Contos De Horror E Medo
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Contos De Horror E Medo - Krisnamurth Sampaio
Krisnamurth Sampaio
CONTOS DE HORROR E MEDO
1ª edição
Teresina / PI
ArteSam
2018
Para Dayanne e Lígia,
meus amores nesta vida e em
outras
Perguntai ao sepulcro a história do cadáver guarda o segredo...Dir-vos-á apenas que tem no seio um corpo que se corrompe! Lereis sobre a lousa um nome e não mais
.
Álvares de Azevedo
A MORTE ESPERA NA PRÓXIMA CURVA
I
A
história de Charles e Melissa começa como muitas outras histórias de verão. Era manhã de sábado e as aulas da faculdade onde os dois se conheceram há cerca de um ano, haviam encerrado no dia anterior. As férias estavam ali prontas para serem aproveitadas e os últimos preparativos para a partida rumo ao litoral já estavam bem encaminhados. Ela estava radiante e dava pulinhos sobre as sandálias e sorridente beijava, mordiscava os lábios do namorado soltando gritinhos de empolgação e algumas piadas maliciosas. Ele retribuía seus carinhos enquanto acomodava dentro da caçamba de sua pick-up, caixas contendo comida enlatada e toda a parafernália de praia que não poderia faltar em uma viagem como esta e, claro cervejas, muitas latas de cervejas.
Embora não demonstrasse com tanta veemência a sua empolgação Charles estava aliviado e contente por estar partindo para alguns dias de descanso. Aquele havia sido um semestre deveras exaustivo, e estar com os amigos certamente lhe faria muito bem. Ademais, se sentia apaixonado como nunca, pois já tinha como certo o noivado com Melissa e não haveria oportunidade mais adequada para oficializar o pedido. Seus melhores amigos estariam lá, o namoro ia de vento em popa e o anel de ouro com cristais encravados já estava bem guardado em um canto secreto do seu bolso. Tudo conferido várias vezes e falas mais do que bem ensaiadas á frente do espelho para que nada falhasse.
Ele podia se considerar feliz apesar de ainda pairar sobre sua cabeça um certo temor de que sua amada recusasse o pedido que pretendia fazer na frente dos amigos sob a luz da lua praiana. Tinha medo de que todo o seu plano romântico soasse clichê ridículo demais, mas a decisão já estava tomada e estava disposto a correr o risco. Deveria trabalhar no próximo semestre em algo que seu pai prometera e mesmo que ainda ouvisse muito aquele papo de que ainda era cedo demais
sentia que aquela garota, apesar das suas tantas maluquices era o par perfeito. Pularia sim de cabeça sem mais pensar.
Finalmente estava tudo pronto. Uma última verificada na bagagem, uma passada rápida no posto de combustíveis para calibrar os pneus e encher o tanque e logo à frente a estrada.
Lets go!
A placa de saída anunciava o fim da cidade e o caminho de asfalto abria seus meandros marcados pelas faixas amarelas. Caminhões roncavam imponentes e gigantescos com suas buzinas barulhentas e faziam a caminhonete de Charles balançar com sua passagem veloz. Ele xingava e as vezes mostrava o dedo do meio pela janela num gesto desafiador, mas no fundo torcia para que o motorista da carreta não parasse logo à frente para tomar satisfações. Tudo era motivo de risos àquela altura e Melissa, percebendo a covardia atrevida do companheiro se esbaldava em gargalhadas sempre o brindando com um beijo.
-Você é meu herói valentão! Dizia ela em tom de ironia.
Charles preferia fazer cara de mau
e dar uma piscadela em retribuição a massagem de ego.
O trânsito arrefeceu e logo apenas carros menores passavam por eles. Às vezes uma buzina desafinada rasgava o silêncio; outras, algum engraçadinho que gritava exibindo os dedos indicador e mínimo pela janela simulando o velho gesto dos roqueiros ultrapassava em uma velocidade enlouquecida. Tudo clichê e previsível numa estrada tomada por recém-saídos da adolescência que ganharam a primeira habilitação a pouco tempo e teriam o primeiro verão de faculdade
; bêbados que partiam para se embriagar mais ainda e provavelmente morrerem afogados em um mergulho atrevido a uma distância pouco recomendada da costa ou esmagados contra o para-choques de algum caminhão que tivesse o motorista adormecido ao volante; o velho filme repetido a cada alta temporada.
O dia avançou e a viagem começou a tornar-se maçante à medida que a estrada se tornava cada vez mais solitária. Os bêbados e pivetes desaforados faziam falta naquele mar de quietude e monotonia onde só se viam as plantações à beira do asfalto. Eram canaviais e milharais que passavam embaçados pela velocidade e formavam uma massa desfocada de verde ou amarelo dependendo do seu estado de maturação. O silêncio era quebrado apenas pelo som dos pneus e pelo vento que entrava forte na cabine fazendo os cabelos de Melissa serpentearem loucamente.
Ela procurava uma posição que lhe amenizasse o tédio; e seu estoque de brincadeiras e piadas havia se esgotado àquela altura. Ligou o rádio e procurou o sinal de alguma emissora; encontrou Califórnia Dreaming em uma delas e cantarolou desafinada. Charles sorriu implorando secretamente para que aquilo parasse, Melissa tinha certeza de que era uma péssima cantora, mas preferia torturar os tímpanos do namorado com os solfejos da sua voz rouca a ficar uma eternidade naquele silêncio entediante. Tudo bem, eu posso sobreviver a isso
, pensou ele quando se decidiu a fazer um dueto.
Continuava a sequência de antigos sucessos das décadas de 70 e 80. Eles mal tinham largado as fraldas quando essas músicas estavam no auge, mas elas estavam em suas memórias como se fossem fotos coladas em um antigo álbum de recordações. Refrães pegajosos que já eram velhos quando eles nasceram e que por alguma razão estavam cravados em suas memórias, uma peculiaridade que só os clássicos possuem, pensava Charles enquanto cantarolava. A cabine tornou-se uma espécie de caraoquê improvisado e eles se divertiam quando erravam as letras ou quando cantavam em alguma língua que poderia ser qualquer coisa menos inglês.
Blue Monday ,Satisfaction ( cuja letra só lembravam o refrão), take on me ,comporam a trilha sonora da viagem. Melissa usava o cabo de uma escova de cabelos para simular um microfone enquanto Charles se esforçava para manter a concentração na estrada e segurar o riso. Quando Sweet Home Alabama exibia seus primeiros acordes, o sinal de rádio começou a cair restando apenas fragmentos de frases que surgiam aqui e ali e um chiado irritante. Melissa tentava sintonizar girando o botão do jurássico
roadstar instalado no painel e se perguntava o que diabos levava alguém a ainda ter uma coisa daquelas? Ela evitou externar a pergunta. Já sabia da resposta pronta; ele certamente diria os clássicos sempre vão ser eternos!
Preferiu evitar uma discussão desnecessária e desistiu. Afinal, estavam no meio do nada e nenhum equipamento de som, fosse ele moderno ou ultrapassado, conseguirá captar nada ali. Melhor sentar fazendo cara de emburrada e apreciar a paisagem
.
E novamente se fez um silencio tedioso. Todos os assuntos haviam se esgotado e a estrada parecia crescer á frente. Apenas o ronco do motor, o vento e o som das mudanças de marcha conversavam entre si. À essa altura já estavam a meio caminho do destino e os traços de civilização começavam a esmaecer. Os milharais e canaviais foram gradativamente sendo substituídos por uma mata de galhos fechados que projetava uma sombra densa sobre a estrada dando a sensação de que era bem mais tarde, embora o relógio do painel ainda nem marcasse 15horas.
Os galhos passavam como flashes pela janela num ritmo hipnótico enquanto os pneus zumbiam contra o asfalto e o silêncio se tornava mais opressivo a cada quilômetro rodado. Vez por outra, a continuidade da mata era quebrada por estreitas estradas de terra que adentravam sinuosas entre as árvores e levavam sabe Deus a que destino; eram veredas estreitas entre paredes de galhos que serpenteavam mata adentro forradas de areia espessa donde brotava um capim seco e amarelado.
Foi de uma dessas estradas clandestinas que Charles viu pelo retrovisor brotarem quatro faróis redondos de brilho amarelado que, apesar do dia alto, projetavam um intenso fulgor.
As luzes emergiram da mata pelo lado direito acompanhadas por um ronco grave de motor. Eram os olhos de uma possante máquina de pintura vermelha que como uma aparição infernal surgiu do nada e agora perseguia o casal a uma velocidade espantosa. Deve ser o futuro campeão da Nascar! Brincou Charles movendo o retrovisor para ver melhor o que tinha logo atrás.
O ronco possante aproximava-se rapidamente e se tornava mais nítido, e a cada troca de marchas ganhava um tom mais agressivo. Melissa virou-se, e se apoiou contra o encosto do banco, olhou pela janela traseira de onde viu um gigantesco para-choque de metal feito em chapas e lanças de aço que se projetavam ameaçadoramente contra a traseira da velha caminhonete. Aquilo certamente não era um mero instrumento de proteção contra batidas, tinha o objetivo de causar danos e certamente havia sido projetado e soldado por alguém que ao ganhar a estrada não tinha boas intenções. Ela sentiu um arrepio diante da visão do carro misterioso e levando a mão ao ombro do namorado sinalizou para que ele aumentasse a velocidade.
Charles pisou fundo e o seu acelerador chocou-se contra o chão da cabine. O motor engulhou por poucos instantes, mas a velha caminhonete ainda tinha fôlego e logo estava a cem por hora. O vento agora zumbia forte contra o para-brisas e as mãos de Charles suavam sobre o volante; se aquilo era uma disputa de racha seria a sua primeira vez e, apesar de já ter ouvido centenas de gabações sobre a adrenalina da velocidade, ele não via nada de empolgante em ter aquele aríete de aço voando rasante no seu encalço.
Já estava a quase cento e vinte quilômetros por hora e o carro infernal em nada se distanciava, parecia estar apenas aquecendo suas caldeiras, mantendo firme o ritmo e o som grave de suas engrenagens. Quem quer que estivesse por detrás do volante daquela máquina estava impondo uma brincadeira de estranho mau gosto.
Dois ou três quilômetros foram rodados com a máquina ensandecida grudada a poucos metros da pick-up e um medo paralisante vertendo nas veias. Os dois jovens suavam apreensivos e assistiam, cada um a seu modo a aproximação do carro misterioso que agora já podia quase tocá-los. Rangeram os dentes quando viram o piscar dos faróis disparando um estranho sinal para em seguida, após duas mudanças rápidas de marchas que fizeram seu motor roncar como se tomado por um demônio, precipitar seu para-choque de aço fundido contra a traseira da velha caminhonete. Um solavanco atordoante lançou as cabeças dos jovens para trás, com força de tal forma que seus pescoços quase se partiram.
Melissa soltou um grito estridente e se agarrou ao apoio de mãos na porta direta. O impacto fez a traseira ziguezaguear lançando pela estrada uma chuva de objetos que se abrira com a força do impacto. Voavam latas de cerveja, roupas e cadeiras de praia e o para-choque cromado da velha Chevrolet soltou-se produzindo um som metálico contra o asfalto. O mundo dentro da cabine era uma montanha russa que atirava o casal de um lado para outro a medida que seus músculos se contraiam fortemente. O movimento descontrolado era nauseante.
Novamente o motor da besta de aço rugiu e outro impacto foi sentido vindo de trás, e desta feita pareceu dez vezes mais forte que o primeiro. As coisas voavam por dentro da cabine em uma dança caótica. Viam-se atirados por todos os lados papeis, cds, canetas e copos. Melissa continuava a gritar e Charles tinha dentes e punhos cerrados sob uma palidez cadavérica de pavor. Quem diabos seria aquele louco, afinal?
A caminhonete rodopiou ignorando a força hercúlea que Charles a impunha ao volante e deu dois ou três giros de 180 graus; (quem sabe?) Estavam apavorados demais para contar e quando pensaram que o mundo pararia de girar, um novo golpe pegou-os de lado fazendo a carroceria da pick-up envergar-se em um ângulo obtuso. O carro infernal tinha agora seu para-choque cravado contra a lataria engelhada e empurrava a velha Chevrolet sobre um tapete de faíscas que nasciam do asfalto. Um som ensurdecedor de metal rangendo propagou-se pelo ar abafando os berros de Melissa enquanto os ouvidos de Charles identificavam o som inconfundível de um poderoso motor V8 (talvez a coisa mais improvável para se perceber naquela situação) O fato é que, mesmo naquele momento em que a morte certa o perseguia sua paixão por carros antigos estranhamente ainda gritava forte dentro de seu cérebro e ele reconhecia o som vindo do carro misterioso.
Cinquenta a cem metros seguiram-se com o casal sendo arrastado pela estrada enquanto os pneus do carro infernal chiavam e levantavam uma bruma de fumaça branca. Mas um giro de 180 graus foi dado para a esquerda e agora um barranco de pedras e galhos se agigantava logo abaixo disposto a engolir a pick-up de Charles. As intenções de quem pilotava a máquina enlouquecida eram claras naquele momento e só restava a Melissa um olhar de angustia e pavor embotado de lagrimas, um olhar de quem espera ouvir que tudo vai dar certo
. Vamos sair desta
, mas seu companheiro nada disse; apenas agarrou a ponta dos dedos de sua mão esquerda e retribuiu o olhar tendo o próprio desespero estampado nos olhos.
A fera de metal levou-os até o acostamento e os prensou contra o meio fio. Seu motor rugia de forma indescritível empurrando a velha pick-up para a boca do barranco. Os pneus da pick-up ergueram-se e Charles suspenso no ar por um instante; viu o mundo girar quando seu carro tombou ladeira abaixo capotando por mais de meia dúzia de vezes. Melissa era atirada como um trapo dentro da cabine e estava sem cinto de segurança (algo de que Charles sempre se queixava) e agora se chocava contra as paredes de metal e o para-brisas que lhe arrancavam filetes de pele e carne à medida que lhe quebravam os ossos. Ele sentia uma náusea indescritível e não conseguiu conter os jatos de vômito que jorraram de seu estômago. Pôs tudo para fora como se fosse sua primeira vez em uma montanha russa e teve os músculos ardendo de dor ao se agarrar como podia no que lhe estivesse ao alcance.
Quando a descida nauseante terminou o mundo todo estava de cabeça para baixo. O corpo