O Resgate
De Elis Tavares
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O Resgate - Elis Tavares
O RESGATE
Quando o amor e o crime se entrelaçam...
Elis Tavares – 2018
© Copyright 2018, Elis Tavares.
2ª edição
2ª impressão (publicado em setembro de 2018)
Todos os direitos reservados e protegidos pela lei no 9.610, de 19/02/1998. Nenhuma parte deste livro, sem autorização prévia por escrito do detentor dos direitos, poderá ser reproduzida ou transmitida sejam quais forem os meios empregados: eletrônicos, mecânicos, fotográficos, gravação ou quaisquer outros.
ISBN 978-85-434-1029-6 Direito. Brasil. Título.
CDD- 340
O limite do direito é a liberdade e a liberdade não tem limite
(Roberto Lyra Filho)
Dedico este livro à família Rap Nacional que tanto nos ensina com as letras de músicas mostrando a realidade brasileira em ondas sonoras!
São guerreiros que o país precisa;
A guerreira e rapper Karol, ex-integrante do grupo de Rap Realidade Cruel,
pelo apoio fundamental para que esta obra se concretizasse;
Ao meu irmão de coração e rapper Conttenção que tanto me ensina
com seu entusiasmo e apoio nas causas sociais;
Ao meu amigo, amor e irmão Alex Sandro, por apresentar-me
ao mundo do Rap e pelo apoio fundamental na revisão deste livro;
Ao professor e mestre Flávio Marcus da Silva pela paciência
na revisão este livro, pelo conhecimento que tanto me ensinou e que continua a ensinar a seus alunos;
À FAPAM – Faculdade de Pará de Minas e a todos os meus queridos professores que tanto se dedicam para o futuro de seus alunos;
À Pastoral Carcerária da Igreja Católica que realiza
uma missão belíssima dentro dos presídios brasileiros;
À minha família, irmãos, sobrinhos e amigos pelo apoio;
Dedico também aos milhares de detentos que neste exato
momento estão encarcerados pelos mais variados motivos.
Que Deus possa tocar em suas essências para
enxergarem que o crime não compensa...
Só o conhecimento nos liberta e combate o sistema,
o crime ao contrário, só nos aprisiona!
PREFÁCIO
Sangue, gritos, tiros... essa cena é vista todos os dias pelos quatro cantos do Brasil. Infelizmente a realidade é que os índices de criminalidade e violência estão aumentando em todo o país. E um dos fatores que mais tem contribuído para que cenas como esta se repitam diariamente é o tráfico de drogas. Enquanto a população e o poder repressivo do Estado se preocupam em eliminar bandidos que ocupam a microcriminalidade como pequenos traficantes e ladrões batedores de carteira
, os grandes criminosos que atuam na macrocriminalidade com empresas de fachadas para lavagem do dinheiro do tráfico internacional de drogas e nos crimes do colarinho branco
continuam sob o manto da insuspeição da sociedade brasileira.
A população carcerária formada principalmente pelos criminosos da microcriminalidade continua crescendo em ambientes que na maioria das vezes não cumprem o papel da ressocialização. O resultado disso, são detentos cada vez mais unidos e organizados com estruturas comerciais, as quais lembram multinacionais. E o mais perigoso disso, é que estão aprendendo o jogo da macrocriminalidade.
Mesmo com o surgimento dos grandes grupos de facções criminosas no Brasil, o Estado não deu a devida atenção a um futuro que pode ser a maior dor de cabeça para a segurança pública a nível nacional. E enquanto isso, mais soldados
estão sendo recrutados dentro do próprio sistema carcerário para fazer parte dessas organizações criminosas que oferecem muitas vezes proteção, apoio financeiro para a família do detento e até mesmo advogados. Em troca, os recrutados contribuem com os seus serviços para o crime organizado e defendem a facção até a morte.
Um dos objetivos dessa obra é mostrar através de um romance como pode funcionar uma parcela do crime organizado no Brasil. As personagens e as facções retratadas são fictícias; no entanto, desenvolvem-se em contextos reais mencionados em muitos livros e matérias jornalísticas publicados no país. Deste modo, uma das intenções dessa obra é chamar a atenção para um exército de excluídos que continua a crescer em terras brasilis
e que estão à mercê de uma sociedade que não lhes dá a devida atenção.
O que o poder público faria se uma facção criminosa detivesse 200 mil pessoas em seu poder dentro dos presídios espalhados pelo Brasil? E se um salve geral
fosse dado para todas essas pessoas? E se milhões de pessoas saíssem às ruas para protestar de forma violenta? O aparato repressivo brasileiro estaria preparado para enfrentar rebeliões simultâneas dentro e fora dos presídios? Apesar de se apoiar em pesquisas, relatos e matérias jornalísticas, tal obra deve ser considerada uma ficção.
2 DE OUTUBRO DE 1992
Naquela noite de 2 de outubro de 1992 todos na sala estavam em silêncio mortal. A TV em preto e branco do barracão do vizinho anunciou que a polícia de São Paulo havia invadido o presídio do Carandiru¹. O menino abraçou a mãe tentando confortá-la. A mulher chorava desesperada, pois temia que o pior acontecesse. E tinha razão para temer. O pai do menino estava preso havia três meses e justamente no pavilhão 9 do presídio invadido. Todos olhavam apreensivos a TV e o silêncio na sala só era quebrado pelos soluços da mulher angustiada. A criança não conseguia entender por qual motivo o pai estava preso junto com os homens mmaus
. A mãe sempre dizia que seu pai foi preso porque queria alimentar a família. E ela se perguntava se era pecado furtar para matar a fome dos filhos...
Três meses atrás, o pai desempregado procurou trabalho em toda a cidade, mas não encontrou. Toda a população estava sofrendo com a crise econômica, que estava causando desemprego e insatisfação popular. A inflação estava no teto e o estado paulistano enfrentava a maior recessão de sua história. Muitas empresas fecharam as portas fazendo com que a produção e o salário dos funcionários diminuíssem.
Com isso, 170 mil postos de trabalho deixaram de existir na capital, inclusive o trabalho do pai do menino. Dizendo que barriga com fome não espera que a crise no país acabe
, o pai então decidiu cometer o crime. Juntou-se com mais dois amigos desempregados e foram escolher um supermercado para aliviar a fome dos seus filhos. Furtaram sacos de arroz e de farinha, mas como eram novatos no mundo do crime, logo foram presos pela polícia e caíram no pavilhão 9 do Carandiru, este destinado aos réus primários. Agora, os pais de família, antes trabalhadores, tornaram-se criminosos perante a sociedade, igualando-se aos assassinos, estupradores e ladrões presos no Carandiru.
Eles estavam aguardando a decisão da justiça havia três meses e esperavam que o juiz aceitasse o princípio da insignificância² para os atos que eles cometeram, como havia explicado o defensor público. Enquanto isso, a mãe do menino lavava roupas para as senhoras ricas dos bairros nobres. Mas o dinheiro não dava para sustentar os dois filhos que o presidiário enquadrado no artigo 155 deixou. A mãe e os filhos se alimentavam apenas uma única vez ao dia. Aos domingos, durante as visitas ao Carandiru, o pai prometia que nunca mais cometeria crime algum, pois precisava ficar ao lado de sua família.
Sábado, 3 de outubro de 1992. A mãe dirigiu-se com o menino para a portaria do Carandiru. Várias famílias gritavam por notícias dos seus filhos, maridos e pais. A resposta veio através do IML: mais de 100 presidiários estavam mortos. Uma tatuagem no ombro coberto de mordidas de cachorro revelou a identidade de uma das vítimas. Uma fincada de dor foi cravada no coração da mãe do menino ao reconhecer o corpo despedaçado do marido. A cabeça do pai foi metralhada e seu corpo estava em pedaços devido às mordidas dos cães. A mulher, em um surto desesperado foi retirada da sala do IML. A mãe, ajoelhando-se e chorando, perguntou aos céus o porquê do marido ter sido covardemente morto pela polícia de São Paulo. Essa cena o menino nunca mais iria esquecer e diante dela, jurou que iria vingar a morte de seu pai. O apelido do menino era Zeca, futuro assaltante de bancos...
E assim nasceu um dos maiores pesadelos daquele estado; uma facção do crime organizado com milhares de soldados
espalhados dentro e fora dos presídios brasileiros.
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OBS: 1 - O massacre do Carandiru, também conhecido como Massacre da Casa de Detenção de São Paulo, aconteceu em 2 de outubro de 1992 quando a Polícia Militar de São Paulo tentou conter uma rebelião, causando a morte de aproximadamente 111 detentos. O pavilhão em que houve o massacre era específico para réus primários e cerca de 80% das vítimas esperavam por uma sentença definitiva, pois ainda não haviam sido condenados pela justiça brasileira. Segundo o sobrevivente do massacre, Sidney Sales, em entrevista ao site Brasil de Fato na data de 01/10/2012, o número de mortos era de aproximadamente 250 pessoas e não 111 como os dados oficiais afirmam.
2 - O princípio da insignificância no Direito tem o sentido de excluir ou de afastar a própria tipicidade penal, ou seja, não considera o ato praticado como um crime, por isso sua aplicação resulta na absolvição do réu e não apenas na diminuição e substituição da pena ou na sua não aplicação. Para ser utilizado, faz-se necessária a presença de certos requisitos, tais como: (a) a mínima ofensividade da conduta do agente, (b) a nenhuma periculosidade social da ação, (c) o reduzidíssimo grau de reprovabilidade do comportamento e (d) a inexpressividade da lesão jurídica provocada (exemplo: o furto de algo de baixo valor). Sua aplicação decorre no sentido de que o direito penal não se deve ocupar de condutas que produzam resultado cujo desvalor - por não importar em lesão significativa a bens jurídicos relevantes - não represente, por isso mesmo, prejuízo importante, seja ao titular do bem jurídico tutelado, seja à integridade da própria ordem social. O princípio da insignificância, ou princípio da bagatela, surgiu após a segunda guerra pelos pequenos furtos ocorridos na Europa. Seu surgimento aconteceu puramente como cunho de proteção a bens materiais valorados economicamente.
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10 ANOS DEPOIS
O professor era franzino, tinha cabelos brancos e lisos. Usava óculos antigos no meio do nariz parecendo com o falecido avô de Nara. O velho professor de História falava sobre o antigo Império Romano e ela o ouvia admirada.
- É inegável que o Império Romano contribuiu para a formação do nosso modo de organização social e com o nosso sistema judiciário atual³. Mas também não podemos negar que os romanos contribuíram com a política do Panis et Circus
, ou seja, a política do Pão e do Circo
que domina o nosso país. O império Romano reinou durante muitos anos usando este tipo de política para dominar o seu povo e os povos conquistados. Eles davam ao povo pão durante os espetáculos sangrentos, como os combates entre gladiadores, para divertir a população, e o principal, para que todo o povo se esquecesse dos problemas sociais que Roma sofria.
A cabeça de Nara viajava em cada citação do professor. Ela era fascinada com história antiga, sobretudo, com a história do Império Romano e sua queda. O professor continuava seu discurso:
- O que vemos hoje no país é uma política baseada justamente no Pão e no Circo
. Liguem suas TV's e vejam o que lhe são oferecidos. Jogos de futebol, bebidas e mulheres nuas são as principais atrações que temos em nosso Brasil. Assim, nos esquecemos da falta de investimentos em saúde, educação e segurança pública. É preciso denunciar o que acontece ao nosso redor. Será que algum de vocês seria capaz disso?
Aquela pergunta do professor franzino de cabelos brancos foi decisiva na vida de Nara. A partir daquele momento ela decidiu se tornar uma jornalista.
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OBS: 3 - Uma das maiores contribuições do Império Romano foi que dele surgiu o Direito, apesar de alguns indícios desse surgimento serem encontrados no mundo grego. Surgiram no estado grego as primeiras necessidades das garantias individuais do direito, mas no final do século III DC é que foi estabelecida a justiça oficial através dos Romanos.
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A CELA
As paredes estavam descascadas e as grades enferrujadas pelo tempo. A noite dentro da cela da delegacia parecia não passar. Ela estava sozinha dentro do cômodo pequeno e o frio da madrugada congelava suas mãos. Nara, sentada no chão, encostou sua cabeça na parede e pôs-se a rever a cena do crime. Havia sinais nítidos que os jovens acusados de furto foram arrastados para fora do carro e que a cena do crime tinha sido totalmente alterada. A polícia alegou que houve tiroteio e que eles atiraram para se defender, mas os corpos tinham marcas de tiros na cabeça e na nuca.
A equipe de reportagem seguiu o camburão da polícia e chegou naquela rua deserta, flagrando os policiais da Rota alterando a cena do crime⁴. Quando Nara percebeu este fato e foi verificar os corpos jogados ao chão, ela usou algumas técnicas de Medicina Legal que aprendeu com um amigo perito. Dois corpos apresentavam tiros na testa, e os ferimentos de entrada dos tiros apresentavam formas arredondadas, halo de tatuagem, zona de queimadura e orla de escoriação, mostrando que os homens receberam tiros à queima-roupa, fato óbvio que confirmou que quem atirou nos jovens quis levá-los a morte sem direito a defesa perante um tribunal.
Cadáveres falam, senhor policial
, disse a jornalista de forma irônica para um policial alto que a estava observando e tentando retirar a equipe de Nara do local. Então, Nara o questionou se eles estavam alterando a cena do crime porque tinham atirado nos homens para matar. Agressivo, o policial já deu logo voz de prisão, alegando desacato à autoridade. Agora, ela estava ali, naquela cela, aguardando alguém do jornal chegar para tirá-la daquela delegacia. Mesmo detida, ela teve a certeza que isso seria um furo de reportagem.
- Aí está, a rainha da confusão!
A voz era de Leonardo, o editor do Jornal que a despertava dos seus pensamentos. Ele estava acompanhado por Roberto, o advogado do Jornal onde Nara trabalhava.
- Já lhe disse para ficar longe de encrencas, garota! Já é a terceira vez que tiro você de confusões - disse Roberto, como se fosse um conselho de pai para filha.
Nara abriu um sorriso e respirou aliviada por não ter que ficar detida até de manhã.
- Dessa vez tenho certeza que não foi desacato, doutor Roberto. O problema é que neste país existem pessoas que têm medo de responder a perguntas - ela disse encarando o delegado que acompanhava o advogado e o editor.
Ao sair da delegacia, Nara abraçou alegremente Leonardo e Roberto, agradeceu por eles a terem libertado das garras da cela fria
e se despediu, indo em direção a um taxi.
- Nara, já são 3 da manhã, eu vou levá-la para seu apartamento, não precisa pegar um táxi, disse Leonardo.
Com uma alegria de menina que acabou de ganhar uma bicicleta, a jornalista disse:
- Não precisa, Leonardo! Não vou para casa, vou para o IML! Tem uns corpos me esperando...
- Agora entendi o motivo de tanta alegria! Essa garota adora um IML! Jornalistas doidos esses... - murmurou em tom sarcástico o doutor Roberto, balançando a cabeça em um ato de desaprovação.
- É porque isso vai ser um furo de reportagem, doutor Roberto! Os policiais atiraram para matar e alteraram a cena do crime. Eu preciso saber do relatório do legista que está analisando os corpos dos envolvidos no tiroteio. Eu adoro ser uma pedra no sapato - gritou Nara já entrando no táxi.
O táxi já havia partido quando o doutor Roberto alertou Leonardo:
- Nara está obcecada com essas denúncias contra a polícia e contra o crime organizado. Ela está mexendo com gente perigosa, Leonardo! Vocês têm que botar um freio nessa moça, senão terão que comprar um caixão para ela.
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OBS: 4 - No livro Rota 66
, do jornalista Caco Barcellos, existem relatos de casos em que a Polícia do estado de São Paulo alterou cenas de crimes, não preservando os locais para o levantamento da perícia técnica. O jornalista também relata em seu livro outros casos em que policiais da Rota dispararam à queima-roupa com a clara intenção de matar, mesmo quando as vítimas não ameaçavam a ação policial e algumas vezes não estavam envolvidas em crimes.
Também segundo a 9ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, lançado em 2015 pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, ONG que reúne especialistas em violência urbana, 398 policiais foram mortos em 2014, ao menos um por dia. Este número significa 2,5% de redução de policiais mortos em relação a 2013. Em 2014, a cada 3 horas uma pessoa foi morta pela polícia, uma média de 8 por dia, resultando em 3.022 vítimas. O que corresponde um aumento de 37,2% de crescimento da letalidade em relação a 2013. No período de 1998 até 2013, as polícias brasileiras mataram o equivalente ao que as polícias dos EUA em 30 anos. Segundo os dados do anuário de 2013, 81,8% do total de mortes registradas foram cometidas por policiais em serviço; enquanto 75,3% das mortes de policiais ocorreram fora de serviço.
Ainda segundo a 9ª Edição do Anuário Brasileiro de Segurança Pública, muitas famílias de policiais mortos passam por problemas inaceitáveis para que a pensão e/ou o seguro seja pago, ficando em situação de extrema vulnerabilidade.
Segundo pesquisa Datafolha-FBSP, 50% dos residentes nas grandes cidades brasileiras concordam com a frase Bandido bom é Bandido Morto
. Este percentual é maior para homens (52%); moradores da região Sul do país (54%); e autodeclarados brancos (53%). Por outro lado, 45% da população discordam dessa afirmação. E essa discordância é formada proporcionalmente mais por mulheres, autodeclarados negros, jovens e moradores da região sudeste do país. Na média, considerando a margem de erro, há um empate entre os que concordam e os que discordam desta questão.
Dos países do mundo sem guerra declarada, em 2014 o Brasil foi o país onde mais se matou: quase 60 mil pessoas foram assassinadas. Em 2014, o Brasil perdeu o mesmo contingente de pessoas que os EUA perderam em toda a Guerra do Vietnam. Os mortos brasileiros são quase invisíveis perante a sociedade brasileira: quase