um centro de poder decisório. Suas práticas cotidianas, as economias de transmissão de conhecimentos necessários a esses exercícios de poder, macro ou microscópicos, são essenciais à performance do Estado-como-ideia e merecem maior atenção do que vêm recebendo das ciências sociais, ao menos no Brasil.¹⁷

    6) As redes, grupos ou agências, como quer que se possam conceituar as formas associativas distintas e por vezes complementares em que se institucionalizam de modo mais ou menos disperso ou coeso e integrado os produtores simbólicos e seus produtos – sejam eles parcialmente coincidentes ou não com um corpo administrativo atuante no exercício cotidiano da dominação via gestão administrativa. Sua principal função é produzir o consenso moral (DURKHEIM, 1983[1980-1900]) mais profundo que, sob a forma de representações (inclusive em seu sentido estritamente performático), sentimentos, imagens e modos de ser e fazer, molda os horizontes do possível, construindo os enquadramentos da realidade sob os quais vivemos (BOURDIEU, 2014, p. 56-61). Esse corpo de produtores dos modos de pensar, sentir e agir que nos pensam (para usar um jogo de palavras ao modo de Bourdieu) emociona e movimenta, sedimenta tais conhecimentos, textualizando-os ou não, sob a forma de tradições que transpassam, em permanente transformação, classes, frações de classe, gerações, grupos de interesse etc. Assim, baliza as próprias ideias do que seja a coletividade política que descreve, circunscreve e prescreve como fatos jurídicos, econômicos, sociais, políticos e afetivo-psicológicos.

    7) Uma panóplia, material e simbólica, que possibilita configurar uma imagem de totalidade – a realeza, a pátria (ou a nação) – e conferir a qualidade de centro de poder a uma dada locação social encravada em um ponto do mapa geográfico que expressa a imagem espacial da coletividade e certo conjunto de agências, agentes, códigos, enquadramentos dos modos de pensar, sentir e agir. Tal panóplia é a expressão mais facilmente apreensível do Estado-como-ideia, que a ela não se reduz e opera enquanto verdadeira encarnação e assentamento dessa totalidade objetificada em agências e incorporada e subjetivada no plano individual. Geertz destaca essa dimensão com o estudo de Negara (GEERTZ, 1981), e Georges Balandier (1982) enfatiza o caráter dramático e fortemente cênico de Estados nacionais muito divergentes em suas práticas dos modelos que os pautam.¹⁸ Performances estatais, dotadas de pompa e apresentações públicas historicamente significativas, são constitutivas mesmo do Estado: não se trata de algo apreensível em termos meramente ideológicos; elas produzem o Estado (BLÁZQUEZ, 2012a). Nesse sentido, a partir de rituais e cerimônias (TAMBIAH, 1985) mas não apenas, é pertinente analisar uma imagética estatal como uma dimensão performativa do Estado. Para tanto, devemos considerar a dimensão ritual de eventos cotidianos, mesmo que afastados da esfera religiosa. Deve-se levar em conta, como Mariza Peirano o faz a partir de uma leitura singular de Tambiah, que: "os nativos marcam esses momentos [no caso, os riots sul-asiáticos, mas a proposição pode ser expandida para outros eventos com contornos políticos – Antonio Carlos de Souza Lima & Caio Gonçalves Dias, doravante ACSL; CGD] como distintos dos acontecimentos cotidianos; segundo, trata-se de uma performance coletiva para atingir determinado fim; terceiro, os eventos possuem uma ordenação que os estrutura" (PEIRANO, 2002, p. 35).

    8) Os processos de captura e reconfiguração de agências, práticas, exercícios de poder genealogicamente distintos entre si, não estatizados e em origem sem funções de governo, que se entrelaçam sob o que se poderia chamar de processo de estatização, em especial sob a forma histórica do Estado Nacional, o que se dá de acordo com historicidades específicas. Tais processos coletivizam (no sentido de De Swaan, 1988) tarefas quanto a aspectos da vida de distintos segmentos sociais, emulando em sua ação as dinâmicas estatais, levando a um efeito de expansão ainda que sob o rótulo de sua redução do Estado-como-sistema. Ações e práticas de autogestão são, assim, recodificadas e submetidas a novos enquadramentos, muitas vezes afeitos ao que se vem sendo chamado de neoliberalismo a partir da segunda metade do século XX (FOUCAULT, 2008a).

    9) O funcionamento concreto dessas dimensões por meio de certas ações (rituais inclusive) da máquina administrativa, isto é, do que se tem chamado de políticas públicas ou, melhor dizendo, governamentais.¹⁹ Isso significa admitir, com Steinmetz, que:

    O estudo da formação de Estados é inerentemente histórico, porque se concentra na criação de Estados duráveis e nas transformações das características estruturais básicas desses estados. Às vezes, a formação do Estado é entendida como um momento inicial mítico em que organizações hegemônicas, com controle centralizado, são criadas dentro de um determinado território. Todas as atividades que se seguem a esta era original são então descritas como formulação de políticas (públicas – policies, ACSL; CGD) em vez de formação do Estado. Mas os Estados nunca são formados de uma vez por todas. É mais frutífero ver a formação do Estado como um processo contínuo de mudança estrutural, e não como um evento único. As características estruturais dos Estados envolvem todo o conjunto de regras e instituições conjugadas na formulação e implementação de políticas (públicas – policies, ACSL; CGD) [...]. Isso sugere que o contraste comum entre a formação do Estado e a formulação de políticas (públicas – policies, ACSL; CGD) costuma ser mais uma questão de estudos transversais versus longitudinais do que de uma distinção bem fundamentada entre objetos teóricos. É mais correto dizer que as políticas (públicas – policies, ACSL; CGD) que afetam a própria estrutura do Estado fazem parte do processo contínuo de formação do Estado. Uma política de mudança de estrutura é aquela que altera o Estado de uma forma que afeta sistematicamente a produção de políticas (públicas – policies, ACSL; CGD) subsequentes; uma política (pública – policies, ACSL; CGD) de reprodução de estrutura expressa e afirma a forma de Estado existente (STEINMETZ, 1999, p. 8-9; grifos do autor e nossa tradução).

    10) As formas de subjetivação discricionária produzidas e/ou induzidas pelas formas hierarquizantes de ação cotidianas, em especial das que poderíamos denominar como governamentais (mas não só), produtoras de indivíduos inseridos como menos capazes nas coletividades que integram, necessitados de formas de mediação para sua participação cívica mais ampla ou para aquela institucional, mais restrita.

    Devemos considerar, portanto, que os numerosos aspectos que são por vezes tratados em separado devem ser enfocados como faces, ocasionalmente operando em tempos distintos e apresentando arestas contraditórias, de um mesmo feixe de processos cujo entendimento mais perfeito não pode prescindir de abordagens de longo prazo e de múltiplas escalas. Assim, a formulação do direito e sua execução, a concepção acerca, por exemplo, dos indígenas e de seu lugar nos processos de construção da nação, presididos ou não por ideais multiculturais e de reconhecimento da pluralidade sociocultural no cenário contemporâneo, o recurso maior ou menor ao direito internacional e a presença de atores globais nas escalas locais e nacionais, entre muitos outros fatores, devem ser tomados, no plano analítico, enquanto partes dos processos de formação de Estado, em última instância de (re)construção de assimetrias. Isso significa também dizer que muitas políticas governamentais podem ter eficácia muito maior do que leis e que, embora não sejam concebidas para tanto, podem trazer alterações significativas na configuração estatal em uma dada quadra histórica sem, no entanto, adquirirem uma dimensão permanente – àquilo que o senso comum da administração pública tem chamado de políticas de Estado.

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    Os textos desta publicação lidam com as preocupações analíticas descritas anteriormente (e com diversas outras) de muitas maneiras. Foram escritos destinados a contextos diferentes e vão desde balanços de um campo de produção acadêmica até breves ensaios. Em comum, os capítulos da primeira parte da coletânea têm a presença de Antonio Carlos de Souza Lima como autor ou coautor, sistematizando reflexões na busca de uma antropologia dos processos de formação de Estado que se estendem desde a década de 1980 até o ano corrente. Reúne-se, assim, o produto de parcerias de interlocução sobre esse amplo espectro temático, que conta com muitos outros participantes além dos presentes e hoje se organiza entre outros espaços no GT Antropologia do Estado e das Instituições da Asociación Latinoamericana de Antropología (ALA).²⁰

    O primeiro capítulo, escrito por Carla Costa Teixeira e Antonio Carlos, foi fruto do convite de Luiz Fernando Dias Duarte, organizador do volume em que foi originalmente publicado para que os autores produzissem um balanço da produção acadêmica de 2000 a 2010 sobre o que Duarte apresentou como antropologia da administração e da governança. A partir de uma definição singular desses termos, leva-se a cabo uma análise em torno da institucionalização dessas esferas como cenários reflexivos no Brasil, sem, contudo, fixá-las como uma espécie de subdisciplina. A abordagem proposta situa essas definições como recortes teórico-metodológicos; sem cristalizar, portanto, os termos que gravitam nesse campo semântico. Trata-se, assim, de buscar uma compreensão das práticas de pesquisa antropológica em cenários que eram habitualmente tratados por outras disciplinas, sinalizando para uma postura singular em torno das possibilidades de pesquisa antropológica das práticas estatais.

    Em sentido análogo, mas agora lidando com a questão das políticas públicas – o Estado em ação na célebre formulação de Jobert e Muller (1987) – como via de acesso privilegiada para o entendimento do Estado desde um ponto de vista etnográfico, Para uma abordagem antropológica da(s) política(s) pública(s), escrito por Souza Lima e João Paulo Macedo e Castro, parte da constatação de que as ações de Estado assim formatadas nem sempre foram estudadas por pesquisas antropológicas do ponto de vista de seus formuladores e executores. Esse ponto seria especialmente importante porque, de diferentes maneiras, os antropólogos brasileiros ocuparam-se do estudo dos efeitos das ações estatais, sem se interrogarem mais sistematicamente sobre a natureza dessas políticas. Assim, de modo a formular uma mirada crítica, os autores constroem uma leitura antropológica das categorias das políticas públicas, apontando para as diferentes implicações das políticas desse tipo – seja enquanto subdisciplina, seja enquanto práticas da administração pública – para as pesquisas em antropologia.

    Os quatro textos que se seguem lidam com pesquisas na seara das ações de Estado para os povos indígenas, e de certo modo nos mostram os caminhos para a construção das propostas analíticas experimentadas de diferentes maneiras e em distintas composições na coletânea, sem qualquer pretensão a um papel modelar e escolástico.

    Reconsiderando poder tutelar e formação do Estado no Brasil: notas a partir da criação do Serviço de Proteção aos Índios e Localização de Trabalhadores Nacionais remonta argumentos da tese de doutorado defendida em 1992 no PPGAS do Museu Nacional e publicada posteriormente (SOUZA LIMA, 1995; 2018). Concebida como um estudo sobre processos de formação de Estado e do arcabouço de gestão das diferenças étnicas em uma coletividade surgida das invasões e conquistas europeias sobre os povos indígenas e seus territórios, procura focar não nas estratégias de luta desses povos, mas, sim, nas relações de poder que se exerceram (e exercem) sobre eles. Assim, o autor recupera, marcando ênfases, a implantação de uma agência de Estado sob o regime republicano para o exercício da tutela sobre um status os índios – juridicamente definido, tratando a tutela como uma forma de poder, diferente quer do biopoder, quer das disciplinas ou dos regimes de soberania. Souza Lima preocupa-se em descrever as práticas de poder do Estado republicano, realizando uma etnografia (e não uma história) de uma instituição, ainda que não abarque as estratégias de luta dos povos indígenas, e as tem em mente e se forjou na participação na cena do debate político sobre as ações indigenistas.

    A pesquisa acerca das ações de Estado sobre os povos indígenas ensejou a necessidade de refletir sobre uma dimensão anteriormente apontada, crucial a todas as administrações de Estados nacionais: como acumular conhecimentos, transmiti-los e formar quadros profissionais que desempenhem a função principal de manter e reproduzir desigualdade, mesmo quando aparenta destinar-se a mitigá-la. Tradições de conhecimento para gestão colonial da desigualdade: reflexões a partir da administração indigenista no Brasil busca entender como isso foi possível em um país que, seguindo o exemplo metropolitano português (em que as escolas coloniais, comuns em outros impérios coloniais, surgiriam sobretudo a partir do XIX), nunca teve processos de formação dos indigenistas. Para isso, o texto desloca a ideia de tradições de conhecimento e elenca uma série de saberes que refluiriam no exercício tutelar dos técnicos em indigenismo, um quadro existente no organograma da Fundação Nacional do Índio e que ao menos até 1985 não exigia nenhuma qualificação prévia.

    No capítulo Sobre gestar e gerir a desigualdade: pontos de investigação e diálogo, motivado tanto pela pesquisa sobre política indigenista quanto pelo diálogo com outros pesquisadores e no trabalho de orientação, Souza Lima aponta para múltiplas possibilidades de análise das práticas dos poderes de Estado no Brasil enquanto país de formação colonial. Seu ponto de partida é a constatação de que pensar em termos de processos de formação de Estado requer o tratamento de fenômenos de diferentes composições temporais e espaciais. É nesse cenário que a dinâmica do gestar, no sentido de dar forma e sustentar, e a do gerir, como possibilidade de administrar, dirigir e gerenciar, afirmam-se como possibilidades para descrever exercícios de poder: une-se uma dimensão pedagógica, que ensina a ser, àquela da vida cotidiana, das práticas administrativas que dão suporte a certa postura política.

    Notas (muito) breves sobre a cooperação técnica internacional para o desenvolvimento resulta do acompanhamento das políticas indigenistas do fim dos anos 1990 ao início dos 2000, em especial das grandes intervenções sobre o meio ambiente amazônico e as demarcações de terras indígenas, após a carta constitucional de 1988, e sobretudo após a Conferência das Nações Unidas para o Desenvolvimento e o Desenvolvimento Sustentável, realizada no Rio de Janeiro em 1992. Destaca um componente importante para os processos de gestão da desigualdade em países de passado colonial como o Brasil: a cooperação técnica internacional para o desenvolvimento, em especial no cenário de implantação do ideário neoliberal de redução do Estado. De cunho mais ensaístico, e pouco focado em aparência na política indigenista, o texto dialoga com as monografias geradas por pesquisas densas sobre a cooperação norueguesa (HOFFMANN, 2009), com a ação da Unesco na formulação das políticas para a juventude (CASTRO, 2009) ou a ação da cooperação alemã na política ambiental brasileira, em especial no tocante às terras indígenas (VALENTE, 2010).²¹

    Os capítulos que se seguem, de seu modo, atualizam algumas das questões destacadas nesse texto inicial, desafiando-as a partir de contribuições e preocupações analíticas próprias. No texto Políticas culturais como tecnologia de governo no Brasil (2002-2016), Caio Gonçalves Dias, utilizando-se da discussão foucaultiana em torno da governamentalização do Estado, apresenta algumas técnicas que ajudaram a compor as políticas culturais nos anos 2000. São elas: a mensuração, a normatização legal, a elaboração conceitual e o planejamento estratégico. Espraiando-se tanto para um registro de ações de governo para aquele das produções discursivas, o resultado central dessas técnicas acaba sendo a reprodução do modelo das políticas culturais como políticas públicas. Um lastro discursivo para isso é produzido a partir da perspectiva para cultura como direito, que se torna eloquente a partir da redemocratização. Esse ponto é condição de possibilidade para a solidificação das políticas públicas de cultura nos anos 2000.

    Pedro Gondim lida com o mesmo cenário a partir de outro ângulo. Em Planejar e participar: a área da cultura e processos de formação de Estado, analisa a elaboração do Plano Municipal de Cultura da cidade de Belo Horizonte. Sem um foco direto para o documento em si, Gondim interessa-se pelos diversos agenciamentos que fizeram com que seu processo de construção fosse possível. Tal fato significa não apenas certa mirada para cultura, mas também a operação de uma rede complexa de agentes e agências em torno do que deveria ser uma política municipal de cultura. A perspectiva etnográfica, desse modo, ajuda a complexificar o que se poderia analisar apenas como uma replicação local de preceitos nacionais. Ao contrário, mostrando que o plano é para a cidade em questão, mas também é produzido nela, o autor nos convida a analisar criticamente sua composição.

    Se a cultura se apresenta como esfera de interesse para atuação estatal, é pertinente apontarmos, ainda, para as diferentes atualizações cotidianas dos preceitos simbólicos que produzem os processos políticos que são condições de possibilidade das formatações estatais. Para isso, é necessário compor com produções simbólicas e pertencimentos que engajam e produzem sujeitos a partir da lógica estatal. Em Sobre ‘batalhas espirituais’: notas para a análise de religião e política no Brasil contemporâneo, Raquel Sant’Ana analisa a disseminação de noções, vocabulários e estéticas relacionados ao que se sistematizou como teologia do domínio e teologia da batalha espiritual como indícios da participação evangélica – grupo que a autora complexifica ao produzir análise etnográfica em vez de tomá-lo como dado – nos debates públicos. Utilizando-se de uma perspectiva explicativa que toma a guerra como parâmetro – em um movimento analítico que é também etnográfico –, a autora mostra como, nas batalhas espirituais, as esferas do político e do religioso se entrecruzam.

    Laura Navallo, por sua vez, analisa, em Hacer los lugares mágicos, a maneira como se faz Estado a partir da cultura não apenas no sentido de produzir atuações nesse campo em um sentido organizacional, mas também como estratégias simbólicas que afirmam certo território e população de uma maneira específica. A partir da investigação de um programa da secretaria de turismo de Salta (Argentina), com o sugestivo título de Lugares Mágicos, somos convidados à interrogação sobre as estratégias para a produção de um esplendor que o Estado constrói para imantar-se a si mesmo. Trata-se de um discurso com aspectos efetivamente afeitos à magia, que procura produzir crença na centralidade estatal tanto para seus habitantes quanto para agentes exteriores.

    As (autor)representações estatais têm, ainda, enorme importância para a construção do Estado como esfera autônoma, com um horizonte de produzir uma percepção de unidade. Para isso, são produzidas narrativas estatais que estão colocadas sobre reiterações de marcos. Isso significa a escolha de certos eventos, personagens, populações ou características como marca de certo caráter nacional, capaz de definir uma unidade territorial e comunidade. Ana Francesca Repetto Iribarne, em Prácticas fundacionales del Estado uruguayo: acción y gestión estatal sobre los pueblos indígenas en el siglo XIX, mostra como se construíram posicionamentos e gestões estatais específicos em torno das populações indígenas no Uruguai, que têm uma presença singular nas narrativas nacionais. Nelas, ainda no século XIX, marcou-se o país como uma espécie de território sem índios. Isso só foi possível, porém, com massacres e perseguições aos povos indígenas, produzidos por modalidades de gestão dessas populações – ainda presentes no país –, conforme um modelo que tinha ideais marcados por uma concepção dos povos indígenas como outros, inferiores e desiguais entre si. Esse processo, assim, é basilar na construção de uma imaginação nacional uruguaia na qual não se consideram os indígenas como agentes efetivos. Ao contrário, são construídos como uma moléstia, um entrave, algo que precisaria ser eliminado de fato para a construção da nação.

    Já o trabalho de André Borges de Mattos lida com representações e saberes de Estado em sentido análogo para outro recorte territorial. Em Estado e representação: práticas estatais e desenvolvimento no Vale do Jequitinhonha, mostra-nos como essas construções simbólicas têm historicidades que podem ser demarcadas a partir de sua efetividade contemporânea. É nesse sentido que, estudando uma região específica, o autor analisa como características afeitas aos contrastes e carências, observáveis ainda no século XIX, vão sendo pinçadas na composição de certa perspectiva para a localidade que embasa práticas estatais ao longo do tempo e também atualmente. Assim, narrativas de viajantes já apresentavam categorias que puderam ser retraduzidas em discursos contemporâneos, agora versados a partir da necessidade de desenvolvimento que passa por uma orquestração do Estado. Nesse processo, molda-se uma imagem da região e, ao mesmo tempo, forjam-se justificativas para práticas estatais, aliadas e perpetradas por grupos empresariais e elites locais, que identificam na região, caracterizada como carente e remota, uma espécie de campo aberto para intervenção e investimentos apresentados como modernizadores.

    A operação das práticas estatais, porém, está relacionada ao trabalho comezinho na administração pública – sem, naturalmente, encerrar-se nele. O funcionalismo público, assim, pode ser lido de maneira complexa, pois, se é um espaço onde as práticas estatais aparentam estar mais diretamente postas, nele também podem ser entrevistas certas reatualizações de suas dinâmicas. Opera-se, assim, o jogo da burocracia administrativa, que não está desligado de atuações privadas e práticas individuais, cujos preceitos estão em uma disputa sobre a qual incidem condições legais, sociais e políticas.

    É nesse contexto que podemos analisar a trajetória de Belisário Penna quando ocupou cargos mais baixos na administração da saúde pública. Em Belisário Penna e a burocracia sanitária na primeira década do século XX na cidade do Rio de Janeiro, Taiguara de Souza Moreira analisa a atuação do higienista na Diretoria Geral de Saúde Pública quando foi inspetor sanitário. Se a historiografia habitual tende a considerar as posições de mais prestígio ocupadas por Penna, Moreira mostra que sua atuação como inspetor foi de grande importância para a construção de sua própria trajetória; não como uma espécie de estágio inicial de uma conversão à grande missão de vida, mas como passos dados, na rotina de um funcionário comum, para a construção de seu destaque hierárquico.

    Por sua vez, Monique Florencio de Aguiar, em ‘Se eu pensar nisso, eu enlouqueço’: sofrimento psíquico na administração pública, faz uma reflexão sobre a maneira como as instituições estatais se produzem no cotidiano e, nesse processo, mostra a operação de práticas de poder ampliadas. Partindo de larga experiência de campo na administração pública – tendo ela própria sido funcionária do setor –, Aguiar analisa as práticas persecutórias no contexto do funcionalismo público. Elas estão ancoradas nas hierarquizações que conformam um controle cotidiano que, se está ligado a processos de poder que encontram expressões pessoais, também nos faz lembrar das formas políticas reais a partir das quais se faz Estado. Deixam-se entrever, também, os efeitos subjetivos de processos estatais.

    A partir dessas construções analíticas que lidam com o funcionalismo público, pode-se compreender que os cenários mais diretos de implementação da administração das burocracias estatais são pertinentes esferas para a produção analítica e reflexiva em antropologia. Elas certamente se colocam de modo mais contundente quando aliadas a processos que lidam com populações específicas, delineadas pela lente da alteridade.

    Raúl Alejandro Delgado Montenegro enfrenta essas questões em sua pesquisa etnográfica na Dirección de Consulta Previa (DCP), que pertence ao Ministério do Interior da Colômbia. Trata-se de escritório público que concede certificação de caráter etnicamente diferenciado a certas populações, de modo que se enquadrem em um regramento jurídico específico, cuja principal disposição é obrigar governos a consultar esses grupos étnicos sobre medidas, políticas e ações que possam afetar sua integridade cultural. Delgado Montenegro analisa detidamente o processo de composição de um documento, o "Certificado de presencia de comunidades étnicas en el área de proyectos, obras o actividades, interrogando-se sobre as diversas estratégias de aparente objetivação em torno da certificação. Observando as práticas cotidianas na repartição, assim é possível identificar a atuação de uma rede de especialistas que procuram incidir sobre as práticas de certificação. Nota-se, ainda, transformações institucionais produzidas por questões e políticas associadas à consulta, cuja operação não está distante de lógicas análogas àquelas de empresas privadas. Todo esse processo tem efeitos e produz assimetrias nas vidas das comunidades étnicas. As reflexões do autor estão compiladas no capítulo Certificaciones étnicas: una etnografía de la Consulta Previa en Colombia".

    Lidando com construções de alteridade em outro plano, Lucas Odilon, em Entre participar, representar e assistir: a trajetória de uma clínica jurídica para refugiados e imigrantes no Rio de Janeiro, faz uma reflexão sobre a maneira como refugiados estrangeiros são inseridos nas tramas estatais brasileiras. Suas observações são amparadas em trabalho etnográfico sobre as redes de proteção construídas no país, com especial atenção para o Centro de Proteção a Refugiados e Imigrantes (Cepri) da Fundação Casa de Rui Barbosa (FCRB). Com uma trajetória de duplo-vínculo, aliando pesquisa acadêmica e trabalho voluntário, Odilon analisa a gestão cotidiana do refúgio, mostrando as estratégias para a afirmação do Cepri como uma intuição sui generis, que com novas práticas no universo institucional do refúgio se formatou mais como representação jurídica do que como um trabalho assistencial. Nesse processo, foi necessário conciliar o idioma dos direitos com o idioma das relações pessoais, mas o autor nos aponta, afinal, que a mediação por instituições parece ser a lógica de construção da cidadania para sujeitos migrantes pobres, dando continuidade aos processos que sustentam a tutela dessa população no aparato estatal-burocrático.

    Em outro registro, mas ainda levando em conta regimes de alteridade que perpassam o regramento estatal, Cristiane Gomes Julião reflete sobre o estabelecimento da relação entre Estado e povos indígenas no Brasil a partir da visão do povo Pankararu. A autora aponta, no capítulo Direitos constituídos e reconhecidos, imagens do Estado. A ambiguidade das ações governamentais na visão do povo Pankararu, para a formatação de uma espécie de personalidade política do Brasil, visível na maneira como o Estado é apresentado e acaba interiorizado de maneira nem sempre refletida pelos povos indígenas. Com essa perspectiva analítica, a análise aborda duas situações: a preparação da I Conferência Nacional Indigenista entre os Pankararu; e o enfrentamento da pandemia de covid-19. Nessas oportunidades, a autora apresenta as duas contrafaces da personalidade política do Brasil: o mesmo Estado que se apresenta como garantidor de direitos e proteção é o que violenta e alija. Esse processo produz-se tanto pela produção de uma imagem estatal que acaba sendo introjetada pelos povos indígenas quanto pela articulação da malha da administração pública, a qual incide diretamente sobre seus cotidianos. E uma das ferramentas para tal são as esferas de participação, que acabam por colaborar para uma acomodação da percepção da personalidade política do país como algo estanque, pois são seus parâmetros que ditam os moldes da participação, aos quais os indígenas acabam – em processos complexos e de certa maneira violentos – tendo que se adaptar.

    Marcos Cristiano Zucarelli, a partir de trabalho etnográfico nas audiências de conciliação do Fórum de Mariana, analisa os efeitos políticos do tratamento local do desastre da Samarco. No capítulo Gestão do desastre: etnografia do processo de mediação entre agentes do Estado, mineradoras e vítimas em Mariana (MG), o autor mostra como, nas diversas disputas em torno do reconhecimento de direitos, operam as assimetrias já existentes nos jogos locais de poder. Nesse processo, em detrimento dos interesses mais diretos da população afetada, vê-se a operação de uma espécie de lógica empresarial de gestão de boas práticas que subsumem as perspectivas, os desejos e, por vezes, os direitos, das populações afetadas. A regulação do desastre adquire uma institucionalidade própria calcada no controle sobre a aplicação do direito que determina o alcance dos direitos dos atingidos. Estes últimos sujeitos sociais, assim, acabam sendo colocados em um processo cujos contornos são ditados pelos agenciamentos de grandes corporações financeiras e estatais.

    Por fim, um texto de nossa autoria encerra a coletânea. Sem que seja propriamente uma conclusão, acreditamos que trazer à baila reflexões sobre as relações entre antropologia e Estado no Brasil tem uma dupla tarefa. Primeiro, ajuda a compreender, em alguma medida, as condições de

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