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Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930)
Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930)
Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930)
E-book338 páginas21 horas

Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930)

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Sobre este e-book

O foco de atenção deste livro é o sudoeste paulista, mais precisamente as matas de Itapeva do século XVIII até 1930. As descrições das paisagens elaboradas por cronistas, sertanistas, soldados, técnicos, cientistas e clérigos, ao longo desses duzentos anos, deixaram entrever fragmentos de outros cenários, que revelaram tanto uma história pretérita, quanto um presente que não se queria ou não se conseguia ver. O objetivo do estudo é revelar e investigar essa sobreposição de paisagens.
IdiomaPortuguês
EditoraEDUEL
Data de lançamento23 de fev. de 2016
ISBN9788572168120
Paisagens sobrepostas: índios, posseiros e fazendeiros nas matas de Itapeva (1723-1930)

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    Paisagens sobrepostas - Dora Shellard Corrêa

    Introdução

    Este trabalho nasceu de um interesse suscitado durante minha pesquisa sobre o núcleo colonial Barão de Antonina. Na dissertação resultante deste estudo, indiquei que a interferência do Estado naquele espaço, redesenhando sua rede fundiária, estabelecendo um centro urbano e estradas, determinando o tipo de ocupação, sobrepôs à paisagem existente os traços de uma outra forma de ocupação. Durante o trabalho observei que a reconstrução da história pretérita da área, elaborada por técnicos em 1931, para explicar a paisagem que encontraram, não passava da projeção do presente no passado e da generalização de uma das concepções vulgarizadas na época sobre o processo de dilapidação das matas paulistas. Paralelamente, constatei – o mais grave – que, em 1935, a cobertura florestal do estado já havia se restringido a apenas 32% do que fora no início do século XIX.¹

    A imagem formada sobre aquela gleba, em 1931,² acentuava a existência de tocos e cinzas onde antes havia mata exuberante, milho, porcos espalhados nas clareiras, população doente, alheia ao que acontecia ao redor, fechada sobre si mesma. Segundo os técnicos, essa população invadiu a área quando ainda ali moravam os índios Caiuá, ingênuos, incapazes de transformar a paisagem e de viver sem a proteção de algum grande fazendeiro, de um padre ou do Estado. Tal descrição sugeria que a paisagem teria sido sempre transformada de modo rudimentar, a partir de uma relação quase puramente intuitiva do ser humano com a natureza inaugurada pelos índios e modificada parcial e rusticamente pelos posseiros.

    Frente a esse quadro, a colonização representava a modernização do cenário, a expressão de uma organização racional do espaço. Nas descrições dos técnicos de então, subentendia-se que a transformação da natureza não havia sido processada pelos índios, e que os posseiros tinham sido incapazes de valorizar aquelas terras. Em contrapartida, a colonização representava a valorização daquele espaço, explorando a natureza como riqueza. As madeiras mais nobres não seriam mais simplesmente queimadas, mas retiradas pelo colono, processadas pela serraria do núcleo e utilizadas na construção de casas, deixariam de ser apenas recursos para a sobrevivência, transformando-se, fundamentalmente, em mercadoria.

    Para reforçar a ideia de que a colonização significava a valorização e o embelezamento da paisagem, os técnicos retrataram as formas anteriores de transformação da paisagem sob uma ótica depreciativa, seja negando o processo de humanização, seja definindo-o como destruição. Uma história convincente, pois não se apoiava na mentira. Eles descreveram aquilo que estavam visualizando, só que omitiram a história da área, criaram a ausência, projetando o presente no passado. O objetivo de meu estudo foi, então, recuperar essas histórias e paisagens pelas descrições que as encobriam. Fazê-las emergir, como em pentimento. Eu me atrevo a esta analogia com a arte: o aparecimento de pinturas ou desenhos elaborados anteriormente, que ressurgem com o passar do tempo, pelo desgaste das tintas sobrepostas, em particular sob os vermelhos.

    O foco de atenção é o sudoeste paulista, mais precisamente as matas de Itapeva. No período colonial, essas matas abrangiam extensa área que ia do rio Itararé ao rio Taquari, na altura do atual município de Itaberá, quando ainda era espaço dominado e transformado pelos Guaianás³ e, posteriormente, pelos Caiuás. Na quarta década do século XIX, porém, essas terras começaram a ser apropriadas por paulistas e mineiros, e os índios foram empurrados para longe, escravizados ou assassinados. Desse processo de expansão da frente pioneira e retalhação dos solos e da cobertura vegetal que os revestia, preservou-se a mata localizada no rincão formado pelos rios Verde e Itararé, com aproximadamente 43.569 hectares, grosso modo as terras onde hoje estão os municípios de Itaporanga e Barão de Antonina. Criou-se ali, o aldeamento indígena de São João Batista do Rio Verde. Extinto o aldeamento em 1912, e com suas terras consideradas devolutas, embora já em boa medida apossadas por lavradores pobres, grileiros e fazendeiros, a gleba passou a ser denominada Fazenda dos Índios e, depois, Mata dos Índios. No final da década de 1920, o Estado conseguiu reaver 14.059,20 hectares, onde implantou o núcleo colonial Barão de Antonina, finalizando o processo de apropriação privada do que restava da Mata de Itapeva (ver mapa 1).

    Barão de Antonina localiza-se na depressão periférica, beirando a leste os campos de Itapeva. De altitude superior à dos campos, suas terras, que até o início do século XX eram cobertas por matas que se estendiam sobre os morrotes alongados, espigões e colinas, não passaram despercebidas por Saint-Hilaire quando, em 1820, atravessava a antiga estrada dos tropeiros em direção ao extremo sul do Brasil. Chamam a atenção dos viajantes que hoje transitam pelas estradas locais,⁴ talvez pela proeminência que o desmatamento proporcionou, os morros testemunhos e as cuestas que dividem essa região geomorfológica do planalto ocidental.

    Ali, onde seria instalado o núcleo colonial Barão de Antonina, havia em 1929 uma vegetação florestal característica de área de transição entre o clima subtropical e o tropical, onde grupos de araucárias crescem juntos com perobeiras e cerejeiras. Era também um espaço característico de

    Mapa 1: Estado de São Paulo e o sudoeste

    Fonte: Almeida, F. F. de. Fundamentos geológicos do relevo paulista, 1964.

    habitação dos Kaingang, que viam no pinhão um alimento importante. Suas terras apresentam qualidade variável, com manchas grandes de terra roxa a oeste, entremeadas de solos de baixa produtividade e altamente suscetíveis à erosão, em especial, nos atuais municípios de Barão de Antonina e Itaporanga. Nessa região predomina o clima subtropical mesotérmico, úmido, com estiagem no inverno e chuvas no verão o que, até o início do século XX, dificultou e muito o transporte da produção local pelas precárias estradas de terra. A área é cortada pelo Trópico de Capricórnio, cuja linha assinala até onde a lavoura cafeeira se aventurou (ver mapa 2).

    Mapa 2: Divisão geomorfológica do estado de São Paulo.

    Fonte: ALMEIDA, F. F. M. de. Fundamentos geológicos do relevo paulista, 1964. Desenho: Antônio Carlos Palácios.

    O período estende-se desde o início do século XVIII até 1930, quando foi criado o núcleo colonial Barão de Antonina. Três são os cortes, 1845, 1912 e 1930. Indicam momentos em que a condição da área é alterada, seja quanto à sua definição como sertão, ou espaço efetivamente dominado política e policialmente pelo Estado brasileiro, seja quanto à sua precisão jurídica, terra devoluta ou aldeamento indígena. Além disso, são momentos marcados por fatos que oficializam a redução de terrenos cujas matas eram utilizadas comunitariamente. Tal periodização não traduz ideia de evolução, ou progressão, na forma de produção do espaço ou de modos de produção. Na verdade, são datas assinaladas por ações violentas, porque indesejadas localmente, para mudar a forma de produção e a rotina dos habitantes dessas terras, os índios e posseiros.

    As datas não representam marcos estáticos que sinalizam a transformação da paisagem; alguns posseiros já conviviam, no sertão e no aldeamento, com os índios. Indicam, sim, que nesses anos criou-se uma descontinuidade na lógica de alteração desse quadro paisagístico, por força de atos de ordem jurídica. Procurava-se com eles viabilizar e impor uma forma de relacionamento do ser humano com a natureza diferente da existente ali. Essa intenção era intrínseca à proposição de civilizar os índios e efetivou-se com sua metamorfose em produtores de mercadorias e vendedores de sua força de trabalho, assim como com a conversão da terra e da natureza em itens comerciais.

    Entretanto, os cortes não revelam interferências do Estado, no sentido de apressar o processo em andamento, o qual indicava um futuro inevitável. O pressuposto da previsibilidade da história, neste caso, ludibria o pesquisador, impedindo sua percepção de fragmentos que anunciavam outros possíveis processos que a ação do Estado veio interromper. O sertão de Itapeva, na primeira metade do século XIX, e o aldeamento indígena de São João Batista do Rio Verde, na passagem para o século XX, estavam sendo invadidos e tomados por fazendeiros e lavradores pobres, que reduziram as terras então ocupadas pelos Guarani. Até 1930, muitos fazendeiros, negociantes e grileiros titularam porções da Mata dos Índios. No entanto, havia resistência interna a esse destino que se prognosticou e uma prática que pressagiava outra história. A ocupação das matas de Itapeva tomou vulto apenas quando o aldeamento foi criado, mas os índios Guarani só abandonaram São João Batista quando o governo os forçou a se transferirem para o Posto Indígena do Araribá. A Secretaria da Agricultura foi obrigada a reconhecer a existência dos antigos moradores da Mata dos Índios quando da instalação do núcleo colonial Barão de Antonina, em 1930, e a incorporá-los como concessionários.

    Este livro focaliza três questões centrais: quais foram as paisagens ocultadas nas descrições e que se almejava destruir com as intervenções na área; quais os processos sociais que engendraram as transformações dessas paisagens; e os impactos paisagísticos do desenvolvimento econômico pelos quais São Paulo passou ao longo desse período. Com uma economia considerada decadente no século XVIII, a capitania chegou ao século XIX apresentando um renascimento da agricultura de exportação e o finalizou com expressivo acúmulo de capital neste setor, base para sua industrialização no século XX.

    Uma das hipóteses que proponho é que as descrições de paisagens, sendo aqui tratadas como representação da realidade, pelo fato de serem construídas a partir do real, deixam entrever fragmentos de um quadro dissimulado, ou por um estranhamento ou pela necessidade de desconsiderá-lo. A outra hipótese é que o ritmo e a lógica de transformação da paisagem seguem rumos diferentes, conforme o cotidiano interno da área em sua relação com o que a rodeia. Não tenho aqui, como pressuposto, que os seres humanos lutam contra a natureza e que o ato de produzir um espaço próprio sempre implique destruição de um meio inerte. O que vejo é uma inter-relação que gera novas paisagens.


    ¹ Para uma quantificação do desmatamento c.f. o trabalho do engenheiro florestal Victor [197-].

    ² O núcleo colonial Barão de Antonina foi criado em 1930, mas os trabalhos de sua implantação só seriam iniciados em 1931, ano em que a gleba foi visitada por vários técnicos, que a descreveram em seus relatórios para a Diretoria de Colonização.

    ³ A denominação Guaianá para populações não Tupi remonta ao início da colonização portuguesa. Acredita-se que se referia a grupos de filiação linguística Jê e, muito provavelmente, Kaingang (MONTEIRO, 1992).

    ⁴ Por exemplo, a SP 258.

    História, meio ambiente e a mata de Itapeva

    Ao escrever sobre o núcleo colonial Barão de Antonina, chamou-me a atenção a história dessas terras e suas matas narrada, em 1931, por funcionários da Secretaria da Agricultura. O Memorial descritivo dos trabalhos de medição e levantamento procedidos na propriedade núcleo colonial Barão de Antonina, na comarca de Itaporanga, pelos engenheiros B. Pereira Barreto e Antenor Vasconcellos Barros, diz:

    A área ora medida faz parte integrante da antiga Fazenda dos Indios, que pertenceu primitivamente ao intrepido e notavel sertanista Barão de Antonina [...] Tendo sido ella doada pelo nobre varão ao Governo Imperial para aldear indios, na posse d’estes permaneceu por varias decadas de annos até que um dos governos passados, por medida administrativa ou de melhor catechese, d’ahi resolveu retiralos, por permuta para outra paragem que, a criterio do Governo melhor lhes convinha. Investidos na posse déssa imensa area de terra roxa (8 ou 10 mil alqueires de terra) toda coberta de extensa floresta virgem – pois os vestigios ainda existentes alli o atestam – os silvícolas nelas abandonados, sem conhecimento ou aptidão para o trabalho, foram admitindo outros habitantes, caboclos mineiros e paulistas, de cujo contacto elles pensavam tirar partido na exploração da terra doada e para maior facilidade de vida. Muito ao contrario, esses hospedes novos e estranhos para elles, para ahi entraram em busca de vida facil tambem no sertão e só exploraram a ingenuidade do selvagem a troco da rapadura e da pinga que lhes saíam da propria terra. Terra de indio, de doação do Governo, é terra cobiçada: para ahi se dirigiram então innumeras familias a cohabitar com o selvagem, pois não tinham que pagar fôro ou quaesquer impostos. E, tal o numero de novos habitantes, sertanistas destemidos – e façamos justiça – alguns trabalhadores, que dentro de poucos anos, a formidável floresta de perobal se abateu sob o guante do machado impiedoso do caboclo ardendo em chamas, nas negras queimadas de annos sucessivos, essa explendida reserva florestal que calculámos sem exagerar, em varios milhares de contos de réis de valor. E não se diga que em troca désta destruição periodica que até hoje sucede, se tenha acumulado alguma riquesa organizada ou economica para o Estado ou para eles caboclos [...] O caboclo lá está, pobre, habitando o mesmo rancho de palha primitivo, aferrado à rotina e creando alguns leitões, a sua unica preocupação [...] e as terras todas devastadas, em capoeiras baixas e esterilizadas".

    Segundo esta narrativa, antes da criação do aldeamento, aquela área era floresta virgem, uma paisagem natural. O Barão e o Estado surgem, assim, como os primeiros protagonistas da transformação daquelas terras. Suas mãos seriam os índios aldeados. Estes, porém, não ocupam nem mesmo o papel de coadjuvantes nessa história, pois conforme os técnicos, eram incapazes e preguiçosos para trabalhar, ou seja, para produzir mercadorias, assim como para decidir sobre o próprio futuro. Acabaram desqualificados como sujeitos de ações transformadoras. Já os caboclos representaram personagens centrais da destruição, agentes do atraso. Caracterizados como pessoas aferradas à rotina e ao passado, só conseguiam produzir um quadro paisagístico pobre, agravado pela técnica, aprendida com os índios, de atear fogo à mata e depois plantar no solo supostamente enriquecido pelas cinzas que ali restavam. Tal técnica seria, portanto, responsável pela destruição e pelo atraso. Na época em que se produziu esse relatório havia a consciência de que a cafeicultura e as ferrovias geravam intenso desmatamento. A justificativa propunha que se substituía a mata pelo valioso café ou, no caso das ferrovias, que propiciavam o escoamento do ouro negro e o acesso da mão de obra.

    No relatório de 1931 estão ao menos três ideias que ainda subsistem, particularmente no discurso ambientalista e em obras historiográficas. Primeiro, que sertão era mata virgem, paisagem não humanizada pelo dia a dia do índio; segundo, que uma técnica que fundia o conhecimento europeu com a tradição indígena,⁶ ao se expandir, acabou por se tornar uma das principais responsáveis pela destruição da cobertura vegetal de São Paulo; e, terceiro, que as terras devolutas abrigavam comunidades isoladas, com história e vida totalmente desvinculadas do que as cercava.

    Assim, recuei no tempo para reconstituir esse processo de desaparecimento da Mata de Itapeva, cuja área original ia muito além do perímetro do núcleo colonial Barão de Antonina. Focalizei o processo social, que explica o desaparecimento dessa mata. Não me ocupei em mapear sua diminuição, delimitar ou calcular o percentual perdido anualmente, mas em entender como índios e posseiros habitavam a área e transformavam a paisagem, assim como em analisar e datar esse processo.

    Diante da documentação, constatei que os testemunhos colhidos no período entre o século XVIII e o ano de 1880 não observavam a mata em particular; ela era apenas mais um dentre os vários elementos na formação da paisagem que ilustrava os fatos e as avaliações. Não representava um problema em particular das fontes que haviam sido arroladas. Somente no final do século XIX, o meio ambiente e a vegetação em especial se transformariam em ponto central de atenção para o Estado e seus técnicos. Foi quando surgiram organismos, como a Comissão Geográfica e Geológica de São Paulo, com a finalidade de estudar, pesquisar e classificar o meio físico, a fauna e a flora paulistas. O que havia até então eram ofícios e relatórios semelhantes aos da Diretoria Geral dos Índios, artigos narrando expedições de exploração como aquelas financiadas pelo Morgado de Mateus em 1770, ou pelo barão de Antonina, por volta de 1845.

    Também procurei, por meio dessas descrições de paisagem, camufladas em ofícios, que tratavam de outros assuntos como, por exemplo, o relato da invasão das terras do aldeamento de São João Batista do Rio Verde, encontrar dados que revelassem o desaparecimento da mata.

    A Geografia é uma das ciências que trabalha com a ideia de paisagem. Entretanto, sua definição remete a um objeto que não é intermediado por documentos nem por outro tempo histórico: ele é presente. Já entre o historiador e a paisagem que ele retrata estão o cronista – com seu tempo – e o próprio tempo presente do pesquisador, visões de mundo que condicionam o que se enxerga e o que não se nota. A percepção do mundo passa pela intervenção e pelos olhos do cronista, filtrada por seu tempo, reelaborada no espaço que medeia o ato de ver, de sentir e de registrar por escrito. No geral, a história acaba trabalhando com os apontamentos e a memória de uma paisagem. São raros os casos em que o ver é acompanhado simultaneamente pelo ato de escrever ou de pintar. E, ao analisar seu registro, o próprio historiador não deixa de projetar sobre ele estruturas paisagísticas e questões de seu tempo, que interferem na percepção de alguns detalhes.

    Paisagem é uma elaboração intelectual. Elementos reais-concretos visualizados, identificados e interpretados são organizados e apresentados na forma de uma descrição, uma pintura, um cenário, uma fotografia. Na elaboração desse quadro, entram não apenas materiais nos quais facilmente se consegue distinguir a representação do representado, como, também, juízos de valor, mitos antigos e necessidades presentes, que determinam a seleção e a organização das matérias que compõem a paisagem. Tais condicionantes podem ser inconscientes – pelo fato de não ver – ou conscientes, pelo fato de querer omitir por se considerar irrelevante, ou por necessidade. Desse modo, a representação contém mais do que o representado, não podendo ser encarada como um simples reflexo.

    Limitar-se a enumerar as árvores existentes, os animais e as áreas agrícolas não torna, portanto, o trabalho mais objetivo quando se reconstrói uma paisagem; isso ocorre pelo testemunho, quando se capta e se explica a seleção e a ordenação realizadas. Esse entendimento será obtido relacionando-se o selecionador e organizador daqueles dados ao seu meio concreto, à sua classe e ao seu objetivo. Ao se reconstruir uma paisagem, abrangendo seu movimento, não há como fugir das representações que lhe dão forma, e é preciso superá-las pela crítica para se divisar o real. Embora meu objetivo não seja discutir a elaboração de uma representação da realidade, mas chegar o mais próximo do concreto, a análise parte dessa representação.

    Segundo Henri Lefebvre, a representação é uma mediação entre o real e o pensamento. Como tal, não é falsa nem verdadeira, sendo ambas ao mesmo tempo na medida em que parte de problemas concretos, mas esconde seus objetivos reais. Nesse sentido, nas descrições de paisagens podem ser encontrados elementos da realidade ao mesmo tempo em que se oculta um mundo que causa estranheza, que não se consegue ou não se quer ver. Muitas vezes, apenas se focaliza aquilo que interessa. São imagens que um grupo, um povo ou uma classe tem de si mesmo e impõe para o resto da sociedade, procurando, por meio delas, perpetuar uma dominação. A paisagem como expressão da ação do ser humano sobre a natureza é o símbolo do pretenso domínio e da pretensa superioridade de uma sociedade ou de uma classe sobre o mundo natural.

    A representação engloba a ideologia e, embora ambas tenham suas raízes no vivido, não devem ser confundidas. A ideologia é uma construção muito mais consciente e faz parte de uma tática de ação, enquanto a primeira está incorporada a uma estratégia inconsciente de domínio. A força de ambas está no fato de deitarem raízes no real.

    As representações possuem distintas genealogias, algumas são engendradas pelas relações sociais e pelo modo de produção, outras vêm de mais longe, oriundas de sociedades anteriores, de religiões, de mitos. No estudo da paisagem, essa genealogia é muito marcante: a questão da descrição das áreas de matas como vazias, escuras e amedrontadoras remete o pesquisador para as origens judaico-cristãs da sociedade nacional. Já a qualificação da lavoura do milho como constitutiva de uma paisagem decadente remete ao presente, à grande lavoura mercantil – o café para exportação – servindo a uma ideologia.

    O interessante na crítica de Henri Lefebvre (1983) é que, diferentemente dos idealistas, ele vislumbra a possibilidade de transcender a alienação promovida pela representação. E aqui ele se afasta de outros pensadores marxistas como Lucien Goldman (1972), ou Agnes Heller (1984), que discutem a consciência possível, a factibilidade de se atingir o concreto eliminando os juízos de valor inerentes ao trabalho do pesquisador, uma vez que ele é um ser que vive em determinado tempo e espaço social. A superação dessas subjetividades acontece via consciência de si. Lefebvre fala na consciência possível, pela qual o historiador jamais atinge um estágio de pureza do pensamento que lhe possibilite chegar à essência do objeto, mas apenas aproximar-se dela, vislumbrá-la. É pelo pensamento crítico que se relaciona a representação ao seu suporte social, que se retira dela o seu poder. Ou seja, partindo dela própria se chega à sua superação.

    O filósofo francês discutiu o conceito, Sérgio Buarque de Holanda (1976; 1994) apresentou a prática do trabalho com a documentação. Embora este não tenha nada relacionado à proposta teórico-metodológica de Henri Lefebvre, indica um caminho para efetivá-la. O elo entre esses dois intelectuais é que tanto em um como em outro as representações têm suas raízes no vivido e não na abstração pura. E estando o presente grávido do futuro, como escreveu o historiador brasileiro, o futuro para ambos só existe como virtualidade.

    Em Visão do Paraíso, Sérgio Buarque de Holanda (1992) explorou de forma magistral como a história deve trabalhar com as descrições de paisagem, mostrando a influência de motivos edênicos originários da Idade Média nas descrições de cronistas europeus que chegaram ao Brasil por volta do século XVI. Sintetizou a concepção de realidade e rigor nas descrições daquela época com os juízos de valor e as próprias situações concretas dos momentos em que os cronistas entraram em contato com aquela paisagem tropical – fases de maior ou menor calor após viagens prolongadas e as decorrentes deficiências vitamínicas dos viajantes. Em contrapartida, ao analisar esses dados à luz de aspectos particulares da mentalidade portuguesa, menos idealista que a espanhola, ele explicou o porquê dessa visão do Brasil como o Paraíso.

    Ao abordar os mitos da conquista que imperaram na América, particularmente aquele que afirmava ser aqui o Paraíso, Buarque de Holanda afirma que os cronistas se prendiam sobretudo às contingências históricas, o que explica a diferença entre os delírios da imaginação nas colônias espanholas e no Brasil. As atenuações plausíveis do mito original nada tinham a ver com características étnicas e sim o peso do saber racional sobre essas ideias. Esse saber se impôs com a revolução científica do século XVIII, criando um clima que inviabilizou a continuação de alguns delírios da imaginação típicos do início da era moderna, fazendo desbotar-se ou alterar-se uma fantasia, herdeira de tradições milenares. Sérgio Buarque defendeu que os mitos não são eternos, dando lugar a outros, ou são prolongados intencionalmente por algumas pessoas. Observou ainda que nem todas as descrições de uma paisagem edênica foram motivadas por espíritos profundamente religiosos, podendo encobrir apetites demasiadamente profanos de um especulador de terras ou engajador de braços. Mas a utilização desses motivos é indicativa de sua força. Não só podiam ser prolongados como também forjados na medida em que sua utilização tinha uma finalidade consciente de dominação. Essas considerações de Sérgio Buarque de Holanda levam-no a questionar se no livro A marcha para o oeste de Cassiano Ricardo, alguns mitos que rondavam a ideia de sertão até o século XIX não teriam sido reproduzidos nesse momento.

    Se em Visão do Paraíso pode-se encontrar uma inspiração para se analisar as representações, em Caminhos e Fronteiras, Monções e Extremo Oeste o autor indica uma via para se trabalhar com a documentação quando se quer superar tais representações: aboliu o documento e elegeu o fato como meio de pesquisa, destruindo a ordem até então existente. Ele emancipou-se de seu testemunho, sem abandoná-lo, por meio de sua decodificação, a partir da constatação que o levou a selecionar e a estabelecer um determinado arranjo aos acontecimentos e aos fenômenos registrados. Desfazendo a organização primitiva dos textos-fonte, pela união de dados que se encontravam espalhados em testemunhos de vários tipos, ele cria um novo documento para o leitor sem destruir os originais, que não se perdem do contexto em que foram gerados. Dessa forma, em contraste com uma historiografia que acentuava a superioridade tecnológica dos europeus sobre os índios, Sérgio Buarque de Holanda mostrou que ela de nada valia num meio tropical, e que os paulistas

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