Sombras Do Velho Mundo
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Sombras Do Velho Mundo - Wagner S.g. Azevedo
1
SOMBRAS DO VELHO MUNDO
Wagner S.G. Azevedo
2
PRÓLOGO
3
- Você não entendeu nada não é ? Seu velho metido!
O cheiro de saúde pública barata disfarçada com desinfetante adulterado inundava
o quarto. Do outro lado da porta, o vai e vêm de pessoas e o som das rodas enferrujadas
das macas que iam sendo encostadas corredor afora. O falatório descumpria toda e
qualquer regra de conduta de um hospital que se preze. Era mais um amontoado de
funcionários desmotivados em condições precárias de trabalho.
Fontes jazia num dos quartos somente devido sua recém alçada condição de sub-
celebridade na cidade. A visão da belíssima mulher de pé encostada à sua cama, foi um
dos melhores despertares de que ele podia se lembrar em toda a sua vida. Somente a
esmagadora dor no abdômen foi capaz de trazê-lo de volta à realidade.
- Manu? É você? - balbuciou enquanto suas pupilas adaptavam-se à escultura viva.
-Você não me procurou – respondeu ela. - Acho que agora você deve ter uma
noção de como isso foi uma tremenda idiotice da sua parte.
- Eu...eu não estou entendendo. O...onde estou? O que aconteceu?
- Você está numa espelunca que por aqui chamam de hospital, mas eu não ficaria
muito empolgada se fosse você. Já vi chiqueiros mais limpos do que isso aqui. O que
aconteceu, é que você e o seu amiguinho cismaram de bater de frente com alguém muito
mais punk
do que vocês pensavam.
- Parada, o que ouve com ele?
- Morto.
- Como?
- Como? Ora vocês dois sabiam que estavam indo atrás não de alguém perigoso,
mas de alguma coisa
perigosa. Tão perigosa a ponto de acabar com a raça daquele
traste e de quase te mandar dessa para melhor. Ou vocês dois achavam mesmo que toda
essa marra de Clint Estwood tupiniquim ia ser suficiente para pegá-lo?
A consciência ia e vinha como um carro teimando em não pegar no tranco. Fontes
via a silhueta da mulher ao seu lado e podia ouvir claramente a sua voz. O contexto
daquela visita é que não fazia o menor sentido para ele.
- E a garota? - perguntou Fontes tentando se levantar da cama, mas percebendo
que seria uma tarefa impossível.
- Opa opa, calma lá cowboy – mandou Emanuela enquanto o segurava na cama.
Não deixe as coisas mais difíceis do que já estão para você. Trate de ficar quietinho aí.
Tem tanta coisa espetada em você que é capaz de arrancarem o seu coro inteiro se você
quiser se levantar.
4
- A garota. Você não me respondeu.
- Morta também. Mas, não por ele.
- Como assim?
- Descanse. Tem muita coisa que você precisa ficar sabendo e do jeito que você
está...
- Cale a boca sua maluca! Não me trate como um moleque. Eu sei muito bem o
que aconteceu naquele lugar. Eu sei que nós quase o pegamos, e ela estava lá, viva!
Tudo...tudo foi muito truncado, estranho, mas eu sei que nós estávamos perto, eu...eu
podia ouvi-la. Eu a vi! Eu...aiiiii...
- Eu já disse para você tentar descansar. É a barriga, não é?
- Não é da sua conta. Quem a matou?
- Fui eu.
O mundo deu mais uma giradinha. O cheiro de creolina invadiu suas narinas.
Desmaiou.
- Está melhor agora?
- Vai se ferrar!
Manu estava sentada ao seu lado na cama, segurando uma tigela de sopa que
pacientemente ia dando para Fontes. Ela apenas deu um sorriso de indiferença e
continuou a servi-lo. O ritual durou uns dez minutos. Fontes rompeu o silêncio.
- Desculpe. É que agora eu começo a me lembrar de tudo, de toda a ação, mas...
- São os analgésicos. Te deram uma dose cavalar. Além dos ferimentos por tudo
que aconteceu, parece que as notícias sobre sua doença não são nada positivas.
- Do que você está falando?
- Ok Fontes – disse Manu retirando o prato de sua frente e colocando-o de volta na
mesa. - Vamos parar de enrolação. A operação foi um fracasso, como eu já sabia. Mais
uma garota morta e seu parceiro inconsequente deve estar chegando nesse exato
momento nas portas do inferno. Você está aqui, nesse fim de mundo, morrendo sobre
uma cama de hospital de quinta categoria, enquanto lá fora ele está solto e próximo para
outra. Deviam me agradecer por ser só ele. A garota em pouco tempo estaria igual ou pior
do que ele.
- Você a matou? Por que?
- Porque ela já não era mais a mesma pessoa. Ele a transformou. Assim como a
outra que você...cê sabe. Sorte que você não terminou o que ela começou, senão...
Fontes enrubesceu e virou o rosto para a janela.
5
- Ela me hipnotizou, sei lá.
O perfume de Manu o entorpecia. Fazia-o se sentir no meio de um sonho de ópio
ou de alguma outra droga com o mesmo poder alucinógeno. Sua boca próxima a ele,
movia-se graciosamente destacando os lábios nem muito carnudos nem muito finos. Era
uma bela mulher, sem dúvida, e com um mistério excitante em suas palavras.
- Mas, você disse que a outra o que? Se transformou? No que? Num cadáver?
Manu balançou a cabeça afirmativamente.
- Sim, e ao mesmo tempo não.
- Dá para você ser mais específica, pois se ele a transformou a ponto de você ter
que matá-la, sendo que ela já estava morta, ou eu estou doidão de tanto remédio que me
deram, ou você é quem deve ter fumado uma pedra.
- Uma vampira. Ele a transformou numa vampira.
- Ora vá se ferrar – disse Fontes começando a arrancar os fios ligados em seus
braços e peito. - Você vem até aqui para me falar uma asnice dessas? Porra, vampiros!
Vai me dizer que ele é quem, o Conde Drácula?
Emanuela abriu a bolsa e pegou um cigarro.
- Posso? - perguntou ela levando-o a boca.
Fontes deu de ombros. Ela acendeu e deu uma longa tragada.
- Não, ele não é nenhum conde. Esqueça tudo o que você acha que sabe sobre
vampiros. Ele é diferente.
- Olha Manu, eu não quero ser grosso com você. Eu confesso que quando te vi
parada aqui no canto do meu quarto, pensei que estava sonhando. Não sei se era efeito
dos remédios, mas acho que você passou um bom tempo aqui comigo e eu te agradeço,
de coração mesmo. Agora, se você quiser me ajudar mais um pouquinho, seja uma boa
menina e me ajude a sair daqui que eu tenho alguns traseiros para chutar.
- Não estou pedindo para você acreditar Fontes. Só estou dizendo o que ele é.
Assim como você não quer acreditar que tem um tumor enorme corroendo suas tripas
nesse exato momento em que conversamos, você tem o livre arbítrio para crer ou não nas
minhas palavras.
Fontes pôs a mão na testa e se jogou de volta no travesseiro. Estava ficando tonto
novamente.
- Você viu meus exames – murmurou ele. - Como é que você sabe?
- Não vi nada Fontes, eu simplesmente sei, assim como sei que você não tem mais
nem um mês de vida pela frente.
- Ah, você também é adivinha?
6
- Não, apenas sei. Você quer me ouvir ou não?
Admitir que Manu estava certa era um golpe fulminante, mas a dor que sentia era
incrível, mais forte que todas as outras crises que tivera. Sabia que ia morrer, mas não
queria admitir que seria tão rápido.
Não podia ser!
Enquanto falava Emanuela parecia hipnotizá-lo. Em outras circunstâncias já teria
vazado dali e a deixado falando sozinha. Estava farto de toda aquela loucura e só queria
terminar o que porcamente havia iniciado.
Mas alguma coisa dizia, lá no fundo da sua alma, para ouvi-la.
- Prossiga – respondeu ele socando o ar. – Só não esqueça que nós sabemos que
você estourou a cabeça do filho da da mãe.
- Então me escute, seu velho tinhoso. Ele já se safou de coisas bem piores. O que
nós estamos procurando está por aí há um bom tempo, no mínimo uma centena de anos
e sabe muito bem o que quer. É muito mais violento que qualquer outro da sua espécie e
sua sede de sangue não conhece limites. Pode andar de dia e de noite por aí, mas
prefere a noite, por deixá-lo mais camuflado.
Fontes ouvia o relato de Manu tentando conectar toda aquela fantasia surreal com
o que realmente havia acontecido.
- Tem o poder de transformar outros em criaturas iguais a ele. Foi o que fez com
Ana. Infelizmente eu tive que pará-la.
- Como?
- Arrancando sua cabeça. É a única maneira de pará-los.
- Highlander? - ironizou Fontes.
- Você vai me ouvir ou não?
- Desculpe. Continue.
- Ele não segue um padrão, não tem um plano. Vive apenas um dia após o outro,
na ânsia de satisfazer seus instintos. Não vai parar, é quase impossível pará-lo.
- Isso que eu ia te perguntar, Dona Van Helsing. Você arrancou a cabeça de uma
pessoa, o que não é uma tarefa das mais agradáveis, nós dois temos que admitir, mas
não conseguiu deter o chefão porque?
- Como eu disse, ele é muito poderoso, talvez o mais forte que sua descendência já
gerou. Sozinha eu não tenho chances. E acredite, eu já tentei muitas vezes.
O choro de um recém-nascido atravessou as paredes do quarto e desviou a
atenção dos dois por uns instantes. Fontes ponderou por alguns minutos tudo o que Manu
estava dizendo. Mesmo não fazendo muito sentido para ele o fato de estarem atrás de um
7
vampiro, tinha que admitir que alguns detalhes eram semelhantes nos crimes. A
decapitação era uma constante, já que todas as garotas tiveram o mesmo fim.
Só agora ele se deu conta do seu estado. Estava bastante machucado, com um
corte enorme atrás da cabeça, que deve ter levado no mínimo uns quinze pontos.
Somando com os vinte e sete de sua adolescência, era bom ir se conformando em nem
pensar em ficar careca.
O braço esquerdo estava enfaixado do cotovelo até o ombro. Não tinha dúvida de
que era um ferimento à bala. Só não conseguia saber se ela ainda estava dentro dele. As
duas pernas estavam enfaixadas e amarelas de tanto iodo. Pela ardência corrosiva que
estava sentindo, quase certeza de terem sido queimadas em grandes proporções. Sua
cabeça doía mesmo chapado de analgésicos, e seu ouvido esquerdo talvez nunca mais
voltasse ao que era antes.
Mas o crítico mesmo eram as dores na barriga. Os médicos logo que o receberam
ministraram uma boa dose de morfina devido aos ferimentos, e era ela que estava
mantendo-o ainda consciente. Descuidara de sua saúde num momento crucial onde uma
devastadora doença o comia vivo por dentro. Manu estava certa. Para ele era o fim da
linha. Mas também não dava para acreditar em toda aquela história. Para ele, Manu
surtara de forma irreversível por ter perdido sua irmã.
- Sinto muito Manu – disse ele arrancando de vez o soro, e a fiação dos aparelhos.
- Sei que foi um choque para você o que aconteceu com a sua irmã..
- Ela não era minha irmã. Não de sangue.
- Que seja, mas mesmo assim deve ter sido doloroso para você e o resto da
família. Mas você tem que concordar que essa sua história é um pouco demais, não é?
Ora, vampiros são personagens de ficção, folclore. Todo mundo sabe que esse tipo de
coisa não existe. Você deve ter misturado as estações. Muitas vezes, um trauma como
esse, de perder um ente muito querido, nos faz viajar na maionese.
- Eu preciso da sua ajuda Fontes. Ele quer você, virou um assunto pessoal. E eu o
quero pelo mesmo motivo.
Fontes estava começando a se vestir quando o médico entrou no quarto. Ficou uns
segundos parado na porta, olhando para ele e aquela mulher maravilhosa. Ao bater seus
olhos nos de Emanuela, simplesmente esqueceu o que viera fazer ali. Não conseguia
desviar os olhos e um enorme estímulo sexual percorreu suas veias descendo espinha
abaixo até a ferramenta.
Manu fez apenas um gesto de mão e ele saiu da sala, sem se desculpar e
fechando a porta logo em seguida. Muitos anos depois, Dr. Rodcley ainda se lembraria da
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noite em que sonhara com a mulher mais bonita que já vira em toda a sua vida. Saiu do
hospital e foi rua afora, para casa.
- O que foi que você fez? - perguntou Fontes calçando os sapatos. - O homem
pareceu que viu um fantasma.
- Quem sabe – disse Manu remexendo novamente sua bolsa.
Ao procurar sua arma, Fontes se deu conta de que a tinham levado. Show
-
pensou ele. Sem arma e todo quebrado. Quando se virou para pegar o resto de suas
coisas e dar o fora dali, viu na sua cama um envelope que não estava ali antes.
- O que é isso? - perguntou ele? - Alguma espécie de paga estilo Os Sopranos
?
- Abra. - telegrafou Manu.
Ao puxar o conteúdo do envelope, uma revoada de pássaros nervosos levantou
voo em sua barriga. O quarto inteiro deu um looping e ele teve que se encostar nas
grades da cama para não se estatelar no chão. Um jato de vômito veio em sua garganta e
voltou. Um ódio voraz o fez ranger todos os dentes a pontos de esfarelá-los.
- Miserável! Não pode ser! Onde você encontrou isso?
- Desculpe – murmurou Manu. - Estava jogada no cativeiro da última garota.
Consegui pegar antes dos policiais. Sinto muito.
- O que vamos fazer? - perguntou Fontes. - Sendo assim, não tenho outra
alternativa.
O mundo ainda girava. O efeito dos remédios conseguia ser pior do que as dores
na barriga. Estava fraco, tonto e totalmente desorientado. Recebera o golpe final e já não
tinha mais forças para revidar.
- Estou acabado – continuou. - Mas tenho que pegar esse desgraçado.
- Por enquanto, descanse Fontes. Já é noite e você precisa se recuperar um pouco
mais. Eu volto amanhã e a gente pensa em alguma coisa.
- Amanhã? - gritou ele. - Amanhã eu posso estar morto moça. Você sabe muito
bem o que eu tenho dentro de mim, estou condenado. Do jeito que estou me sentindo,
não aguentaria dar dois passos do lado de fora naquele corredor.
- Apenas deite-se, ok? Tente descansar um pouco. Você ainda está muito fraco.
Amanhã eu volto.
E enquanto ouvia as notas harmoniosas da voz de Manu, Fontes olhava em seus
olhos, sendo levado por uma sensação de desgarramento da realidade. A voz de Manu
ficava cada vez mais fraca e ele se deu conta de que estava apagando de novo.
No meio da noite acordou. Estava ainda entorpecido, as imagens se sobrepondo
9
em sua cabeça. Sentiu o cheiro, sentia a sua presença. Fechou os olhos e decidiu se
desligar de tudo.
O vento produziu um leve farfalhar das cortinas do quarto. Abriu os olhos num
reflexo.
Mal teve tempo sequer de gritar.
Emanuela estava por cima dele na cama, cravando os dentes em seu pescoço.
10
PARTE 1
CARNEVALE
11
Um mês antes...
11
Ele sabia que podia fazer o que quisesse a hora que bem entendesse. Ela já
estava dominada, totalmente entregue à sua luxúria e loucura infernal.
Já não bastava mais simplesmente saciar sua fome. Tinha agora uma chaga
herege brotando em sues pensamentos. Tinha que causar furor, espanto, horror e ódio.
Tinha que ser pior que as quatro bestas do apocalipse juntas. Não era voz nenhuma, não
era nada que os malditos homens de jaleco branco respingado de sangue tentariam
explicar nos tablóides.
Era puro ódio e desprezo pelo arcabouço humano.
Um urubu pode enxergar um inseto de apenas alguns milímetros à centenas de
metros de altura. Um tubarão sente o cheiro de uma única gota de sangue na água a
quilômetros.
Ele podia sentir os batimentos do coração dela, batendo em seus tímpanos num
crescente excitante e doentio. Houve tempos em que tentaria afastar a tentação, domá-la,
extingui-la.
Como foi tolo!
Suas mãos eram seu instrumento de caça e de doutrinação. Ao mesmo tempo em
que dilaceravam, purificavam. O sangue era a comunhão de êxtase ensandecido e
ancestral maldição.
Já não ouvia mais seus gritos, suas súplicas. Rasgava a carne com os dentes e
mãos.
De vez em quando, parava um pouco para contemplar sua presa. Ficava
admirando sua pele, seu cheiro...seu gosto!
Num golpe decepou a cabeça. Um pequeno fiapo de nervo resistiu ao golpe, mas
por pouco tempo. Se algum desavisado passasse naquele momento, teria o músculo
cardíaco paralisado diante de cena tão aterradora.
A lua ocultava-se de vergonha, nenhuma cigarra ou qualquer outro animal notívago
ousou se manifestar perante ao espetáculo de sangue e entranhas.
Ele se jogou no chão, ali mesmo, e começou a fazer flexões. Dez, vinte, trinta,
cinquenta, cem! Era forte, extraordinariamente forte. Os candomblistas diriam que ele
estava incorporado
.Os cristãos, possuído
. Os ateus, dopado
.
Levantou e voltou para o carro. Ligou o cd player. Abriu o porta-luvas e tirou uma
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caixa de lençoes de papel e começou a esfregar automaticamente um por um em seu
rosto. Não adiantou. O sangue estava seco e colado nele.
Olhou no retrovisor interno e viu sua cara manchada com sangue coagulado. Sorriu
para si mesmo enquanto passava a língua numa borra mais escura.
Deu a partida e saiu sem olhar para trás.
O corpo de Cinthia foi encontrado desmembrado em um matagal próximo à
Registro no Vale do Ribeira, às margens da BR-116. Sem qualquer registro de
desaparecimento anterior e de envolvimento com crimes e uso de drogas e álcool, Cinthia
não atendia ao celular, mas supostamente foi a autora de mensagem de texto enviada de
seu aparelho para parentes durante o período do seu sumiço.
No comunicado via SMS, afirmou estar bem
, em Registro, e prometeu explicar
tudo ao regressar para casa, segundo revelou a sua irmã adotiva ao registrar o boletim de
ocorrência de desaparecimento. Porém, não houve volta.
O encontro do corpo frustrou qualquer possibilidade de a vítima contar o que
aconteceu.
Sua cabeça fora seccionada do tronco, com tal violência que a perícia achou
pedaços de sua coluna vertebral espalhados num raio de dez metros. Seus braços e
pernas foram igualmente arrancados, num ápice de fúria semelhante ao ataque de um
animal selvagem do porte de um urso. E o mais estranho: Seu corpo, ou o que restava
dele,estava sem uma só gota de sangue.
Os exames realizados com os vestígios encontrados na cena do crime, deixaram
as autoridades mais confusas ainda. O assassino não existia. Em outras palavras, não foi
possível nenhuma identificação positiva. Nada foi encontrado em nenhum banco de
dados, nem mesmo da polícia federal. Não havia suspeito.
A identificação feita posteriormente pelo pai da vítima revelou que Cinthia Alegrette,
era estudante de enfermagem em Santos, e que estava noiva de um famoso herdeiro da
construção naval, com casamento marcado para dali dois meses.
A polícia suspeitou que ela fora sequestrada na saída do curso e por quinze dias
não obteve notícias suas, nem contato de sequestradores, nem pistas de seu paradeiro.
Por pura sorte, seu corpo foi encontrado por um errante conhecido daquelas paragens.
Mesmo com todo arsenal econômico da família do noivo, o caso estava parado por
total falta de evidências. A polícia estava atônita e a mídia como sempre, só deu atenção
por uma semana. Ninguém suspeitava que aquela morte era só a primeira de uma série
13
brutal que estava por vir.
Carnaval é uma festa que se originou na Grécia em meados dos anos 600 a 520 a.C..
Através dessa festa os gregos realizavam seus cultos em agradecimento aos deuses pela
fertilidade do solo e pela produção. Passou a ser uma comemoração adotada pela Igreja
Católica em 590 d.C.. É um período de festas regidas pelo ano lunar no cristianismo da
Idade Média. O período do carnaval era marcado pelo adeus à carne
ou do latim "carne
vale dando origem ao termo
carnaval".
http://pt.wikipedia.org/wiki/Carnaval
14
Uma faísca na luminária bem em cima da sua mesa, deu o start em tudo. O reator
da lâmpada fluorescente entrou em curto-circuito e um cheiro forte de Ampere tomou
conta do ambiente. Um monte de otários, como ele mesmo recordou mais tarde, ficou
olhando para a luminária de duas lâmpadas de trinta watts cada uma, sem se dar conta
de que o fogo já estava começando no forro de material sintético.
Uma colega um pouco mais iluminada foi quem percebeu que o fogo já havia
começado, já que os alarmes anti-incêndio e os funcionários pertencentes à brigada de
incêndio, nem se deram conta do perigo. Quando finalmente uma alma decidiu subir em
uma das mesas e afastar a placa sintética do forro, foi que todos viram que a merda já
estava feita. A labareda já lambia mais umas três placas à direita e alastrava-se rápido.
A correria foi geral na divisão de homicídios do xxDP em São Paulo. O prédio
construído na década de cincoenta, embora tivesse passado por algumas reformas
durante seu ciclo de vida, como toda repartição pública que faça jus ao nome, carecia de
elementos básicos de segurança. Por exemplo, o já citado sistema de alarme de incêndio,
não foi acionado automaticamente, e quando um dos investigadores tentou acioná-lo pelo
sistema manual, percebeu que não funcionava. Dos três extintores do primeiro andar,
onde o fogo começou, dois estavam totalmente vazios, e o de espuma química, mais
apropriado para o tipo de chama que se espalhava, estava vencido havia um bom tempo.
Constatou-se mais tarde também, que a inspeção periódica dos bombeiros expirara
meses antes, o que justificava em parte a obsolescência dos extintores do primeiro andar.
Se não fosse seu Damião, o porteiro do prédio ter vindo lá do térreo com um extintor, e o
mais óbvio saber manuseá-lo corretamente, o estrago seria bem maior. Damião chegou
gritando para os curiosos de plantão e os que já começavam a entrar em estado de
choque, se afastarem que ele sabia o que estava fazendo. Subiu na mesa bem debaixo
das placas que já estavam crepitando e acionou a válvula disparando um certeiro jato de
espuma na labareda. Firmou a direção do jato com bastante firmeza, o que surpreendeu
aos poucos que assistiram a cena, pela tenacidade de um homem quase
septuagenário.Bando de boiolas
, pensava ele enquanto acabava com o último foco de
menor intensidade.
Quando os bombeiros chegaram, nada mais precisava ser feito. Seu Damião,
cabra da peste de Campina Grande já tinha dado conta do recado. O senhor moreno
franzino e de mãos ásperas e judiadas pela labuta para criar oito filhos e ainda mais uns
três netos, fizera tudo certinho. O fogo se extinguira, bastando aos bombeiros apenas
verificar se tudo estava mesmo acabado, e dar umas boas broncas nos nós cegos que em
15
vez de ajudar seu Damião, bateram em retirada como se o apocalipse bíblico tivesse
começado.
- E aí Boi Loco, coisa foi aquela lá dentro?
- Boi loco é a tua mãe filho da p...
Odiava o apelido. Era o tipo de alcunha vitalícia que desde a escola primária o
perseguia. Anacleto, o dono do bar, sabia disso e soltava pela dentadura rachada, a
mesma piadinha quase todo dia, alisando o cabelo grisalho cheio de gel barato e óleo de
cozinha para trás.
- Desestressa Fontes. Desse jeito, qualquer dia desses a tua bombinha de sangue
aí do teu peito vai cobrar toda a pururuca que tu come aqui.
Ele fuzilou Anacleto com os olhos, terminou o café com leite que estava tomando,
colocou uma nota de cinco reais no balcão, virou-se e saiu bufando do bar.
Boi loco é o c...
Ninguém sabe ao certo quando O Mal
chegou em nossos domínios. Alguns
determinam que foi nos primórdios do descobrimento do Brasil, tendo chegado junto com
os Europeus que por aqui aportavam. Outros acreditam que ele já estivesse enraizado
nas almas de nossos ancestrais indígenas desde o início dos tempos.
Há relatos de um certo Juvêncio Batista, marinheiro de um dos navios que
chegaram em São Vicente, litoral de São Paulo poucos anos após os pioneiros, de
estranhos acontecimentos durante a viagem e depois que se estabeleceram em terra
firme.
Nessa carta endereçada aos seus superiores em Portugal, diferente de outras
missivas que eram enviadas ao Velho Mundo, ele não exalta as belezas tropicais que
tanto embasbacaram seus patrícios, mas, prende-se ao relato de fatos bizarros que
aconteceram na região em que se estabeleceram. Juvêncio cita, por exemplo, a morte
misteriosa de colegas que eram encontrados sem uma única gota de sangue em seus
corpos. Os que sobreviviam, passavam a ter comportamento violento e macabro, segundo
ele, como se estivessem possuídos pelo Demônio em pessoa.
Segue um trecho que pode ser considerado como o mais tétrico, retirado de uma
das últimas cartas que Juvêncio enviou. Ele mesmo não regressou jamais à terra natal.
Toda sua tripulação desapareceu.
Agradeço ao Professor de História Dalton Trevisan, amigo de longa data, pela
adaptação ao português moderno:
16
Daqueles que tiveram contato com os nativos e seus deslumbres com nossa
cultura, Malheiros era um de meus amigos mais fiéis. Pois que um dia lançou-se em abrir
trilhas para avanço de nosso grupo até uma pequena elevação próxima à praia, porém
com mata muito alta. Trabalho de poucas horas para ele e seus ajudantes, mas que
jamais foi finalizado, pois ele e toda a sua equipe desapareceram na primeira noite.
Pegamos nossas armas e nos embrenhamos mato a dentro em busca de nossos
companheiros por três dias seguidos mas nada encontramos. Nem sinal de Malheiros.
A notícia se espalhou entre os nativos, que demonstraram temer o que quer que
tivesse acontecido e se recusavam a participar das buscas, o que acarretou o castigo
físico de alguns mais salientes. O líder da aldeia na qual estávamos, através da sua
linguagem tribal, tentava nos alertar sobre algum tipo de entidade, pelo que entendemos,
que teria levado nossos amigos e que se eles voltassem, teríamos que matá-los, pois "O
Mal" teria os dominado.
Na quarta noite de busca, uma tempestade se aproximava pela garganta da
entrada da baía de São Vicente. Os nativos estavam em polvorosa. Os mais exaltados
estavam arredios e não queriam socializar mais conosco, alguns tornando-se agressivos,
sendo necessário a utilização de força para controlá-los. O suposto feiticeiro que eles
chamam de Pajé, entoava cânticos e apresentava claros sinais de estar em algum tipo de
transe. Toda a atmosfera na praia levava a crer que algum evento muito significante para
eles, estava prestes a acontecer naquela noite.
Valha-me Deus eu não tivesse presenciado os fatos que se sucederam...Ouvimos
gritos de dentro da mata, gritos de desespero que pareciam ser de algum animal, uma
onça talvez que estivesse atacando algum dos nossos homens ou algum nativo.
Nem onça, nem nenhum outro animal poderia ter feito com nossos companheiros o
que presenciamos. Dos quatro homens que acompanhavam Malheiros, encontramos
vivos e totalmente apáticos apenas ele mesmo e João Praieiro. Estavam próximos a uma
gruta que parecia escavada na rocha havia muito tempo atrás.
Nos aproximamos, eu o Xavier e o Bento Figueira, os únicos que tiveram coragem
de me acompanhar, de nossos amigos. O cheiro de sangue e podridão que vinha do
interior da gruta, nos fez vomitar quase que nossas tripas inteiras. Uma estranha
luminescência vinha do seu interior, coisa que passou despercebida logo que chegamos
no local, mas que mais tarde chamou minha atenção. Uma fraca mas persistente
ondulação luminosa, que parecia se afastar da entrada da gruta, em direção às suas
profundezas.
Deixei de lado essa constatação e empenhei meus esforços na ajuda de nossos
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compadres. Malheiros estava jogado coisa de uns três metros da entrada da gruta,
ensanguentado, com várias partes do corpo machucadas e uma enorme mordida de
algum animal no pescoço. Parecia morto, estava frio e sua pele arroxeada, mas
continuava respirando. Logo que me inclinei para lhe prestar ajuda, me agarrou peço
pescoço com muita força, proferindo palavras que não conseguia entender, mas que
julguei que fossem delírios devido sua condição física.
De João Praieiro pouco havia restado. O pobre homem tivera suas entranhas
expostas de maneira tão violenta, que presumimos ser imensa a fera que provavelmente
os atacou. Talvez uma pantera faminta que topou com eles durante uma de suas caçadas
noturnas. João agonizou até o último suspiro ali mesmo e nada fizemos que pudesse
ajudá-lo.
Ordenei aos dois que me acompanhavam que levassem Malheiros de volta à praia,
pois eu queria dar uma olhada dentro da caverna para ver se havia algum sinal dos outros
homens, pois embora eles não tivessem compartilhado da minha visão, eu tinha certeza
que tinha visto algo como uma luz de uma tocha vindo de lá de dentro. Peguei uma das
tochas, saquei minha faca e entrei.
O ar úmido enregelava meus ossos assim que comecei a caminhar dentro da gruta.
Seu teto começava baixo na entrada e aos poucos ia se expandindo conforme eu
avançava. A fraca chama da minha tocha ameaçava a todo instante se apagar, mas a
vontade de saber o que realmente havia acontecido era mais forte no meu espírito.
O cheiro ruim de carniça aumentou quando alcancei o que parecia ser uma espécie
de salão, muito mais amplo do que o caminho pelo qual eu vinha percorrendo .Levantei a
chama para tentar ver mais detalhes e constatei que este ambiente demonstrava ter sido
construído para alguma espécie de culto pagão.
Respirava com dificuldades, o ar estava bastante rarefeito naquela câmara. Vi ao
fundo o que parecia ser um santuário, com diversas imagens de divindades. Me aproximei
para poder distinguir melhor do que se tratava e pisei no que logo constatei ser o que
sobrou de um dos parceiros de Malheiros. Seu tronco estava separado da cabeça. Os
olhos ainda abertos numa expressão de horror, que...óh Deus, ate hoje em meus sonhos
teima em aparecer. A boca retorcida e o lado esquerdo afundado, o que me fez acreditar
que a Besta que o atacou, matou-o de um só golpe.
O pânico começava a me desesperar e virei-me em direção à saída para me ver
livre de uma vez daquele buraco maldito. A luz da minha chama revelou-me então, mais
uma parte do teatro de horrores em que eu havia penetrado
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Aí, infelizmente o manuscrito fica muito deteriorado sendo impossível sua leitura.
Presumimos que a visão de Juvêncio deva ter sido perturbadora, mas não temos
evidências claras no texto. Fica claro, porém, que ele encontrara Malheiros e o resgatara
com vida. Por sorte, o trecho mais adiante pôde ser recuperado em suas partes mais
importantes. Juvêncio relata a singular recuperação de Malheiros.
(…)
E eis que nosso amigo sai da sua cabana, totalmente curado. Nenhuma marca no
corpo, apenas dois dias depois de o encontrarmos semi morto com a garganta dilacerada
e sem uma gota de sangue. Os índios não se aproximavam dele, diziam que O Mal
havia dominado sua alma e que devíamos sair dali o quanto antes.
(…)
Malheiros não conseguia suportar a luz do sol e não se alimentava com nada(...)Os
animais mortos despertaram a atenção de todos no acampamento. Muitas carcaças
dilaceradas por todo lado(...)
(…)
Dois dias depois, dois índios foram atacados por ele e tiveram o pescoço
dilacerado por mordidas bestiais. Na tentativa de fuga, os próprios índios o mataram, mas
mesmo assim só quando sua cabeça foi separada do corpo...
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Capítulo 1
Os solavancos do ônibus só pioravam seu ânimo. Estava visivelmente contrariado
com a situação que o chamava até o litoral, ainda mais por não poder ir com o seu carro
que estava na oficina. Com a cabeça colada na janela, olhava os pingos da chuva que
caíam como uma ducha de lava rápido naquela noite.
Odiava viajar de qualquer meio de transporte que não fosse seu carro. Detestava a
ideia de uma outra pessoa guiando seu destino através de um volante com meia volta de
folga, embreagens gastas e freios no osso. Que desgostosos funcionários voavam a 120
km por hora com a sua carcaça entregue às leis da física.
Também não gostava de viajar de avião, pois mesmo sabendo que se a aeronave
caísse - tudo bem, vamos todos morrer mesmo – achava um saco andar feito um
retardado pelos corredores do aeroporto, pedindo informações sobre plataformas,
portões, bagagens, e outras palhaçadas. Ficava emputecido sempre que pedia um
cafezinho na lanchonete antes de embarcar e lhe cobravam o preço de uma saca de café
Colombiano.
Ladrões
Tinha também a opção de alugar um expresso luxo, mas considerava quase um
estupro o preço praticado pelas associações de táxi. Resolvera pegar um ônibus de linha
e pagava agora o preço pela teimosia. A limpeza do carro não era definitivamente um
ítem de destaque naquela linha e o cheiro do banheiro demonstrava que a viagem poderia
ficar mais infernal a cada minuto submetido àquela bacia de mijo ambulante.
Algum idiota algumas poltronas para trás, contracenava uma irritante D.R.
com o
que devia ser sua namorada. Os casados já não discutem tanto pelo celular. É a única
coisa boa do silêncio frio e implacável que recai em todos os relacionamentos. Quando o
telefone de um homem casado toca, ele tem certeza de que do outro lado haverá alguém
lhe pedindo para passar na padaria, ou pegar as crianças na escola, ou que ele esqueceu
de pagar alguma conta. Já não há mais a preocupação neurótica da traição até por
pensamento. Só o gelo de dois indivíduos que se suportam.
Não se considerava a última bolachinha do pacote da divisão de crimes especiais,
mas alguém que, ou gostava muito dele ou o odiava, o designara para aquela missão. Um
crime de sequestro, assassinato e esquartejamento de uma jovem do litoral de São Paulo
que estava dando o que falar na imprensa e ao mesmo tempo ameaçando derrubar
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alguns figuraços da polícia.
Passado um pouquinho dos cinquenta, o investigador Fontes não era o que se
podia chamar de queridinho dos colegas. Sua obsessão em desvendar casos que para
muitos eram insolúveis, havia lhe dado certa notoriedade na instituição, mas também
despertara todo tipo de sentimentos negativos por parte de alguns.
Ele não dava a mínima. Dois casamentos desfeitos, uma filha que nem se dava ao
trabalho de saber se ele ainda estava vivo e trinta anos de serviço depois, não seriam
umas fofoquinhas de alguns idiotas que iriam incomodá-lo.
Sentada ao seu lado, uma cheirosa garota de no máximo uns vinte anos, contribuía
para que ele não conseguisse pregar o olho. Ele não era nenhum Brad Pitt, mas também
não se considerava acabado. Os poucos fios grisalhos que começavam a brotar na
cabeleira castanho-claro que ele mesmo dizia que nunca o deixaria careca, já que seus
dois avôs morreram cabeludos, combinados com olhos verde sacanas, que mudavam de
cor conforme o tempo, indo do verde cheguei quando estava nublado até o verdinho meio
marrom em dia de sol, ainda chamavam a atenção. A barba grisalha e por fazer, no estilo
George Clooney fechava o pacote.
Mas no escuro do ônibus, tais atributos não iriam fazer muita diferença. A gatinha
ao seu lado mexia freneticamente no seu smartphone, o que fez Fontes concluir que
somente um deus grego tiraria sua atenção do facebook.
Ele amaldiçoou mentalmente Mark Zuckerberg, Steve Jobs, Bill Gates e todos os
gurus da tecnologia que transformaram a paquera de uma complexa atividade carnal a
uma simples façanha virtual. Ajeitou o antebraço direito no apoio central e ela deu um
pulinho como se uma corrente elétrica tivesse a atravessado. Ela puxou o braço e se
encolheu, evitando tocar no desconhecido. Ele se remexeu novamente, numa tentativa
muda de dizer:
Hey gatinha, eu não sou nenhum velho tarado que gosta de se roçar em donzelas
indefesas
Mas na verdade, gostara de sentir depois de muito tempo, um contato feminino no
seu corpo, mesmo que fosse roubado. Os pelinhos do braço dela nos dele, surtiram um
efeito revigorante que percorreu todo o seu organismo como uma droga recém
administrada.
Fechou os olhos e a imaginou pulando para cima dele e entrelaçando seus braços
ao redor do seu pescoço. Ele a trazia para bem perto dele, e sentia os seios pontudos
encostando em seu peito. Via-a abrir sofregamente a boca, ansiando por sua língua e ele
sem hesitar grudando seus lábios nos dela por longos minutos.
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Escorregava as mãos pelas costas dela, até apertar firme sua bunda, fazendo-a
dar um gemidinho alucinante.
Abriu os olhos e os faróis dos carros em sentido contrário batiam nas gotas de
chuva grudadas na janela, gerando um efeito ótico que o entretinha enquanto sua mente
ia e voltava no tempo. Um outro passageiro falava no rádio, bem baixinho e pela hora que
era, parecia estar discutindo ou com o chefe. Outro, que devia ter programado o
despertador para não dormir e passar do ponto, teimava em não desligar a função
soneca, mesmo depois de ter acordado.
O busão fez uma curva desconcertante à direita, passando por baixo da ponte
Mario Covas rumo à São Vicente, parando logo em seguida no trecho entre o bairro
Cidade Náutica e a entrada da Praia Grande. Ali, graças as trocentas lombadas na pista
no trecho de São Vicente, o fluxo de veículos sempre tende a parar, indo se arrastar até a
entrada da Praia Grande, onde o prefeito tem um pouco mais de massa cinzenta e brigou
por um complexo viário decente. Viu que ficariam presos ainda um bom tempo por ali.
Um dos passageiros comentou que naquele trecho, infestado de zumbis do crack
,
era costume jogarem pedras nos veículos para que ao pararem sejam assaltados. Fontes
levou inconscientemente a mão até a cintura. Sua arma não estava ali, havia guardado na
mochila que estava aos seus pés. Ficou mais tranquilo com a verificação e olhou pelo
vidro para ver se via algum zumbi se aproximando.
O mais engraçado, observou ele, é que estavam construindo um centro de
convenções bem onde os viciados desfilavam dia e noite em busca de droga. Bem onde
muitos motoristas eram assaltados em plena luz do dia. Bem onde o cheiro de merda
parecia chegar até os céus e incomodar os anjos.
Sua parceira de viagem se despediu e com um tchau
meio de canto de boca, e
ele teve a certeza de que suas chances de conseguir ao menos um número de telefone
ou o id do facebook dela, iam por água abaixo assim que ela se levantou para descer.
Sem outra alternativa, fez um muxoxo e aproveitou para se alastrar para o banco ao lado.
Percebeu que sua bunda também já não aguentava mais viajar de ônibus.
Capítulo 2
O investigador Fontes entrou na polícia em 1978, logo após sua saída da
aeronáutica. Podia ter ficado na força aérea, já que gozava de boas relações com alguns
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oficiais, especialmente um major do qual ele era ordenança. Já não ralava mais como um
reco. Tinha mordomias que lhe permitiam por exemplo, ter um horário flexível que
dependia geralmente da hora em que tinha que pegar a esposa do major para levá-la ao
mercado.
Ela era uma loiraça de uns trinta e poucos anos que se fazia de durona, mas que
com o passar dos dias foi se afeiçoando àquele rapaz atencioso que servia de capacho e
motorista para ela. É lógico que logo logo um idiota qualquer iria achar chifre em cabeça
de cavalo naquela estória.
Um fofoqueiro qualquer , como era o caso da maioria dos recos do quartel, diria em
alto e bom som que Fontes estava afogando o ganso
na patroa do major. É difícil se
esperar bondade de julgamento de pobres coitados que passavam o dia ralando na
educação física ou na faxina.
Um dos recos, um loiro com a cara que parecia um Chokito de tanta espinha,
gostava de pentelhar Fontes no chuveiro, sempre depois da física, dizendo que talvez ele
chegasse a general, se continuasse enfiando a baioneta na esposa do major. Na última
chuveirada em que teve a oportunidade de soltar mais uma vez essa gracinha, ficou cinco
dias em off com dois dentes a menos.
Mas embora a boataria fosse frequente, o relacionamento dos dois não passou
disso. O medo mais que o respeito, suprimiu toda e qualquer possibilidade de
assanhamento entre os dois, e ambos souberam manter seus brinquedinhos bem
guardados.
Sua rotina era como mencionado, pegá-la por volta das 09:30hs para ir ao
mercado. Voltavam lá pelas 11:00hs, ele a ajudava a descarregar as compras e sempre
tomava um cafezinho na varanda da casa do major, que ficava dentro do quartel, na
chamada Vila dos Oficiais.
A empregada olhava de rabo de olho aquele frangote todo cheio de marra, e
suspeitava que a patroa lhe dava bola demais. Mas, como prudência e caldo de galinha
não fazem mal a ninguém, ficava na sua. Conversavam sobre tudo um pouco e ela
gostava daquele rapaz metido , mas gentil às vezes.
Ele tinha uma maneira peculiar de contar piadas, algumas até pesadas, que a
faziam corar de vergonha ao mesmo tempo em que se estatelava de rir. Um homem que
sabe fazer uma mulher rir desta maneira, tem meio caminho andado para sua cama, mas
isso, como já dito, estava totalmente fora de questão.
Ao meio dia e meia, levava as duas filhas do casal para a escola e passava em
casa para almoçar. Dona Vera, sua mãe, sempre desconfiava do que será que o filho
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havia feito para tanta moleza.
Às duas horas voltava para o quartel para buscar Vivian (esse era o nome dela...)
para levá-la ou à ginástica, ou à praia com as amigas, ou seja lá onde. Sempre a
esperava no carro, mas às vezes a espiava de longe, principalmente quando iam até a
praia. Ela parecia saber que o garoto a espiava e não economizava nos trejeitos, caras e
bocas. Seu cabelo ao vento e o esbranquiçado das ondas bombando o horizonte, faziam-
no rezar para chegar logo em casa e homenageá-la no box do banheiro.
Pontualmente às cinco estavam de volta, a tempo dele ir buscar as meninas na
escola e estar de volta perto das seis, quando o major chegava em casa.
Algumas vezes chegava até a jantar com eles, coisa da qual Vivian e o major
gostavam muito, por mais que ele se sentisse deslocado. Major Leal gostava muito dele.
Não sabia porque, mas sentia uma admiração muito grande por aquele moleque
reservado e inteligente que dizia que queria ser piloto de helicóptero. Vez ou outra, ia
buscá-lo para dar umas voltas no danado.
Quando Fontes às 18:00hs de uma sexta-feira disse ao major que ia dar baixa
porque estava apaixonado e queria se casar, o velho fez de tudo para segurá-lo.
Ofereceu-lhe uma promoção para cabo na hora e sargento dali a dois anos. Nada o
segurou.
O coração jovem e idiota de Fontes o arrancou de uma promissora carreira como
piloto da força aérea, para um casamento que durou apenas enquanto durou o mesmo
que uma temporada de verão. A diferença entre a teoria acadêmica e a aplicação prática
pode às vezes ser enorme.
Teve sorte que o velho, para tentar amenizar sua burrada, lhe deu duas cartas de
recomendação que ele poderia levar à polícia ou bombeiros, com a certeza de emprego.
No início resistiu à ideia de continuar usando uma farda em pleno período de ditadura,
mas quando a fome apertou, não teve escolha. Ingressou na polícia.
Trabalhou durante um bom tempo nos órgãos de repressão política, mas se
orgulhava de nunca ter desaparecido com ninguém. Sabia dos excessos cometidos pelos
porões da ditadura, muitos até merecidos, segundo ele, mas escapara ileso de toda a
podridão.
Depois da anistia, sua seção
encerrou as operações e seus membros foram
designados para outras operações. Fontes seguiu seus instintos e logo tratou de arrumar
um cartucho na polícia civil. Era muito bem relacionado graças ao seu bom desempenho
e naquela época, cega dedicação, não sendo difícil realocar-se dentro da máquina
coercitiva. Foi remanejado como investigador de uma equipe que estava nascendo
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naquela época, a seção de crimes especiais.
Entenda-se como especiais
, uma espécie de balaio onde eram jogados todos os
crimes mais bizarros e sanguinários que acontecessem. Toda a sorte de assassinos
seriais, maníacos, estupradores e vermes da sociedade, escorriam para essa vala comum
onde poucos se arriscavam.
Fontes encaixara como uma luva nessa nova facção. Com o passar dos anos, sua
sensibilidade que já não era lá essas coisas, foi diminuindo a níveis irrisórios. Seus
métodos pouco ortodoxos de investigação e seus interrogatórios relâmpagos, fariam as
atuais organização pró direitos humanos atuais se arrepiarem até os últimos fios de
cabelo, mas na época eram a alegria de seus superiores.
Boi Loco
, era como ficou conhecido na imprensa, apelido descoberto por um
repórter que vasculhara toda a sua vida desde os tempos de escola. A reportagem sobre
o super investigador contava que quando colegial, o garoto Roberto Fontes Serra era
exímio espancador de coleguinhas indefesos, habilidade que o acompanhou também na
adolescência, quando era expulso de bailinhos por quebrar a cara de meio mundo. Seus
porres homéricos também faziam a alegria dos fotógrafos.
Ele odiava publicamente o apelido, mas no fundo sentia uma ponta de satisfação
em ser temido pela vagabundagem. Era fã de superstars da agressividade policial como
Conte Lopes, Telhada e outros comandantes da polícia militar que vibravam na mídia e na
política.
Fontes pensava em quem sabe enveredar também na busca de uma cadeira
legislativa. Quem sabe, pensou melhor, essa bucha que haviam jogado agora no seu
colo, não o catapultava para uma bem sucedida disputa pela vereança.
Não poderia sequer imaginar as proporções que este caso tomaria em sua vida.
Para ele, seria mais um onde um retardado anti social estaria por trás. Ele contava com
isso, tinha um faro aguçado para isso. Não sabia explicar bem o porque, mas sabia que
podia contar com uma espécie de sexto sentido que o acompanhava desde pequeno.
Era difícil alguém ou alguma coisa se esconder dele por muito tempo. Sempre
acabava achando objetos, animais de estimação, quantias em dinheiro que familiares ou
conhecidos haviam perdido.
E no caso de pessoas que teimavam em se ocultar havia um agravante. Isso o
deixava possesso e obcecado, muitas vezes acarretando atos violentos de sua parte
quando alcançava seu objetivo. Sentia o sangue ferver nas carótidas, a raiva aflorava por
todos os poros do seu corpo, como um predador que não desgruda do rastro da presa,
enquanto não a tem entre os dentes.
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Colegas mais inspirados, diziam que de Boi ele não tinha nada. Pela maneira como
sentia o cheiro de sangue, estava mais para Chacal.
Capítulo 3
As largas avenidas de São Paulo pouco mudaram na opinião do assassino,
enquanto ele escorregava pela 23 de Maio rumo ao litoral, desde que ele começou a
matar, coisa de uns dez anos atrás.
Naquela noite em especial saíra cedo de casa. Não havia conseguido dormir a
noite toda, nem a anterior, nem as quarenta anteriores, nem as quatro mil. As vozes e a
depressão que desde pequeno o acompanhavam, haviam ficado mais fortes. Os remédios
não davam mais conta do recado, e a sua mãe...bem, a sua mãe que tanto tentou lhe
ajudar na sua doença do espírito, antes dela mesma sucumbir e se entregar às drogas,
ele matara e enterrara já havia bastante tempo.
Na época foi um escândalo na cidade."Alcoólico mata esposa, atira em filho e
depois se suicida" eram as headlines dos jornais. A mulher foi encontrada na porta do
quarto com três tiros no peito, e o único filho do casal de apenas onze anos, ao seu lado,
também baleado de raspão na cabeça. O pai estava sentado em frente à televisão, com a
cabeça explodida por uma calibre doze.
No acesso à rodovia Imigrantes, a SUV zerada começava a levantar voo e seu
coração acompanhava a aceleração da máquina. O sol da manhã iluminava seu rosto e
um observador externo alheio aos seus pensamentos, diria que ali ia um sujeito feliz da
vida e de bem consigo mesmo. Exatamente como ele se sentia. Fazia o que gostava e
era bom naquilo.
A polícia acreditava em tudo que ele dizia, desde aquele dia em que sua paciência
com as bebedeiras do pai acabara de maneira drástica. Não foi difícil acabar com ele e
com aquela filha da puta que gostava de apanhar e o maltratava por causa daquele
bêbado asqueroso.
Mas mãe, eu não quero ficar no meu quarto. Eu quero ver televisão com você..
Mas ela tinha que se arrumar, se maquiar, se enfeitar para aquele verme. As mãos
também tremiam, porque ele...ora, ele conseguiu viciá-la também. Aquela mulher linda,
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sua heroína que ia buscá-lo na escola com lindos vestidos e cabelos loiros ao vento,
agora era uma carcaça devorada pelo álcool e o crack. Ele fizera isso. Ela gostara!
- Bom dia – disse ele à mocinha no caixa do pedágio.
Ele tinha as mangas da camisa arregaçadas e a gravata puxada para o peito.
Olhou atentamente para a garota sorridente e retribuiu o cumprimento.
cala a boca moleque e vai já pro seu buraco
As surras, as internações, as idas e vindas na casa de parentes de mentira que
também o odiavam, as troças dos moleques da rua, o falatório das