Quem Sabe Uma Outra Face
De Moisés Silva
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Quem Sabe Uma Outra Face - Moisés Silva
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[ 2 ]
Prólogo
Acho que o que nos prende à vida é o medo da morte. Não
acredito que todos gostem de viver. Quem gosta de chorar, ou
sentir dor, ou até mesmo sangrar? Ninguém, reafirmo. Existe
muita coisa nesta vida que a gente suporta somente pelo medo
que temos da morte. Mas não eu. Não consigo acreditar que a
morte seja tão ruim assim como dizem. Como algo que traga o
fim de todos os seus problemas pode ser considerado ruim?
Como ser transportado para um local onde você não terá
escolhas e consequentemente não poderá errar, pode ser
considerado mau? Sei que nem sempre errar é ruim; às vezes é
até bom. É bom aprender com eles. Nos tornam maiores, quem
sabe até melhores; mas claro que não é o meu caso. Eu errei e
hoje pago um preço caro. Perdi meu futuro pensando muito no
passado e hoje não tenho nem sequer um presente. Choro
sempre, é mais forte do que eu, e sei que ninguém pode me
salvar. Não quero que ninguém me salve. Decidi não viver. Que
minha futura amiga, a morte, me encontre. Já não vivo mesmo.
Por que não acabar logo com isso?
[ 3 ]
Dedico a todos que querem abraços. Podem vim me
abraçar.
4
"Se eu morrer novo,
Sem poder publicar livro nenhum,
Sem ver a cara que têm os meus versos em letra impressa,
Peço que, se quiserem ralar por minha causa,
Que não se ralem.
Se assim aconteceu, assim está certo."
Alberto Caeiro
CAPITULO 1
Por quê?
Eu ouço isso com bastante frequência hoje em dia, no início eu me
importava, hoje não me importo mais. Não que eu esteja em
condições de me importar com algo no momento, tentarei
descrever minhas condições, não serei detalhista, não costumo ser,
serei breve, não é uma situação que eu chamaria de agradável.
Estou preso e estou me sentindo um fracassado, algo que se tornou
comum para mim. O desagradável da situação é que não estou
preso numa cadeia, ou então em um manicômio, não ainda, estou
preso em casa. Meus pais me prenderam com uma corrente de ferro
no pé da cama e essa cama está acimentada ao chão, só consigo me
locomover pela minha pequena área retangular e com princípios de
mofo intitulada de quarto. Consigo ver a porta de entrada que está
aparentemente fechada, mas que felizmente não é a prova de som,
por isso eu grito alto, para que todos escutem o que está
acontecendo comigo, para que todos vejam o que eles estão me
fazendo passar. Grito para que eles próprios se toquem na
5
monstruosidade que está acontecendo no lar deles. Como um pai e
uma mãe podem ter coragem de manter o próprio filho cativo em
uma cama? Como se fosse um animal ou um ser qualquer, indigno
da própria pena. Não sou bicho, tenho autocontrole, sei que
tenho, pelo menos na maioria das vezes.
2
Você deve estar se perguntando o que fiz para estar nessa situação,
e eu, sem nenhuma alegria, digo: sou viciado em maconha. Aí você
pode até pensar: putz! Maconha? Esse drama todo só por causa de
uma ervinha? Esse é o motivo da sua prisão? Não, não é, não
estou preso na minha própria casa por causa disso, considere isso
como uma desculpa que meus pais inventaram para que eu não
pudesse circular pela rua. A verdade é que eles sentem vergonha de
mim. Se formos colocar em pauta todos os pais que tem filhos na
mesma situação que eu, muitos estão tomando a mesma precaução.
O mundo se tornou louco e eles preferem colocar a culpa na gente,
como se nos prender fosse ajudar em algo, como se abafar fosse
sufocar a minha vontade. Eu não posso contê-la, é mais forte do
que eu. Só quem é viciado faz ideia do quanto eu devo ter lutado e
luto contra isso. Aprendi com meus erros e percebi que essa foi
uma grande burrada, não só grande, mas uma burrada épica.
Persisto, choro e até imploro para que isso saia de mim, esse vício
predador que me consome aos poucos. Choro em ruídos inaudíveis,
mas agora sei que se eu tinha alguma chance de mudar isso, foi há
algum tempo, já perdi, não que eu não queira lutar, só que não
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tenho mais forças. A vontade de viver, para mim, se extinguiu,
nem sei se um dia ela esteve realmente aqui.
3
Levanto a minha cabeça. Estou chorando e a porta continua
fechada. Olho para a janela e só consigo ver a luz passando pelas
frestas. A única coisa que faz com que eu não perca a cabeça e
cometa alguma loucura, pelo menos por enquanto, é saber que
existem pessoas na mesma situação que a minha, na vizinhança, ou
quem sabe em outra rua, sei que há pessoas sentindo a mesma
humilhação, que estão chorando o mesmo choro, é engraçado
quando o conhecimento de que não somos os únicos em
dificuldade pode amenizar um pouco a dor do coração. Claro que
não estou em meu melhor estado, em qualquer outra situação eu
não teria esse pensamento egoísta. O isolamento está me levando a
loucura e a minha família só se preocupa com a sua reputação e
mais nada. Não querem saber como estou me sentindo, ou como
estou assimilando isso, nunca pararam para conversar comigo,
agora nem mesmo um simples: bom dia Fred! Como passou a
noite?, eles são capazes de dar. Acho que a culpa está corroendo
eles, às vezes, penso que todos somos apenas vítimas de uma
grande fatalidade, que não estão fazendo isso por mal, só querem o
meu bem. Penso que a culpa não é deles, não há culpa se
eles aprenderam a se comportar assim, ou se o choque foi tão
grande de saber que eles tem um filho viciado, que provocou a
dificuldade na assimilação. Eles são só um espelho da criação que
receberam, eu e minha mania de sempre achar motivo pros erros
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dos outros, tenho sempre esses conflitos é como se várias pessoas
habitassem em mim. Mas na mesma velocidade que a desculpa
vem, eu afasto esse pensamento da minha mente. Preciso
concentrar toda a minha raiva neles, tenho que colocar a culpa em
alguém que não seja a mim mesmo, não posso deixar que eles
pensem que aceito isso, que acho que o eles estão fazendo é certo
ou até que compreendo que eles só fazem isso para o meu próprio
bem.
Merda para eles.
4
Abaixo mais uma vez a cabeça. Nesse exato momento passa uma
formiga pela a minha perna, cresce uma sensação esquisita no meu
peito que só posso definir como inveja. Ela sim é feliz,
provavelmente só deve se preocupar com o que vai levar para a
casa ou se vai conseguir aguentar esse grão de açúcar, carregando-
o avidamente. Seria legal ser uma formiga. Talvez as outras não
a julguem, talvez os pais formigas escutem os seus filhos em vez
de simplesmente bater neles quando algo foge do controle, talvez a
mãe formiga se meta na frente do pai e mostre para ele que o que
ele está fazendo é errado e que há outra maneira de resolver aquela
situação sem apelar para o espancamento e os xingamentos. Talvez
uma família de formigas seja bela. É, decididamente eu preferia ser
uma formiga.
5
Estou pensando nos meus amigos, tenho apenas três, há uma turma
grande no meu colégio que nem sei se poderei ir novamente, mas
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todos se afastaram quando comecei a ser o centro das atenções
negativas e motivo de problemas. É engraçado, a maioria das
pessoas não gostam de ser o ombro, só a cabeça que chora.
6
O Fred é o mais descolado de todos, e por sinal tem o mesmo nome
que eu. É o meu melhor amigo, pelo menos acho que ainda é,
consegue fazer todos rirem, não tem medo de nada, pelo menos
diz que não tem, talvez se ele tivesse um pouco de medo, eu não
estaria nessa situação hoje.
Certa vez estávamos passando por uma rua, essa lembrança me
persegue, não era uma rua legal, era uma daquelas bem longas, que
você pensa que não tem fim. Uma rua que ao dia passa um monte
de gente, mas quando chega a noite nem rato tem coragem de
passar, além de ser uma das mais arriscadas do nosso bairro. Por
sinal, moro num bairro com baixos índices de criminalidade. Sou
criado numa família que se espanta com o noticiário da noite, que
tem medo de tudo e que sempre evita falar com estranhos e não
suporta os ―testemunhas de Jeová‖, que vem todos os sábados. Não
porquê eles não gostam de Deus, afinal, eles adoram dizer que
amam a Deus. O problema é que eles ficam com medo de serem
ladrões disfarçados, ou algo do tipo. Então deve-se imaginar que
minha mãe não devia saber que eu iria passar por aquela rua, o
problema é que o Fred sempre gostou do mais difícil, do mais
arriscado, do mais tenso e decididamente aquela rua era bastante
tensa.
Tá com medo?
9
Claro que não, mané! - A verdade é que eu estava morrendo
de medo, como disse, sou de uma família super protetora, então
não tinha muito costume de sair do raio de visão deles. Já vi em
séries que alguns adolescentes lutam pela independência e
liberdade. Não era o meu caso, naquela época eu até pensava nisso,
mas sabia que ainda não era a hora, não tentava adiantar esse
processo. Eu nunca tinha me arriscado tanto, antes daquele dia.
Então vamos, né! - ele disse.
Putz! Fred, não é melhor a gente pegar um ônibus lá atrás?
Eu pago, não tem problema. É que minha mãe não vai gostar de
saber que eu passei por essa rua e tenho certeza que ela tem alguma
amiga que mora aí. - Nessa minha resposta contei duas mentiras e
uma verdade. Quando falei que não tinha problema em pegar o
ônibus, eu menti, porque não estava com muito dinheiro naquela
noite e aquelas passagens iriam fazer falta. A segunda mentira é
que minha mãe não tinha amiga alguma ali, ela nunca se envolveria
com pessoas daquela rua, para ela, são pessoas de outro nível. A
verdade é que minha mãe não iria gostar de saber que estive
naquele lado do bairro, não iria gostar mesmo.
Deixa de ser lerdo, cara, é só passar, a festa é logo do outro
lado, vai ser bacana, não precisa ter medo, seu protetor está aqui. -
Fred falou a última frase com um tom meio afeminado, não gosto
quando ele faz isso.
Vamos então, mas não fala alto, por favor. É sério, não
quero acordar ninguém daqui.
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Quando começamos a andar foi tipo sinistro, ouvi vários sons
estranhos e juro que vi várias sombras naquela noite, e, depois de
intermináveis minutos, chegamos ao outro lado.
Ta vendo, bocó, que não foi difícil assim? Sua mãe tá te
mimando demais - ele acrescentou rindo.
Sabia que ele só estava me provocando, a mãe dele o tratava da
mesma maneira, eu só não conseguia entender como ele não
conseguia demonstrar medo, eu já estava apavorado.
Vamos? - ele perguntou, já aparentava impaciência.
Entrei na festa, e foi nela que provei meu primeiro maço de
maconha. Foi nesta festa que iniciei o processo que vou chamar de
―Destruição de Vida‖.
7
Desperto do devaneio, por causa de um barulho de carro. Com
certeza é algo grande e com muita gente, uma multidão, eu diria.
Paro para ouvir. No início o som é baixo, mas com o tempo
consigo me concentrar na voz até chegar ao entendimento.
Estamos aqui para entrevistar o menino Fred, recebemos
informações exclusivas de que ele vive nessa residencia em cárcere
privado, e claro que não poderíamos deixar de mostrar isso. Os
pais dele o deixam trancado em casa por uma corrente,
telespectadores! Temos que conferir essa tamanha brutalidade.
Sigam-me.
Só assimilo duas palavras entrevista
e Fred
, penso que esse tal
do Fred vai fazer um alvoroço retado quando esse pessoal
chegar na casa dele, aí me toco, quer dizer, me dou conta de que
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esse Fred sou eu, e mais uma certeza vem a minha mente, eles
estão vindo para minha casa.
Eles não podem fazer isso. Pela voz só pode ser aqueles programas
que passam no meio dia. Não quero ser manchete desse tipo de
notícia. Imagine o que meu pai iria pensar disso? Graças à Deus ele
não está aqui, o que não é nenhum gracejo, provavelmente isso vai
estar em todos os jornais. Eles vão expor totalmente a minha
família, não que eles não mereçam isso, mas imagine como vai ser
para minha mãe não ter o direito de sair na rua? Correndo perigo
de linchamento ou algo pior. Não quero que todo o estado tenha
ódio da minha mãe. Sempre é assim, o ser humano adora criar
vilões e meus pais serão os próximos, minha mãe não é horrível,
ela é só... Sei lá o que ela é, mas ela não merece passar por isso.
Sei que ela está só apavorada, tenho bipolaridade, não se assustem,
tanto quanto eu, aí minha mania de sempre achar desculpas para
os erros dos outros agindo novamente, tenho que arrumar uma
maneira de sair daqui antes que eles entrem, antes que eles
comecem a gravar, mas não faço a mínima ideia de como farei
isso. Já tentei fugir algumas vezes, mas só consigo me machucar
mais, a frustração de não ter para onde ir é horrível, então eu
simplesmente voltava. Ouço então a batida na porta e minha mãe
saindo da cozinha, provavelmente ela já estava começando a
preparar o almoço, se encaminhando para sala para poder abrir a
porta, ouço a maçaneta girando e quando a porta se abre, me
espanto com tamanha proporção da situação. Está muito
barulho lá fora. Escuto minha mãe xingando.
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Senhora, senhora, só queremos uma entrevista.
Saiam daqui, saiam rebanhos de desocupados, saiam, senão
chamo a polícia, SAIAM!
Acho que minha mãe conseguiu fechar a porta, pois o barulho
abaixou. Ouço passos largos em direção ao meu quarto, ela abre a
porta.
Satisfeito agora? A imprensa local está toda aí. Estão
falando que somos monstros, que não somos pais, não posso nem
sair mais na rua, Fred, você acha certo isso?
Mantenho o meu silencio, sei que ela está muita zangada, porque
as mãos dela não conseguem parar de tremer. A irritação que tinha
ido embora, volta, não sou bicho pra ficar amarrado, e ela não tem
direito de brincar de deus e fazer o que achar ser melhor para mim.
Fala, Fred! Você tá surdo? Responde algo, responde pra sua
mãe, não me deixa falando aqui sozinha, mostra ao menos que
você tem vergonha, que você está se sentido culpado pelo que
você fez, pelo que você faz, pelo que você é, responde Frederico!
Não me faz de cachorra, por favor!
Aí ela começa a chorar, pior do que vê sua mãe chorando, é saber
que ela chora por sua culpa. Nesse momento eu me sinto um lixo,
não muito diferente do que eu já me sentia, mas agora sinto um
desprezo tamanho por mim. Li que às vezes a melhor solução para
a vida miserável é a morte, preciso fazer com que ela pare de
sofrer, preciso dar a carta de alforria para minha mãe. Ela merece
isso.
Sinto muito! - Eu digo.
13
Você sente? Você me diz que sente muito? E isso melhora
alguma coisa, Fred? Você acha que melhora? Pois não, Fred, não
melhora nada, nem ao menos um esforço pra mudar você faz. Você
não percebe que não está apenas se destruindo, você também está
me matando junto. Está sendo insuportável para mim, não aguento
mais viver uma vida em que sou obrigada a prender meu próprio
filho no pé da cama. Meu único filho! Ah, é muito sofrimento pra
uma mãe.
Ela se vira e começa a sair do quarto. Só tenho tempo de dizer
um murmúrio,