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Épocas na vida de Paulo: Clássicos da Teologia
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Épocas na vida de Paulo: Clássicos da Teologia
E-book325 páginas6 horas

Épocas na vida de Paulo: Clássicos da Teologia

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Sobre este e-book

Neste clássico da teologia cristã, A. T. Robertson (1863-1934) reúne toda a pesquisa disponível à época e, partir do livro de Atos dos Apóstolos, faz um retrato irretocável do apóstolo Paulo, acompanhando todos os seus passos.
Quase um século depois, o que temos é um livro magistral, que deve estar presente, como disse o tradutor A. Ben Oliver, "na biblioteca na biblioteca pessoal de casa pastor, de cada professor da Escola Bíblica Dominical e de cada pessoa que tenha interesse em levar avante a obra do evangelho".
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de ago. de 2022
ISBN9788594115232
Épocas na vida de Paulo: Clássicos da Teologia

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    Épocas na vida de Paulo - A. T. Robertson

    1

    SAULO, O ESTUDANTE FARISAICO

    E na minha nação excedia em judaísmo a muitos da minha idade.

    (Gálatas 1.14)

    Uma palavra de apreciação

    Saulo de Tarso era caracterizado por tal veemência e poder, que sempre foi o cabeça de qualquer círculo em que se movia, quer seja como Saulo, o fariseu perseguidor, quer seja como Paulo, o missionário laborioso. Se era o principal dos pecadores, tornou-se o principal dos santos. Se era homem de ação percorrendo o Império Romano, estava fazendo-o como estadista construtivo, bem qualificado, com o propósito único de levar aos pés de Cristo o Império Romano. Era ele o mesmíssimo tipo de estadista missionário (2) que hoje se requer na China, no Japão, na Índia, na África e na Turquia.

    É uma coincidência curiosa da história que os mesmos cenários das lutas e dos triunfos de Paulo, em prol de Cristo, são agora os lugares mais difíceis no mundo para alcançarmos com a mensagem da cruz. Precisamos de um novo Paulo para esta nova situação.

    Paulo não era menos homem de pensamento do que homem de ação. Gostava dos seus livros e, quando não os tinha, sentia falta deles (2Timóteo 4.13). Era o mais ocupado dos homens, porém continuava os seus hábitos de estudar, para vergonha de cada pastor moderno, nas cidades (pois Paulo era pastor em algumas das maiores cidades do mundo), que negligencie os seus livros, mesmo para fazer o seu trabalho pastoral. Ele resolveu o problema por si mesmo, como cada ministro terá que fazê-lo.

    Concordo com Sir W. M. Ramsay (3) que Paulo era um filósofo verdadeiro, talvez não no sentido técnico do termo, embora soubesse manter-se firme com os filósofos epicureus e estoicos (Atos 17.18 e ss). Entretanto, ele tinha um ponto de vista mundial, que era mais alto e mais nobre do que o dos oportunistas na filosofia. Paulo sabia pensar e possuía tal paixão pelas almas e sutileza de intelecto que ainda desafia o respeito das maiores mentes do mundo moderno. Sabia ele os termos técnicos do rabino judaico e do filósofo grego (gnóstico e agnóstico), porém podia deixar de lado a linguagem abstrata e dirigir-se ao âmago das discussões com palavras que ferem até a consciência dos homens. Certamente Paulo tinha uma filosofia verdadeira da história (4) e um programa bem definido, tanto para a redenção do Império como para a salvação dos indivíduos.

    Mas é como o expoente de Cristo que Paulo merece a atenção principal. Esse assunto exigirá um melhor tratamento mais adiante, porém uma palavra é necessária aqui. Paulo arrogou para si uma posição no nível dos maiores dentre os apóstolos (2Coríntios 12.11) quando lhe foi negado este lugar pelos judaizantes.

    De fato, ele é o verdadeiro primaz entre os apóstolos (não Pedro), embora não fosse um dos Doze. Foi ele quem repreendeu a Pedro; não Pedro a ele. Tão poderosa é a concepção que Paulo tinha de Cristo, que tem dominado completamente a teologia cristã.

    É pertinente a pergunta se Paulo acertadamente compreendeu a verdade a respeito de Jesus, visto que, provavelmente, não o conhecia face a face na carne, pois em 2Coríntios 5.16, ele não quer inferir (ainda que tenhamos conhecido a Cristo segundo a Carne, contudo, agora, já não o conhecemos desse modo) que jamais o tivesse visto antes da Sua morte. Ele até havia considerado a Cristo sob o ponto de vista judaico ou carnal. A discussão a respeito de Paulo é muito importante, pois, se Paulo estava errado, tem levado atrás de si o mundo inteiro. Agostinho e Calvino, Pelágio e Armínio, Orígenes e Clementino, todos bebem à fonte da teologia de Paulo.

    Estamos deveras recobrando o ponto de vista joanino de Cristo, e também o petrino e jacobeano, porém, afinal de contas, todos estes não diferem radicalmente da concepção de Paulo, ainda que cada um dê a sua interpretação pessoal. Na simples verdade, é inútil esperarmos voltar a Cristo sem irmos por intermédio dos primeiros intérpretes de Jesus que contaram a sua história maravilhosa.

    A narrativa de Paulo não é a primeira na ordem de interesse apologético, e a apologética vale a pena para cada cristão inteligente. Tocamos em terra firme em Paulo, pedindo desculpas a von Manen. Tomando posição ao lado de Paulo, qualquer estudante poderá penetrar mais seguramente a massa de criticismo joanino e sinóptico, até chegar à verdade como é em Jesus. Finalmente, verá o estudante que Paulo e os Evangelhos nos apresentam o mesmo Cristo, com apenas as diferenças em detalhe que tínhamos o direito de esperar.

    Excetuando o próprio Jesus, Paulo permanece para sempre o principal representante de Cristo, o expoente mais hábil do cristianismo, o seu gênio mais construtivo; do lado meramente humano, o seu campeão mais destemido, o seu missionário mais ilustre e mais influente, pregador, mestre e mártir mais distinto. Ele ouviu as palavras no terceiro céu, as quais não é lícito ao homem referir (2Coríntios 12.4), mas sentia-se ainda um vaso de barro (2Coríntios 4.7). Procurava ele recomendar-se à consciência de todos os homens diante de Deus, porque havia visto a luz do evangelho da glória de Cristo, e era o servo de todos por amor de Jesus (2Coríntios 4.3 e ss).

    Nos Atos possuímos um retrato claro de Paulo. Há uma lenda que declara que Lucas era artista e deixou um lindo quadro de Paulo. É óbvio que Lucas era mestre em retratar com palavras, porém não temos um quadro a óleo pintado por ele. Podemos deixar de lado, como não tendo valor algum, a lenda de que Paulo era corcunda, ainda que, provavelmente, a sua aparência pessoal não fosse particularmente excepcional, visto que os seus inimigos o ridicularizavam neste sentido (2Coríntios 10.10).

    É vantajoso ter uma personalidade atraente, contando que não cause expectações que não possam ser cumpridas. Paulo era bastante impressionante em ação, como quando ele, cheio do Espírito Santo, fitando os olhos (Atos 13.9) em Elimas, o mago, disse: Ó filho do Diabo, cheio de todo o engano e de toda malícia, inimigo de toda justiça, não cessarás de perverter os caminhos retos do Senhor? (v. 10). Mas os seus inimigos judaizantes menosprezavam a palavra dele como sendo de pouco valor (2Coríntios 10.10), porque, talvez, ele raciocinasse como quem conversa.

    Alguns, de fato, preferiam a oratória elegante de Apolo, que com grande poder refutava publicamente os judeus em Corinto (Atos 18.28). Mas Paulo realmente tinha uma enfermidade, um espinho na carne, a saber, um mensageiro de Satanás (2Coríntios 12.7), que o humilhava e o lembrava frequentemente que era ele um vaso de barro que levava o tesouro do evangelho. Se esta enfermidade eram olhos fracos, ele tinha amigos bondosos que teriam arrancado os próprios olhos e lhes teriam dado se possível fora (Gálatas 4.14).

    Não se pode duvidar que foram esquecidas todas as fraquezas humanas quando Paulo derramou sua própria alma em palavras apaixonadas e moveu os homens a um esforço heroico. Poderia ele mudar de tom e tocar nas notas profundas do sentimento (Gálatas 4.20), porque era homem de emoções fortes. Podia desafiar os outros a cumprirem os seus deveres somente pelas suas lágrimas (Atos 20.29) tanto como pela sua confiança própria independente.

    Não nos seria fácil nos aproximarmos do estudo da vida de Paulo sem tanto panegírico e, certamente, não o seria para quem tenha sentido aquele encanto de Paulo de Ramsay (5) escreve tão brilhantemente. A magnificência de sua natureza há de aparecer na sua perfeição enquanto prosseguirmos. Se Paulo podia subir ao terceiro céu e trazer glórias inefáveis, também podia passar um dia e uma noite no abismo (2Coríntios 11.25). Conhecia a natureza humana e desumana. Tinha amigos leais, mas sentia profundamente a traição de falsos irmãos, o ostracismo da parte de sua própria raça, o ciúme de alguns pregadores do evangelho (Filipenses 1.15) muito mais do que a hostilidade aberta de um imperador romano como Nero.

    Os antepassados de Saulo

    Saulo amava o seu povo com um patriotismo intenso. Poucas coisas lhe deram maior angústia de coração do que a recusa dos seus irmãos judeus, seus compatriotas segunda a carne, de aceitarem Jesus como o Messias prometido (Romanos 9.2 e ss). Estava quase pronto a ser separado de Cristo, se isso os ganhasse. Uma vez gloriava-se como faziam os demais judeus, da sua descendência de Abraão (2Coríntios 11.22). Sentira o desdém orgulhoso da parte dos gentios, que era uma animação para os judeus mais estritos. De fato, era hebreu dos hebreus, e gloriava-se na raça de Israel. Era descendente da tribo de Benjamim (Filipenses 3.5), que se gloriava num outro Saul, o primeiro rei do povo hebraico. É provável que por algum tempo se interessasse muito nas genealogias intermináveis (1Timóteo 1.4) e nas linhas genealógicas dos judeus do seu tempo.

    Bem sabia o que era o orgulho da raça, a herança de uma descendência longa e nobre que se estendia para os séculos passados. O judeu tinha bastante na sua história para dar-lhe o direito de ser orgulhoso. Seu era o povo escolhido, de quem é a adoção, e a glória, e os pactos, e a promulgação da lei, e o culto, e as promessas; de quem são os patriarcas (Romanos 9.4 e ss).

    Com uma história como essa, pouco importava se o jugo odiado dos romanos estivesse no pescoço dos judeus.

    Passariam os dias dos romanos como haviam passado os dos reis selêucidas, dos ptolomeus, de Alexandre Magno, dos persas, babilônicos, assírios, heteus e egípcios. Reinos se levantaram e caíram, mas o judeu permanecia, orgulhoso, isolado, hostil, cônscio de que fora destinado a cumprir uma estranha missão messiânica no mundo. Verdade é que a esperança messiânica ora estava caída na poeira de um libertador de Roma, que haveria de estabelecer um império judaico em Jerusalém, porém ele ainda haveria de manifestar-se com grandes acontecimentos escatológicos. Mas tornar judaico o mundo inteiro seria honra bastante para a raça humana. Tudo isso e mais ainda corria no sangue dos antepassados de Paulo.

    A sua família

    Pode-se retratar melhor ainda o lar de Tarso, no qual Saulo, mesmo faltando muitos detalhes. Não sabemos o nome do seu pai nem de sua mãe, porém o quadro não está totalmente escuro. Sabemos que seu pai era judeu estrito, pois o seu filho Saulo foi instruído aos pés de Gamaliel, conforme a precisão da lei de nossos pais (Atos 22.3).

    Não somente era fariseu, mas filho de um fariseu (Atos 23.6). Portanto, sabemos que, mesmo seu pai morando em Tarso quando Saulo nasceu (22.3), ele não era helenista e vivia numa das grandes cidades gregas do mundo, porém mantinha-se leal às tradições da Palestina e no coração era judeu verdadeiro, mesmo sendo atualmente da Dispersão. Sabe-se certamente mais um detalhe a respeito do pai de Saulo. Era cidadão romano.

    Mais tarde chegou o dia quando Saulo teve grande prazer em dizer: Pois eu sou romano de nascimento (Atos 22.28). Se seu pai nasceu romano, ou adquiriu este direito por um ato de valor, ou por dinheiro, como fez Cláudio Lísias (Atos 22.28), não se sabe. Aliás, não era sabido até recentemente. Ramsay (6) tem mostrado que houvera um grupo de judeus colonizadores em Tarso desde o ano 171 a.C. Somente era possível para alguns poucos judeus tornarem-se cidadãos romanos numa cidade grega como Tarso por se arrolarem numa tribo determinada para eles, na qual poderiam controlar os ritos religiosos e identificá-los com o serviço da sinagoga. (7)

    Se é verdade isso, e Ramsay prova que é, o pai de Saulo foi arrolado nesta tribo de cidadãos judaicos em Tarso, devido à sua alta importância na comunidade judaica, a não ser que seu avô também houvesse sido cidadão.

    Não sabemos há quanto tempo a família morava em Tarso. Pelo menos o pai de Saulo era homem de posição na comunidade judaica e, mais tarde, pôde mandar seu filho estudar em Jerusalém. Poderia ter sido um homem de boas condições financeiras. O fato de que era fabricante de tendas e ensinou este ofício ao seu filho não prova nada, visto que os judeus geralmente tinham um ofício e o ensinavam aos seus filhos. Este costume serviu bem a Paulo mais tarde. Temos todas as razões de pensar que Saulo se orgulhava se seu pai.

    Recua-se ainda mais no fundo desse quadro a mãe de Saulo, de modo que sabemos apenas que deveria ter sido uma mulher dinâmica, por haver criado tal filho. Aparece não muito distintamente nas palavras de Paulo: Dou graças a Deus, a quem desde os meus antepassados sirvo (2Timóteo 1.3). Ela está nesse grupo.

    É esta a herança mais nobre de todas. Na menção de Eunice, mãe de Timóteo, e Loide, avó dele (2Timóteo 1.5), não é difícil notarmos o reflexo do próprio lar de Saulo. Quando Paulo lembra a Timóteo, de quem este desde a infância aprendera as sagradas letras (3.14 e ss), parece que estava ecoando a sua própria experiência no lar em Tarso. Esta matrona judaica não deve ser deixada de lado quando estudamos as influências que formaram Saulo. Foi ela quem dirigiu o lar onde ele cresceu, e a sua estampa ele sempre levava.

    Quando indagamos dos demais membros daquela família, aparece-nos o quadro de uma irmã (Raquel, como é chamada em uma história mais tarde), cujo filho tanto fez por Paulo em Jerusalém num tempo difícil (Atos 23.16). Este sobrinho era digno do seu tio, e dizer isso da sua sutileza e coragem é bastante. Pode ter havido outras irmãs ou até irmãos. Simplesmente não o sabemos. Descortina-se este fato. Mas temos formado alguma concepção do lar na cidade da qual Paulo tanto se orgulhava.

    A data de nascimento de Saulo

    Os antigos historiadores não tinham o mesmo interesse numa cronologia exata, como têm os modernos. Lucas (Lucas 3.1 e ss) de ato exibe o interesse de um historiador no tempo em que João Batista começou o seu ministério. Procura ele localizar o evento pelos nomes dos governadores do tempo. Nos Atos também há uma alusão ocasional dos homens e eventos que se não incluem no escopo da história apostólica.

    Devemos agradecer mais uma vez a Ramsay pela vindicação da fidedignidade de Lucas como historiador. (8) Mas deve-se lembrar de que Lucas não pretende historiar a vida de Paulo. Ele apresenta Saulo, que já é moço (Atos 7.58), onde este toca na história do cristianismo e o segue com mais ou menos exatidão até Roma, e ali termina a narrativa.

    Nas epístolas de Paulo não há indicações claras a respeito de sua idade, porém existem cá e lá algumas alusões. Quando escreve a Filemom (v. 9) já é Paulo, o velho. Infelizmente não há nenhuma data certa na carreira inteira de Paulo. Até os dois pontos fáceis (a chegada de Paulo a Antioquia, perto do tempo da morte de Herodes Agripa I e a grande fome; e a mudança de procuradores romanos em Cesareia, quando Félix é substituído por Festo) não são mais fixos. Se soubéssemos com certeza que a primeiro foi em 44 d.C. e o outro em 60 d.C., haveria menos dificuldade em arranjarmos, aproximadamente, as demais datas principais na vida de Paulo.

    Para uma boa discussão deste assunto, veja o artigo de Turner sobre New Testament Chronology, no Hastings’ Dictionary of the Bible. Podemos, com alguma hesitação usar estas duas datas como hipótese para dividirmos em três partes a vida de Paulo. Então, as grandes viagens missionárias se colocam entre 44 e 60 d.C. Mas, mesmo assim, não temos esclarecido ainda a vida toda de Paulo.

    Se ele foi morto em 64 d.C. ou em 68 d.C., contudo seria velho quando escreveu a carta a Filemom. Se, como é possível, Paulo tinha 30 anos na ocasião do apedrejamento de Estevão, o que certamente seria verdadeiro se era membro do sinédrio (Atos 26.10), teremos que acrescentar a este número os catorze anos (2Coríntios 12.2) e mais três anos que ele passou na Arábia e Damasco (Gálatas 1.18).

    Não podemos, entretanto, insistir que sejam aceitos inteiramente estes dois períodos, visto que partes de anos poderiam ser contadas, ou no princípio ou no fim, como anos inteiros. Seja como for, não se pode errar muito pensando de Saulo como nascido cinco anos depois de Jesus. Assim, a data de nascimento seria cerda do ano 1 d.C.

    Não estaremos forçando os fatos se imaginarmos o menino João Batista nas montanhas da Judeia, o menino Jesus em Nazaré e o menino Saulo em Tarso, todos ao mesmo tempo. Cada um enfrentou o mesmo mundo, porém de um ponto de vista diferente, estes meninos que haveriam de revolucionar o mundo. João saiu de uma atmosfera sacerdotal, e, quando morreram seus pais idosos, adotou o deserto como lugar onde se preparar para enfrentar os problemas da vida. Jesus continuou no humilde lar de Nazaré, trabalhando como carpinteiro (Marcos 6.3) e esperando a voz no deserto para chamá-lo ao seu destino.

    A meninice de Saulo em Tarso

    Nestes tempos, que estaria fazendo o menino em Tarso? Ao contrário de João, Saulo morava numa cidade. Dissimilar de Jesus, o seu lar estava numa das grandes cidades gregas do mundo. Natanael poderia zombar de Nazaré (João 1.46), mas Paulo não permitiria que ninguém increpasse a Tarso. Orgulhava-se de vir de uma cidade não insignificante (Atos 21.39).

    Quanto direito de Paulo tinha a este orgulho cívico da cidade do seu nascimento o Dr. Ramsay (9) tem mostrado plenamente e com grande êxito. De todas as cidades do mundo, Tarso era a mais bem adaptada à juventude do apóstolo dos gentios. Em Tarso realizou-se mais perfeitamente aquela união entre o Oriente e o Ocidente que Alexandre Magno tentou estabelecer tão largamente. A cidade continuava asiática em caráter, enquanto apropriava para si as qualidades gregas. De fato, a influência grega teve sua origem com os colonos jônicos, porém este espírito grego não obliterou os elementos, que permaneciam até depois da obra de Alexandre.

    Debaixo do domínio dos romanos, Tarso era uma cidade livre e o elemento judaico era uma força positiva na vida da comunidade. Também era um grande centro universitário. Seria difícil imaginar uma cidade daquela época que fosse mais cosmopolita e mais representativa da vida do império. A ausência de ódio intenso aos judeus contribuiria para maior simpatia da parte dos judeus para com as melhores coisas da civilização greco-romana. De acordo com os helenistas em geral, Saulo falava grego, além do aramaico, e parecia não achar inconsistente com os seus escrúpulos judaicos assistir aos jogos públicos, de que mais tarde usou tão efetivamente como ilustrações (1Coríntios 9.24 e ss).

    O muro de separação entre judeu e gentio não se estendia a cada detalhe da vida, embora, na maior parte, a atmosfera do seu lar em Tarso fosse totalmente judaica, para não dizer farisaica. Associava-se livremente à vida e aos divertimentos dos meninos gentios em Tarso. Não é bem estabelecido que ele assistisse às escolas gentias. Era neste ponto de educação que o fariseu seria mais exigente. Na meninice, ele aprendera de sua mãe e do ensino na sinagoga, que se havia tornado uma grande instituição na vida judaica, a história do Velho Testamento.

    O ambiente exerce uma influência poderosa em cada vida humana. A hereditariedade, com mais o ambiente e a curiosa equação pessoal, acrescentados à graça de Deus, podem explicar a criatura maravilhosa chamada homem. Saulo não teria sido exatamente o mesmo homem se houvesse sido criado em Alexandria ou em Jerusalém. Ambos estes centros de cultura deixaram a sua impressão em Paulo, como se vê no emprego da alegoria de Agar e Sara (Gálatas 4.24), na sutileza rabínica no uso de palavras (Gálatas 3.16) e na interpretação tradicional (1Coríntios 10.4). Mas é fácil ver que Saulo de Tarso não foi destinado a ser Filo, tampouco Samai. Tarso impressionou-o na sua meninice e tornou possíveis, na sua vida posterior, as simpatias mais generosas.

    É interessante notar que as comparativamente poucas ilustrações no seu ensino são tiradas da vida cotidiana. Não é necessário, portanto, dizer que ele usou mal o assunto de enxertar o zambujeiro, pois expressamente dia que contra a natureza (Romanos 11.24). João e Jesus, ambos usaram fartamente as ilustrações da natureza, com as quais eram tão familiares. De um ponto de vista, parece ser castigo um menino ter que residir na cidade e passar sem a alegria e liberdade dos campos e das matas. Mas Saulo recebeu algumas recompensas.

    A sua vida seria gasta nas grandes cidades do império e ele simpatizava, naturalmente, com a vida da cidade, e, portanto, estava melhor aparelhado neste sentido. É claro que a sua juventude era livre das dissipações debilitantes da cidade, e por isso tinha força física para suportar o esgotamento contínuo do trabalho missionário, para não falar nas perseguições e nos aprisionamentos.

    Pode-se imaginar, devido à sua predileção pelos termos atléticos, que o menino em Tarso interessava-se nas atividades atléticas. Pelo menos, a referência em 1Timóteo 4.7 (e ss.) não pode ser interpretada como condenação do exercício corporal. Se pudermos julgar pelo conselho dado a Timóteo (1Timóteo 4.12), Saulo fora menino de confiança própria. O que ambicionava não sabemos, mas um menino com tantos dons naturais haveria de sentir uma chamada para serviço maior. Sem dúvida, ele simpatizava com o desejo de seus pais de que se tornasse rabino, talvez mais um Gamaliel.

    Como judeu que era, não se lhe apresentava uma glória mais alta que esta, visto que a voz profética cessara em Israel e o cetro real não mais estava em mãos judaicas. O calcanhar de Roma estava sobre o mundo, o mundo Mediterrâneo e o de Saulo. Muito depois ele volverá para trás os olhos e contemplará o plano de Deus na sua vida, e verá que Deus o separara desde o ventre de sua mãe (Gálatas 1.15) para fazer dele um fariseu espiritual, um separado para os gentios, mas não dos gentios, como carregado com a revelação de Deus no seu íntimo. Mas precisará de muito tempo e de uma revolução na sua natureza antes de poder realizar essa predestinação.

    Entretanto, podemos concluir que este menino judeu de Tarso estava cheio de vida e desejoso de tomar parte no grande muro que o rodeava. Se ele sentia o ímpeto de seu tempo, estava ansioso para entrar no drama do seu dia. Podemos supor que já a sua consciência ativa o estimulava a guardar-se livre de ofensas para com Deus e para com os homens (Atos 24.16).

    Embora, no todo, a vida em Tarso ainda nos seja obscura, pelo menos mais tarde não o era aos amigos de Saulo, pois era jovem de preeminência, como seu pai era homem de posição. Paulo diz que desde o princípio os seus amigos no sinédrio e outros em Jerusalém conheceram-no (Atos 26.5), mas não é claro que este conhecimento se estendesse além da sua mocidade em Jerusalém (verso 4). Desde os seus dias de estudante em Jerusalém, a respeito do mundo judaico, Saulo era preeminente. Será vantajoso para nós formarmos um quadro mental do menino que partiu de Tarso.

    Aos pés de Gamaliel

    A ambição que os pais de Saulo tinham para que ele recebesse educação teológica em Jerusalém não foi ruim. Essa cidade era o alvo dos judeus em qualquer parte do mundo. Ali se concentrava a história da sua nação. Cada outeiro e cada vale transbordavam de santas lembranças. Saulo já aprendera o esboço dessa história e estava entrando naquilo que era seu quando chegou à Cidade Santa.

    Conforme o costume judaico, Saulo tinha, talvez, uns treze anos quando foi estudar em Jerusalém, de modo que poderia dizer que fora criado ali (Atos 22.3). Não podemos deixar de nos lembrar da curta visita que o menino Jesus, com doze anos de idade, fez ao templo. Cada um estava cheio de zelo pelos problemas do seu povo e do seu tempo. Provavelmente, Saulo não surpreendeu os seus mestres pela penetração de suas perguntas e respostas na mesma medida que o fez Jesus, porém não se pode duvidar da agudeza do seu interesse no novo mundo em que ele havia entrado.

    De tudo que a cidade tinha de atração histórica, a coisa que mais se salientou na sua vida posterior foi o fato de ele se haver sentado aos pés do maior mestre do seu tempo entre os judeus (Atos 22.3). O templo, o glorioso templo de Herodes, que ainda não fora terminado, tinha as suas maravilhas. Mas a maior coisa neste mundo é um homem. Supremo é aquele momento na vida de qualquer moço quando entra na influência de um professor que é um verdadeiro mestre.

    Este neto de Hilel era a glória da lei, e muito significava para Saulo submeter-se à sua influência. A escola dele (chamada a Escola Hilel) era mais liberal em alguns pontos de interpretação do que a sua rival, a escola teológica rabínica de Samai (contemporâneo de Hilel). Por exemplo, Gamaliel permitia a leitura dos autores gregos, e o seu aluno Paulo mais tarde mostrará um conhecimento da literatura grega.

    De fato, afirma Paulo, ele era um instruído conforme o rigor da lei de nossos pais (Atos 22.3), porém, mais tarde, ele explica isto, quando observa: conforme a mais severa seita da nossa religião, vivi fariseu (Atos 26.5). Ele não diz que foi educado na mais severa das escolas farisaicas. Entretanto, do ponto de vista não farisaico, era bastante severa.

    A vida para a qual Saulo foi criado era a de uma complacente satisfação própria (cf. Romanos 7.7), escravizada à

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