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Cachorro Do Governo
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E-book338 páginas2 horas

Cachorro Do Governo

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Sobre este e-book

O drama de um homem comum. Nem herói, nem bandido. Massacrado por demências e angústias, manipulado por Deus e pelo demônio no tabuleiro de xadrez da vida e da morte. Num titânico combate psicológico cavalga no dorso da ilusão, narcotizado com álcool e drogas ilícitas, empreende uma luta solitária contra decepções familiares e o choque psíquico da vida social. Nas madrugadas de vigília paranoica ele traça metas e sonha com dias de repouso tranquilo na terra onde nasceu. Uma história melancólica, psicológica e surpreendente.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento5 de dez. de 2015
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    Cachorro Do Governo - Washington Sant'ana

    Washington Sant’Ana

    CACHORRO DO GOVERNO

    Reg. EDA/395.272-lv. 735-fl. 432

    Capa: João Paulo

    Ilustração da capa/Domínio público

    3

    Livro de ficção. Os fatos narrados são imaginários e as

    personagens (com exceção das personalidades famosas citadas);

    são frutos da imaginação do autor. Portanto qualquer

    semelhança com a realidade é mera coincidência.

    4

    Dedicado a Jurandir Jeferson Freire. Investigador da

    Polícia Mineira, morto no interior do Primeiro Distrito Policial

    de Contagem em 24/06/2000, quando impediu um resgate de

    preso. Na ocasião ele vigiava sozinho 42 condenados. Morto

    pelos bandidos. Sacrificado pelo sistema...

    5

    6

    CACHORRO DO GOVERNO

    I

    Eu sou Cérbero!...

    Meu nome de batismo é Mizael Castanha, mas aqui neste

    pequeno presídio situado na periferia da cidade de Contagem, eu

    sou o guardião da masmorra do inferno. Meus uivos varam as

    madrugadas, enquanto vigio os portões deste depósito de

    homens criminosos, com unhas e dentes; e armas pesadas...

    Restando apenas um ano para me aposentar do serviço

    policial, aqui estou; purgando meus pecados mortais. Comendo

    o pão que o diabo amassou. Um final de carreira medíocre e

    inglório. Conto os dias... E isso faz um ano parecer um século.

    Enquanto espero, vou vigiando esta masmorra repugnante duas

    vezes por semana. Sofrendo.

    A prisão é feia e sinistra: Um imóvel velho e em ruínas,

    emprestado pela prefeitura ao estado, para servir de delegacia de

    7

    polícia e centro de triagem. Constitui-se de uma casa onde

    funciona o setor administrativo e quatro pequenos cômodos que

    abrigam a inspetoria e a sala dos policiais, os outros dois

    compartimentos foram transformados em celas com capacidade

    para oito prisioneiros. Mas com o aumento da criminalidade no

    início do milênio, as penitenciárias estaduais ficaram lotadas e

    os condenados passaram a cumprir sentença em pequenas

    prisões de delegacia. Na região metropolitana existem várias

    pequenas prisões como esta; ladrões e pequenos traficantes

    abarrotam seus calabouços improvisados. Não há espaço sequer

    para os prisioneiros deitarem. Na hora de dormir eles fazem

    revezamento, uma parte dorme até as quatro da manhã e se

    levantam para os outros que estavam em pé repousarem. Não há

    colchões, deitam-se no chão em cima de cobertores. A

    promiscuidade e a falta de higiene habitam com eles. Parasitas e

    doenças de pele proliferam no meio ambiente carcerário.

    Piolhos, percevejos, sarna, ictiose, furúnculos e outras

    enfermidades da pele infestam o interior das celas. Os

    encarcerados dão um só nome para todas essas moléstias:

    Ziquizira de cadeia.

    Localizada na divisa dos municípios de Contagem e

    Ribeirão das Neves; a prisão é cercada por favelas e bairros

    pobres; fornecedores do material humano que abarrota suas celas

    imundas. Aqui tem bandido de toda espécie, brancos e negros;

    católicos e protestantes. Comum entre eles: o vício, o

    analfabetismo e o alto índice de pobreza, origem de toda revolta.

    O lugar é perigoso, mas a vista é bela, a prisão está

    localizada no topo de uma colina, na borda de um vulcão

    extinto. No fundo da cratera está a capital de Minas Gerais.

    Olhando a leste, a vista depara com a Serra da Piedade; é onde

    nasce o sol... E eu tenho o privilégio de vê-lo surgindo nas frias

    manhãs de inverno, após longas e tensas madrugadas de vigília.

    8

    As salas foram construídas na divisa do terreno. Uma

    varanda de telha de amianto cobre a frente da entrada dos

    setores, debaixo dessa varanda tem um refrigerador, uma mesa

    de madeira e um velho aparelho de TV com botões quebrados.

    Na frente da varanda há um imenso pátio de estacionamento

    onde ficam guardados os carros apreendidos, que vão

    apodrecendo a céu aberto. Alguns parecem dinossauros que

    morreram e se esqueceram de deitar. Máquinas mortas com

    motores travados; vigiadas de perto por um enorme flamboyant

    de aproximadamente vinte anos de idade, mas que já está

    morrendo. Não de velhice, pois sabemos que a espécie pode

    viver décadas; o flamboyant está morrendo baleado. É em seu

    tronco que os policiais testam suas armas e a eficiência da

    munição. Ele já tomou mais de mil tiros.

    Tentando conscientizar os funcionários, coloquei uma

    placa em seu tronco com os seguintes dizeres:

    NÃO ATIRE NA ÁRVORE

    ELA TAMBÉM É UM SER VIVO

    Em menos de uma semana encontrei a placa furada à

    bala. Nos buracos do tronco escorriam filetes de seiva, como se

    a árvore sangrasse.

    Ainda confeccionei outras placas e todas foram rasgadas

    no tiro. A grande quantidade de ogivas de chumbo envenena a

    seiva do tronco. O flamboyant está morrendo assassinado pela

    polícia. É deprimente...

    Apenas dois policiais compõem a equipe de plantão, e a

    população carcerária tem quarenta prisioneiros. Meu parceiro é

    JB, funcionário jovem e início de carreira, mas que já sofre das

    mazelas da profissão; stress, depressão, hipertensão e outras

    enfermidades físico-psíquicas. Ele toma vários tipos de pílulas.

    9

    Outro dia reclamou que os remédios psiquiátricos estavam

    tirando o seu apetite sexual. Isso me deixou preocupado, porque

    também carrego uma depressão hereditária; minha única herança

    paterna, diagnosticada em consulta com psiquiatra da polícia,

    ocasião em que o mesmo quis me entupir de remédios.

    Evidentemente recusei, mesmo sem ter conhecimento técnico

    sobre os efeitos colaterais. Graças a Deus eu recusei, pois era só

    o que faltava além de lidar com o declínio da libido por causa da

    idade, ainda teria que administrar a impotência causada pelos

    medicamentos psiquiátricos. Vou me curando com cachaça...

    O serviço não é pesado, porém é muito perigoso.

    Vigiamos à noite em dias de expediente; e nos finais de semana

    e feriados o plantão é de vinte quatro horas. Até a meia noite

    vigiamos de dois, e de meia noite as sete, o horário é dividido.

    Cada um repousa três horas e meia. Escolhi vigiar no último

    horário, de três e meia as sete. Pois minha atenção condicionada

    não é só para a população da masmorra, vigio antes de tudo

    minha integridade física. Aqui é um lugar muito vulnerável. O

    perigo maior vem de fora, porque os muros que cercam a prisão

    são baixos e a cerca elétrica não funciona. Um resgate de

    prisioneiro aqui é muito fácil.

    Apesar de leve, o trabalho é estressante. Tenho que vigiar

    os muros e as celas. Enquanto assisto TV debaixo da varanda de

    telha de amianto. Quando o filme é bom reservo um olho e um

    ouvido para a TV. Mas quando não há bons filmes, fico andando

    pelo pátio como um cachorro de terreiro, farejando perigo em

    toda parte. Escutando os barulhos da noite com ouvidos

    paranóicos. O cansaço e o stress me acompanham diariamente,

    minando minha sanidade física e mental. Levo a vida amparada

    na bebida, no cigarro e no jogo. Meus dias são cheios de

    angústias e neuroses. Os vícios são meus remédios contra a

    depressão, me dão alívio temporário e prazeres ilusórios...

    10

    Há sete anos quando vim parar nesse serviço ruim,

    pagando castigo por divergir da opinião de um chefe imbecil; os

    dias passavam mais rápidos. Agora que falta pouco tempo para

    me aposentar os dias são longos e os perigos se multiplicam.

    Cada dia a população carcerária aumenta, trazendo a revolta das

    ruas. A abstinência de drogas faz com que os prisioneiros

    fiquem irritadiços e loucos para fugirem, a droga os chama para

    a rua, e novamente para o crime.

    O JB cochila o tempo todo em seu turno de vigília.

    Remédio demais. Muita química na corrente sangüínea; drogas

    lícitas para acalmar o infeliz. Tenho pena dele, ainda faltam mais

    de 20 anos para cumprir, e as coisas estão piorando. A violência

    urbana aumenta assustadoramente, e os criminosos capturados

    na região abarrotam a masmorra. Enquanto os políticos falam

    mentiras, fazendo falsas promessas para os eleitores e

    correligionários.

    Somos governados por Pinóquios e Ali Babás!...

    Ontem o governador prometeu aumento de salário e

    construção de novos presídios. Fez algumas transferências para

    inglês ver e contou mentira no jornal das sete. Enquanto aqui a

    masmorra está entupida de gente criminosa. Os excluídos.

    Andarilhos do caminho das drogas, escombros da sociedade

    capitalista. Entram para o mundo do crime ainda na infância,

    quase sempre para sustentar o vício em drogas ilícitas. Hoje há

    garotos de 11 anos de idade empunhando armas potentes.

    Apertando o gatilho como se brincassem no vídeo-game. Eles

    têm uma crueldade primitiva. Sem perspectiva de um futuro

    digno; sua revolta é genuína, matam por nada. Sabem que terão

    vida breve; por isso são cruéis, implacáveis. E quando

    conseguem sobreviver até a maioridade, vem parar aqui. E eu

    tenho de conviver com eles. Vigiá-los.

    Conto os dias...

    11

    A madrugada está fria... Quando rendi o JB, ele dormia

    sentada, a baba escorrendo pela ponta do queixo. Apanhei um

    cobertor barato e joguei nas costas como uma manta mexicana.

    Coloquei a escopeta calibre 12 em cima da mesa e estiquei o

    corpo mal dormido; um velho cachorro preparando-se para mais

    uma jornada de sentinela. Apesar de meus 50 anos de idade,

    ainda vigio ligado, sem cochilar. Quase todos os policiais

    dormem a noite toda. Como o JB que cochila em seu turno e

    desmaia no repouso; há equipes em que os dois plantonistas vão

    dormir no mesmo horário, deixando a masmorra aos cuidados de

    fantasmas e barras de ferro.

    ...Uma brisa gelada farfalha as pequenas folhas do

    flamboyant moribundo. Na TV filmes horríveis ocupam todos os

    canais. Madona, a cadela vira-lata que nos ajuda a vigiar os

    domínios da masmorra, permanece deitada sob a mesa, perto da

    geladeira; aproveitando o calorzinho do motor. Ela veio parar

    aqui ainda filhote, quando foi abandonada na porta da prisão.

    Alguém a alimentou e deu-lhe água, depois disso nunca mais

    saiu do portão, até que um dia colocaram-na para dentro dos

    muros e ela foi admitida no serviço público sem concurso,

    porém sem salário. O nome em homenagem a estrela da música

    pop foi dado por causa de sua pelagem amarelada.

    Com intuito de manterem os prisioneiros distraídos, foi

    autorizada colocação de aparelhos de TV na porta de cada cela.

    Enquanto ocupam a mente com novelas, filmes e futebol, não

    ficarão maquinando fugas. Nessa noite estão assistindo um filme

    erótico no canal 7. Filmes da madrugada que só mostram

    insinuações sexuais. Mas, como "em tempo de guerra, urubu é

    frango", eles assistem com atenção concentrada as cenas de

    prazer fingido. E lá pelas altas horas, na solidão da madrugada

    12

    extravasam seus desejos reprimidos pelas malhas da justiça,

    despejando sua descendência pelo esgoto sanitário.

    Nos horários dos comerciais as conversas aumentam, e

    um deles lança um grito agoniado que ecoa no espaço vazio de

    minha mente recém-desperta. A voz é aguda como choro de

    menina:

    -Oh Jesus, me tire

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