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Purgatório
Purgatório
Purgatório
E-book605 páginas8 horas

Purgatório

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Sobre este e-book

Daniel é um brasileiro ordinário com um passado traumático e que trabalha como vigilante de carro-forte. Em uma de suas entregas cotidianas, ele presencia o nascer de um novo mundo. Um universo místico e cruel, cheio de seres mitológicos e entidades desconhecidas pela humanidade. O seu mundo familiar irá se desfazer enquanto uma antiga realidade ressurge mudando todos os paradigmas da existência. Para sobreviver, Daniel se vê obrigado a entrar de cabeça nessa nova vida e acaba descobrindo habilidades inexplicáveis. Apesar de temeroso, o jovem vigilante aceita a oportunidade e resolve se tornar um herói, como aqueles que sempre quis ser quando criança. Ele partirá em uma aventura em busca de eliminar um mal que já causou e poderá causar mais destruição ao mundo. Infelizmente, bem diferente dos contos de fadas, Daniel descobrirá que essa nova realidade é tão, ou mais, terrível quanto seu próprio passado. Ele não desconfia que estará se envolvendo em algo maior que ele, algo que poderá definir o futuro de toda a existência.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento17 de out. de 2020
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    Purgatório - Eduardo P. Silva

    Eduardo P. Silva

    Direitos autorais © 2020 por Eduardo Pereira da Silva (Eduardo P. Silva).

    Todos os direitos reservados.

    É Proibido a reprodução parcial ou integral, através de quaisquer meios, sem a prévia autorização do autor.

    Projeto gráfico de capa e miolo

    Eduardo Pereira da Silva

    Arte da capa

    Gabriel A. Meireles

    Diagramação

    Eduardo Pereira da Silva

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    Purgatório

    Não é um lugar, mas um estado de espírito após a morte no qual as almas das pessoas boas, que não estão totalmente purificadas, permanecem se purificando até estarem totalmente limpas dos pecados, podendo assim, finalmente, entrar no Paraíso.

    Nota do Autor

    Esta é uma obra de ficção que possui elementos de mitos, mitologias, lendas, e outros assuntos fantásticos. No entanto, também aborda temas cotidianos que podem abranger conteúdo inapropriado para pessoas mais sensíveis e menores de idade. Dito isso, algumas das ideias abordadas aqui não representam meu modo de ver o mundo. Como uma obra de ficção, qualquer semelhança com a realidade é mera coincidência… ou não…

    Sumário

    Prólogo

    Realidade cotidiana

    Um dia normal

    Companheiros de guerra

    Entrega das três e meia

    O Artefato

    Fora da Caixa

    Bem-vindo à realidade

    Mundo cruel

    Uma escolha, uma vida

    Um novo mundo

    Um lugar chamado Entúria

    A história

    Dúvidas, dúvidas e mais dúvidas

    Teste prático

    Ser um herói?

    Vale dos Vultos

    Palácio Invidebit

    Aventura necessária

    Sangue humano

    Voz da consciência

    A primeira luta

    Apenas uma vítima?

    O Rei dos Vampiros

    Os Guardiões

    Pinóquio lutador

    O Palácio Sulean

    Lutando bem, que mal tem?

    Molho de chaves

    Aqui garoto, aqui!

    Você é o que você come

    O primeiro assassino da humanidade

    Em carne e osso

    Cavalo dado

    Reino Austero

    Nobres Infernais

    Conselho Infernal

    Mansão dos Mortos

    Ajuda mais que bem-vinda!

    Bate-papo

    Interrogatório

    À espera de um milagre

    Uma nova jornada

    O Anjo da Morte

    Executores do Luar

    Grades e cultivo

    Existência amaldiçoada

    (Per)versão da verdade

    A Morte veste prata

    Décimo Quinto Caminho

    Mal-entendido

    Respostas dos Céus

    Limbo

    Minha própria prisão

    Experiências vívidas

    Epílogo

    Cap 0

    Cidade de Marazul, Brasil.

    Dois dias antes do Marco Um, quase três horas da madrugada.

    Marazul fica bem próxima à capital do Brasil, Brasília. É uma cidade grande, abundante de prédios comerciais na área central, e cheia de casas e apartamentos nos arredores, no chamado setor residencial. Essa urbe de nome estranho fica ao lado da cidade de Santa Maria, bem perto do Viaduto do Catetinho, que está a cerca de 23 km de Brasília. Antigamente, era uma área militar, mas depois se transformou em loteamento e a cidade logo cresceu e tomou forma.

    No alto de um prédio na parte norte da cidade há um homem em pé no muro de proteção do terraço. A poucos centímetros de uma queda de trinta metros. O corpo delgado balançava suavemente com as rajadas de vento leves. Seus olhos pretos observavam as estrelas. A pele negra e o cabelo escuro e curto mostravam suas raízes africanas.

    Uma queda dessa altura o mataria, com certeza. Mas isso não o preocupava; fazia muito tempo que se esquecera do temor da morte. Apesar de aparentar ter cerca de quarenta anos, era muito mais velho. Esse homem misterioso já fora um humano comum, mas agora era imortal. O nome em seu RG era Vitor Moreira de Alcântara, mas esse não era seu nome verdadeiro. Infelizmente, Vitor não lembrava mais qual nome sua mãe lhe dera; seu primeiro nome. Seu nome original tinha sido esquecido com o passar dos milênios; então, resolveu assumir uma alcunha que o representasse, logo passando a se autodenominar o Vigia.

    Por que vigia? Ora, esse era seu encargo!

    O Vigia tinha um trabalho simples: observar e relatar o máximo de informações ao seu chefe. Não deveria intervir, apenas observar. Deveria apenas contar sobre os grandes eventos ocorridos na Terra para o homem que lhe dera a imortalidade.

    Em todo o Universo e suas dimensões, os seres foram divididos em duas classes diferentes, instituídas assim que surgiu Adão. Elas são: os humanos e os inumanos.

    Os humanos são seres dotados de Alma, Espírito e Corpo. A alma é o centro desses seres, cheia de poder e imortal; o espírito é a consciência; o corpo é a parte física que ele assume ao nascer. Os humanos começaram a partir de Adão, mas houve alguns seres idênticos fisicamente que não eram dotados de alma. O dote da alma é o que define um humano.

    Os inumanos são seres também dotados de Espírito e às vezes de Corpo. Inumanos desprovidos de corpo existem apenas de forma espiritual, às vezes possuindo a capacidade de invocar um corpo, um avatar, para interagir com o mundo físico. Os inumanos não possuem alma, em vez disso, eles possuem a Essência. A essência, dependendo do ser, pode durar para sempre, mas não é imortal. Ela existe em todos os inumanos, mas é diferente em cada um. Normalmente, quando um inumano morre, sua essência se dissipa no Universo e sua existência chega ao fim. Mas, com o passar dos anos, determinados seres com maior controle sobre a essência aprenderam a burlar o fim da existência após a morte e a guardar essa essência junto, em um invólucro, para que não se extinguisse.

    Vitor, o Vigia, possuía alma imortal, como a de todos os humanos. Por isso, sua existência nunca findaria. Ele, porém, dispunha de um diferencial. Há muito tempo, ele se encontrou com seu atual chefe e acabou recebendo a habilidade inata de reencarnar em um novo avatar toda vez que morresse. Vitor não tinha qualquer habilidade sobrenatural, além de reencarnar; e as que havia adquirido, através de estudo e experiência, com seus milhares de anos de vida — e que não eram uteis sem magia. Sua consciência permanecia a mesma e suas lembranças também, apenas sua alma trocava de corpo. É claro, como sua mente era humana, ele já tinha se esquecido de fatos e informações ocorridos no passado, dentre os quais o seu próprio nome — acabara entrando demais em certos personagens e se perdendo em suas atuações. Porém, depois de esquecer seu nome, passou a sempre se esforçar para lembrar-se das coisas importantes.

    Em suas experiências de reencarnação, o menor tempo que passou em um mesmo avatar foram dois segundos e o maior tempo foram noventa e três anos. A menor idade inicial de um avatar foi de dez anos e a maior foi de quarenta. Graças à sua habilidade de reencarnação, ele vivera milhares de experiências diferentes. O Vigia já foi homem e mulher, despiu diversas mulheres e também dormiu com vários homens. Foi africano, romano, indígena, americano, japonês, russo, dentre outros, e hoje é brasileiro. Em suas várias reencarnações, teve inúmeras profissões diferentes, como marceneiro, governante, centurião, pirata, mercenário, padeiro, ditador e ilusionista. Hoje, trabalha como professor de história.

    O Vigia já provocou muito mal e também muito bem; exerceu o papel de grandes heróis e de terríveis vilões. Ele adquiriu o costume de provar vidas diferentes a cada reencarnação, buscando aprender e vivenciar o máximo de situações possíveis, na tentativa de presenciar todas as possibilidades da existência.

    Por causa de suas vastas experiências em vida, o Vigia se destaca muito entre os humanos comuns. Além de seu incrível conhecimento da história verídica do mundo, ele possui diversos dotes: inteligência incrível; reflexos e instintos extraordinários; maestria em praticamente todas as artes marciais existentes; imensa habilidade de dedução e investigação; e conhecimentos práticos e teóricos na maioria dos campos de conhecimento, inclusive na área mágica. Com certeza, ele é um adversário que ninguém gostaria de ter, apesar de muito moderado e insistente descrição, para assim cumprir melhor seu verdadeiro trabalho.

    Com o tempo, o Vigia desenvolveu um sexto sentido para executar seu verdadeiro trabalho. Seus instintos percebiam quando um grande evento, que fosse determinante, viesse a ocorrer. Ele também se tornou capaz de perceber eventos menos significativos nos mundos mágico e humano. Seu sexto sentido representava uma sensação diferente de qualquer parâmetro que um humano já experimentou ou iria experimentar. Quanto maior a intensidade da sensação, maior o evento.

    Hoje, o Vigia sentiu aquela sensação, com a maior intensidade que já presenciara. O sexto sentido lhe tirou o sono, por isso encontrava-se ali, na beirada, a passos de uma queda mortal. Ele pensava melhor em situações de risco, se concentrava mais quando ficava de cara com a morte. Pela intensidade de seu sexto sentido, apenas poderia significar uma coisa: o grande evento que findaria com o Sétimo Dia, o Apocalipse. O início do Apocalipse estava próximo!

    O Vigia nunca presenciou um evento de tal magnitude. Ele estava ansioso. O fim do Sétimo Dia. Algumas dúvidas passavam por sua cabeça:

    Como será o Apocalipse?

    Será aquele descrito na Bíblia? Ou será totalmente distinto?

    E depois do final, como será o Oitavo Dia?… Haverá um Oitavo Dia?

    Dúvidas comuns na mente de um homem ansioso. E enquanto indagava sobre as várias possibilidades, ele decidiu seu próximo passo.

    — Tenho que avisar Agesrod!

    Uma presença. Perto. Muito perto. O Vigia virou-se, alguém pretendia agarrá-lo. Ele tentou girar o corpo, mas outro homem segurou a sua perna. Não conseguiu se soltar. O primeiro agarrou a outra perna. Vitor não entendeu o que ocorria; por que queriam pegá-lo? Abaixou como se fosse tocar os pés e se jogou, girando, e caiu do parapeito do terraço. Levou consigo os dois homens. Parece que ficaram tão afobados em segurá-lo que acabaram por não se preocupar com a própria segurança. De relance, enquanto caía, viu pessoas no terraço que estava — contou cinco, mas havia mais gente entrando pela porta que levava às escadas. Também possuíam armas: pistolas. Vestiam-se de maneira parecida, em tons escuros, camisas sociais e… não conseguiu notar mais detalhes. Uma gangue? Um grupo? Mas pôde escutar de relance alguém repetindo o nome Agesrod.

    Em queda livre, o Vigia se manteve próximo ao prédio, ao passo que os dois homens estavam mais longe e nunca se salvariam. Quase tão rápido quanto seus pensamentos, Vitor tentou agarrar algo… conseguiu! Se segurou, ainda que com dificuldade. Quase escorregou; foi problemático se manter firme. Corpo fraco e magro. Quase não tenho forças para me segurar. Vitor segurou-se na soleira de uma janela um andar abaixo do terraço — reflexos indiscutivelmente sobre-humanos.

    Merda! Que erro. O Vigia ficou muito distraído pensando no Apocalipse e não percebeu a aproximação dos dois homens. Quanto descuido! Pior, eles escutaram o nome de seu chefe. Inadmissível!

    Ele escutou os dois homens caírem no chão com um baque surdo. Mortos. Esforçou-se para subir e entrou pela janela, que por sorte encontrava-se aberta. Estava agora em um cômodo que era uma copa e sala. Desgraça! Normalmente seria simples fugir, apenas cairia para morte, morreria e nasceria em outro lugar. Porém, não podia deixar aquele grupo vivo; eles escutaram o nome do seu chefe, não podiam espalhá-lo, não podiam saber. Ninguém podia saber!

    Olhou a sala. Uma porta à esquerda e um corredor à direita. Foi até a porta. Uma cozinha. É disso que preciso! Foi até o armário mais próximo, puxou uma gaveta, depois outra e, na terceira, encontrou o que queria. Talheres! Seu olhar imediatamente desviou das colheres (poderia matá-los com isso, mas são muitos) e garfos (também poderiam ser úteis, mas não tão eficientes), indo direto para as facas de cozinha. Observou as facas pequenas: havia poucas, algumas nem tinham pontas ou lâminas afiadas. Então pegou três com ponta e de lâmina serrilhada — as mais afiadas que achou — e colocou-as no bolso. Abriu outra gaveta e… Agora sim uma faca de verdade! Pegou duas facas de chef, bem afiadas.

    Em outra ocasião consideraria mais o uso das colheres e garfos apenas pela diversão, mas não era o momento para esse tipo de estripulia. Logo saiu da cozinha e, na sala de jantar, examinou o corredor rapidamente; conduzia a um quarto. Virou-se e se dirigiu à porta do apartamento, que levava ao corredor externo. Colocou uma faca de chef na boca, mordendo o cabo, tal qual um dançarino de tango segurando uma rosa nos lábios. Como a chave se encontrava na porta, destrancou-a e a abriu, lenta e silenciosamente ao mesmo tempo que, através do reflexo da lâmina da faca de chef em sua mão, observou o corredor. À esquerda, vislumbrou dois homens, a cerca de sete metros, montando guarda junto a uma porta — era a entrada do terraço. À direita não havia ninguém. Os dois homens trajavam o mesmo estilo de roupas que aqueles do terraço e possuíam armas nas mãos.

    Vamos ver… Como vou chamá-los? O da esquerda será… Sr. Olho, e o da direita… Sr. Engasgo.

    Ainda com a faca de chef na boca e segurando a outra na mão direita, ele puxou duas facas de cozinha do bolso, segurando-as entre os dedos da mão esquerda, como um garoto tentando imitar aquele super-herói com garras. Deixou o apartamento que invadira com rapidez e, sem dar tempo para a reação dos dois homens, rodou o braço no ar com um movimento longo, disparando as duas facas de cozinha. Soltou uma e depois a outra — afinal, eram dois alvos. Nem se preocupou com o risco de errar. Os dois homens tombaram: o sr. Olho com a faca quase toda enfiada no olho, cujo ângulo acertava o cérebro; o outro, sr. Engasgo, jazia recostado à parede, com ambas as mãos entrelaçando e abraçando a faca que lhe perfurava o pescoço, tentando inutilmente parar o sangramento. Engasgava-se com o próprio sangue e olhava fixo para o Vigia, enquanto aquele líquido vital vazava por entre os dedos e melava sua roupa.

    Vitor caminhou lentamente para perto deles. Quando estava a menos de um passo de ambos, percebeu que o sr. Engasgo desmaiou. Não estava morto ainda, mas não ia durar muito, ainda mais agora que as mãos se afrouxaram e o sangue saía em maior quantidade.

    Quem são vocês? Um grupo estranho e armado, me caçando, tentando me capturar. Aposto nos Illuminati. Esses imbecis não desistem.

    Um barulho atrás; uma presença. Alguém. Vitor colocou a mão no bolso rapidamente, pegou a última faca de cozinha e virou-se, lançando-a, sem nem mesmo olhar antes. Podia saber onde se encontrava seu alvo pela sensação de calor e pelo cheiro. Mas sabia principalmente pelo barulho, pela maneira como o som chegava aos seus ouvidos. A faca acertou o pescoço de outro homem. Enquanto o sujeito caía, o Vigia analisou seu suposto inimigo, que, infelizmente, não o era. O homem que sangrava pelo pescoço, do mesmo modo que o sr. Engasgo, vestia pijama e havia saído do apartamento que Vitor invadira havia pouco.

    Uma pena, sr. Pijama! Lugar errado. Hora errada, pensou o Vigia, sem sentir remorso, pena, culpa; ou qualquer um desses sentimentos que um homem honesto teria ao matar um inocente. Voltando-se para os dois cadáveres dos sentinelas mortos, agachou-se, pegou a faca de sua boca e cravou na perna do sr. Olho, que jazia morto, e apanhou a arma caída de um deles. Analisou-a e atirou três vezes na cabeça do sr. Engasgo. Sem som alto, apesar de não ter silenciador, e a munição… eram dardos. Tranquilizantes? Paralisantes? Venenosos? Tranquilizantes, provavelmente.

    Com certeza querem me capturar usando tranquilizantes. Conhecem minha natureza. Illuminati na certa.

    Seria mais fácil apenas ir embora, ou ter se deixado cair lá de cima e morrido. Mas não podia. Os Illuminati escutaram o nome de seu chefe. Eles não podiam viver ou saber disso; a informação não poderia vazar.

    Matarei todos, decidiu-se novamente.

    Restava uma dúvida: deveria usar a arma para isso? Poderia apagar um grande número deles rápido; depois seria fácil matá-los. Seria simples… mas não. Perderia a graça! As armas de fogo acabaram com a graça nas lutas. O Vigia preferia facas, espadas e as próprias mãos. Era mais divertido assim e, no final, sabia que não conseguiria lutar a sério contra simples humanos — tinha completa certeza de sua vitória. Além do mais, fazia muito tempo que não matava desse modo. Seria bom se aquecer para quando começasse o Apocalipse. Para ele, matar pessoas era tão simples e natural quanto era para o maior matemático do mundo fazer a soma de um mais um.

    O Vigia jogou a pistola para longe e tirou a faca da perna do morto. Agora, tinha uma faca de chef em cada mão. A da esquerda, empunhada como um sabre: a ponta da faca posicionada à frente da mão, polegar à frente estacionado na guarda da faca, os dedos envolvendo firmemente o cabo e o pulso flexível. Um jeito bem rápido de mudar a empunhadura para a invertida. A da direita, invertida: a ponta da faca voltada para baixo, com o fio principal voltado para o lado oposto do braço e o polegar estacionado no pomo da faca. Bom para cortar e estocar.

    Abriu a porta empurrando-a com o ombro, silenciosamente, e começou a subir as escadas, quase agachado, pisando de leve e sendo cauteloso. Corpo magro e fraco, porém ágil e silencioso. Um a um.

    Enquanto virava à direita, pronto para subir o último lance de escadas, percebeu um homem parado no topo, perto da porta aberta do terraço, de costas para a escadaria. O homem era forte e calvo. Será o sr. Careca. Então, o Vigia avançou o mais cautelosamente possível e, quando se aproximou o suficiente… atacou. Em um movimento rápido, enfiou a faca da mão esquerda na lateral do pescoço do homem. Ela atravessou em diagonal e a ponta saiu pela frente, levemente à direita. Em seguida, puxou a lâmina para longe, abrindo um corte extenso no pescoço, que imediatamente jorrou um monte de sangue na parede. O sr. Careca agonizou em dor.

    Vitor observou rapidamente ao longe, pela porta, e identificou dois homens recostados ao parapeito do terraço, olhando para baixo. Sr. Último e sr. Penúltimo. Uns dois metros atrás, outra dupla conversava: um usava óculos e o outro tinha uma pequena tatuagem na lateral do pescoço. Sr. Dedo-duro e sr. Tatuagem. O sofrimento do sr. Careca fora rápido; o sangue no cérebro era insuficiente para sustentar seu funcionamento e seu corpo fraquejou. O Vigia visualizou um quinto que se encontrava mais perto da porta que levava ao terraço. Era grande e forte, mais até do que o sr. Careca. Sr. Músculos. O sr. Careca, por fim, despencou ao chão. Um sexto indivíduo, mais longe do grupo, estava com o celular em mãos e levava-o ao ouvido. Aparentemente, havia acabado de discar. Sr. Telefone. Todos armados. Pistolas. Já sabia quem deveria matar primeiro. Toda a análise ocorreu em uma fração de segundo, o corpo do sr. Careca nem tinha ido ao chão ainda; nenhum dos homens o havia notado.

    Quando o corpo do sr. Careca caiu, Vitor já tinha lançado uma das facas de chef que possuía, a da mão esquerda. Ela foi voando, em trajetória reta, passou perto do sr. Músculos e acertou o sr. Telefone, que estava com o celular na orelha esquerda. A faca perfurou a orelha direita, indo bem fundo. Apropriado. O sr. Telefone tombou. Vitor avançou pela porta e, ao passar pelo batente, notou: um calor vindo da direita, um barulho de respiração, uma presença, um cheiro de cigarro. Um homem, que o Vigia não havia visto, estava encostado do lado da porta. Sr. Cigarro. Apropriado também? O Vigia parou, deu duas estocadas rápidas exatamente por entre as costelas, ambas enfiando totalmente a lâmina de sua faca de chef para dentro. Uma no pulmão direito e outra no esquerdo. O sr. Cigarro não gritou — não conseguiria. Vitor girou a faca na mão, mudando a empunhadura para a de sabre, ergueu a ponta para cima e enfiou-a na base do queixo, uma estocada ascendente na direção do cérebro.

    Tirou rapidamente a lâmina do crânio do sr. Cigarro e correu para cima do homem forte e parrudo, sr. Músculos, que agora tinha se virado para lhe ver. Os outros quatro (senhores Último, Penúltimo, Tatuagem e Dedo-duro) também se viraram e já apontavam suas armas. O Vigia chegou bem perto do sr. Músculos — já de frente para ele e de costas para os demais, levantando a arma para atirar — e mudou de novo a empunhadura rapidamente para a invertida. Então, deu uma, três, cinco estocadas rápidas, todas no coração, em um ângulo levemente ascendente, enfiando toda a lâmina e retirando-a, fazendo com que um jorro de sangue acertasse seu rosto a cada golpe.

    Os quatro mais distantes finalmente reagiram e abriram fogo. Porém, o Vigia protegeu-se atrás do corpo parrudo e recém-esfaqueado do sr. Músculos, já sem vida. Corpo magro e fraco, porém ágil e fino. Dois a um. Entretanto, o sr. Músculos era pesado para seu corpo franzino, o que dificultava mantê-lo como escudo. Dois a dois.

    Então, com o sangue do sr. Músculos ainda espirrando em sua cara, de repente se lembrou de uma música, que ficou em sua cabeça. Então, nessa hora, começou a cantarolar. Enquanto isso, os quatro ainda atiravam desenfreadamente no corpo do aliado morto.

    I'm singin' in the rain

    Just singin' in the rain

    What a glorious feeling

    I'm happy again…

    Os homens disparavam loucamente; não percebiam que atiravam à toa. Mas o medo tem esse efeito em soldados inexperientes. Eles não agem de modo claro, não pensam direito, apenas tentam extinguir o mais rápido possível o motivo de seu terror. Se fossem mais espertos, se dividiriam e tentariam cercá-lo e atirar nele de um ângulo mais favorável, ao invés disso, apenas descarregaram toda a munição de tranquilizantes e que, por tanto, não transpassava o corpo do escudo humano.

    Uma vez findada a munição, todos tentavam, freneticamente, recarregar as armas e o Vigia, calmo, soltou o corpo e avançou.

    Come on with the rain

    I've a smile on my face

    I walk down the lane

    With a happy refrain

    Just singin'

    Singin' in the rain

    Dancin' in the rain…

    A música passava em sua cabeça, e seus lábios cantarolavam, enquanto a ação se desenrolava.

    O mais próximo era o sr. Dedo-duro, que fora o primeiro a descarregar a arma, mas já a tinha recarregado e se preparava para atirar. Você ficará vivo… por enquanto. O Vigia enfiou a lâmina da faca no antebraço pelo lado de fora, perto do pulso, cortando alguns tendões e a carne, e forçando o sr. Dedo-duro a soltar a pistola, incapaz de movimentar os dedos e a mão. Então, retirou a faca com agilidade e, então, girou o corpo, pegou impulso e deu um direto de esquerda no queixo do sr. Dedo-duro, fazendo-o recuar dois passos, perder o equilíbrio e desabar tonto. Os óculos dele voaram para longe. Após o soco, o punho esquerdo do Vigia ficou dolorido quase imediatamente, talvez até machucado de verdade. Corpo frágil. Três a dois.

    Bem próximo, o sr. Tatuagem partiu para um golpe, um soco na altura da cabeça, em semicírculo. Dava para ser mais previsível? O Vigia enxergou a trajetória inteira do golpe apenas com o começo do movimento do sr. Tatuagem. Então, abaixou-se e se moveu para a esquerda do oponente. O golpe passou por cima, sem acertar nada. O Vigia tinha uma habilidade incrível com facas, conseguia manejá-las com precisão mortal e mudar empunhaduras de modo extremamente rápido. Agora já estava de volta à empunhadura de sabre, com a ponta para cima, e enfiou-a no rim esquerdo do sr. Tatuagem, pelo flanco do corpo. Um grito de dor ecoou. Antes que ele se movesse, a faca entrou de novo pelas costas, dessa vez direto para o coração. A lâmina girou e saiu, com um borrifo de sangue. O Vigia mudou a posição da faca para invertida, lâmina para baixo, e lançou o golpe no sujeito mais próximo…

    No entanto, deteve o golpe a milímetros da testa do sr. Último. Não! Não você. Agachou com rapidez, dois tiros passaram por cima da sua cabeça. O sr. Penúltimo estava perto e atirou à queima-roupa. Mas o Vigia sabia muito bem como antecipar o golpe de adversários, até mesmo sair da trajetória de flechas e, mais tarde, de armas de fogo também (é claro, se a situação fosse favorável e muito favorável). Ele avançou, dando dois passos de lado, segurou a mão do sr. Penúltimo, que estava com a arma, trocou a empunhadura para sabre de novo e enfiou-a na base do queixo, uma estocada ascendente na direção do cérebro, como fizera com o sr. Cigarro. Retirou a lâmina do crânio do sr. Penúltimo, trocou a empunhadura mais uma vez para invertida, girou sobre os calcanhares, ganhando força e velocidade com o movimento, e, enquanto o sr. Último permanecia atônito por não ter morrido naquele golpe, enfiou a faca bem no centro da testa dele. Morto.

    … Dancin' and singin' in the rain…

    No mesmo momento, o Vigia terminou de cantarolar a música em sua cabeça. Uma versão bem mais curta do que a normal, digamos, descartando solo e sapateado. Sincronia impecável.

    Vitor apoiou a mão na cara do sr. Último e fez um esforço para retirar a lâmina da testa dele. O sangue da lâmina respingou uma vez mais no rosto, roupas e braços do Vigia, apesar de ele não estava machucado. A não ser pela dor em suas mãos pelo esforço de segurar-se durante a queda do terraço, pelo soco e por segurar o punho da faca com firmeza, além do leve cansaço por puxar a lâmina dos corpos que ele acertara com a faca. Não é tão fácil retirar uma faca depois de enfiá-la em alguém; é preciso certa força — algo que seu corpo atual não possuía em abundância.

    Virou-se e reparou no sr. Dedo-duro, que acabava de se sentar, ainda meio grogue, segurando o antebraço ferido. Então, Vitor caminhou até ele, que se virou e se jogou, caindo de barriga para baixo, na tentativa de alcançar a arma. Quando estendeu a mão ilesa para pegar a arma, a faca desceu, perfurou-lhe o topo da mão e saiu pela palma. A faca foi retirada quase com a mesma rapidez que entrou. O sr. Dedo-duro puxou a mão para perto do corpo, por instinto, mas apenas após alguns segundos sua mente consciencializou o ferimento. Então, ele gemeu por entre os dentes, mas a mescla de medo e surpresa na presença do Vigia, lhe fez restringir o grito. Um durão?, pensou Vitor, empurrando a arma para longe, depois se agachou, segurou o queixo do sr. Dedo-duro com a mão esquerda e levantou o olhar dele, para que o fitasse nos olhos. E colocou a ponta da faca a milímetros de um dos olhos dele.

    — Agora, sr. Dedo-duro. Você me contará algumas coisas — o Vigia ordenou, com um sorriso diabólico no rosto, que botaria medo em qualquer homem. — Ou desejará ter morrido como seus colegas.

    Cap 1

    Agora. Agosto de 2018.

    Em algum lugar.

    Em algum momento depois do Marco Um.

    Daniel estava em um lugar totalmente branco; não havia nada além dele até onde sua visão alcançava. Era impossível saber se havia um teto ou se aquele era um céu branco, se tinha paredes ou se o lugar onde estava se resumia apenas a essa cor. Tudo mesclado; não havia diferença de cor, quinas ou sujeiras. Daniel pisava no chão, ou no próprio ar, e não poderia ter certeza, pois nenhuma sombra era projetada, mas sentia-se em pé. Era Daniel, e apenas ele, em um grande e imenso branco, mas não ficou assim por muito tempo.

    Ao longe, Daniel viu Lucas, seu colega de serviço, seu Companheiro de Guerra, imóvel, segurando uma arma calibre doze nas mãos.

    — Você me deixou morrer! — afirmou Lucas.

    Daniel não teve resposta. Lucas então encostou o cano da arma embaixo do maxilar. Daniel, ao ver essa cena, começou a correr, tentando gritar, pedir que ele não fizesse isso, mas sua voz não saía. Daniel corria e corria, mas não conseguia se aproximar de Lucas. Logo, o estrondo da arma ecoou. Daniel viu seu amigo se matando, a cabeça sendo transpassada pelo potente tiro da calibre doze, um rombo sendo aberto, os ossos do crânio sendo destruídos e a massa cerebral voando pelo ar junto ao sangue.

    Daniel tentou fechar os olhos, mas não tinha controle total de seu corpo e foi obrigado a presenciar aquela cena novamente.

    Atônito e assombrado pela imagem, escutou a voz de Roberto o chamar. Ele girou a cabeça com lentidão, olhou para trás e vislumbrou Roberto, parado a alguns metros de distância.

    Antes que Daniel pudesse fazer, dizer ou sequer pensar em algo, a cabeça de Roberto começou a se expandir e explodiu em câmera lenta, de modo que Daniel pôde ver detalhes que preferia nunca ter visto. Daniel caiu de joelhos, desesperado. O branco do ambiente foi coberto por vermelho, seguido por uma chuva de sangue e pela angustia de Daniel, sentindo o sangue pingar e escorrer pelo seu corpo.

    Olhando para baixo, ele viu o reflexo de Amanda em uma poça de sangue. Não era bem um reflexo, parecia mais uma janela que mostrava outro lugar. E, nesse lugar, Amanda estava em pé, nua e sangrando pela boca, nariz, olhos e ouvidos, enquanto dizia e repetia:

    — Você me matou. Matou a todos nós.

    Um Dia Normal

    Antes. Agosto de 2018

    Cidade de Marazul, Brasil.

    Aproximadamente oito horas antes do Marco Um.

    Daniel acordou, levantou-se subitamente, no embalo, e se sentou na beirada da cama. Zonzo, forçava o sono para fora do corpo e lutava contra a vontade de se deitar novamente. A música conhecida e agradável do despertador parecia tocar bem distante. Daniel sabia que, se deitasse, seria muito mais difícil para se levantar. Da mesma maneira, caso não tivesse levantado no embalo, estaria bem mais indisposto a sair da cama, pois não dormira quase nada e esse fato, apesar de lhe ser familiar, não acontecia há um bom tempo. O volume da música ficou mais alto, cortando o silêncio da manhã com pujança. Daniel desligou o despertador. Não estava disposto a ouvir música naquele momento apesar de gostar bastante daquele som e já usá-lo há algum tempo como toque do alarme (por incrível que pareça, ainda não havia enjoado dela, o que era incomum já que, normalmente, qualquer música usada como despertador se tornava um toque desagradável, associado ao interromper de seu doce sono).

    Seu desânimo persistia há três dias e não tinha motivo aparente. Na noite anterior, foi assombrado pela solidão e pelo vazio em seu peito, o qual foi capaz de afastar por pouco tempo usando o mundo dos videogames — a sua válvula de escape predileta que lhe fazia esquecer da realidade cotidiana. E, para completar, sua velha companheira, a insônia, lhe visitou até tarde da madrugada. Uma situação que há tempos não ocorria. Sabia muito bem que poderia ser a depressão de novo e quis ter seus antidepressivos ali — mas não tinha. Olhando para a mesa de cabeceira velha, abriu a primeira gaveta e observou-a por um tempo na vã esperança de encontrá-los. Daniel tinha plena consciência que não havia mais nada ali, mas era onde guardava seus remédios antidepressivos quando usava, bem antes de se mudar para essa casa nova. Casa nova, mesa de cabeceira antiga e problemas recorrentes.

    Os remédios contribuíam para regular sua animação e sono, e diminuíam sua libido, um efeito colateral da maioria dos antidepressivos e que era muito bem-vindo, já que não queria nem conseguia saciar o desejo carnal com alguém. Porém, como todo ser humano comum, seu desejo estava presente e o incomodava. Isso acabara levando-o a se autossatisfazer na noite anterior e, logo em seguida, apesar de saciado, ficara mais desanimado. Ainda hoje sentia-se culpado por ter se masturbado, muito graças a sua criação católica que, apesar de abandonada, ainda tinha raízes profundas.

    A sensação de sonolência ainda se fazia presente; suas pálpebras estavam pesadas. Não conseguia lembrar se havia sonhado, e, dessa forma, mais um dia supostamente normal teve início. Familiarizado com esse tipo de manhã e que, apesar de ruim, era bem melhor do que muitos outros começos de dias que já teve, fechou a gaveta da mesa de cabeceira e fez um esforço consciente para se animar.

    Não preciso de remédios!, pensou sem muita convicção, eu consigo, é apenas mais uma manhã normal, já passei por coisa pior. Tudo vai melhorar. Preciso viver, e não apenas sobreviver… não posso decepcionar meu tio. Não posso decepcionar meu tio… nem minha família… ou o que sobrou dela. Sua falecida mãe surgiu em seus pensamentos, o coração doeu e os olhos deixaram escapar lágrimas sutis. Já não era tão difícil se lembrar dela, mas, mesmo assim, ainda doía. Meramente dor e algumas lágrimas eram uma tremenda evolução quando o assunto era sua mãe.

    Daniel deixou o corpo cair sobre a cama, onde permaneceu pensando em nada. Ficou parado ali por minutos. Seu sono havia passado e, absorto na própria mente vazia, contemplava fixamente o teto da casa, sem vontade de desviar o olhar, quase hipnotizado.

    O alarme do celular começou a tocar a mesma música. Por achar que teria problemas para acordar de primeira, Daniel havia se antecipado e programado o celular para tocar uma segunda vez cinco minutos após o primeiro toque.

    Por um momento, atentou-se à letra da canção e, apesar de não saber inglês, já havia lido e sabia o que aquela parte falava: Este não é o fim, este não é o começo…. Vivemos o nosso intervalo na Terra. Somos apenas uma vírgula na existência tentando evitar o ponto-final, pensou Daniel, lembrando-se de uma frase do seu antigo psicólogo. Infelizmente, ele não esperava que essa parte da música teria um sentido tão mais profundo no dia de hoje.

    Nada melhor que um dia após um outro dia.

    Como todos os dias, Daniel se preparou para o expediente que lhe aguardava. Banho, desjejum, uniforme e uma blusa de frio para esconder o logotipo da empresa na blusa. Por fim, guardou o celular no bolso lateral da calça e a carteira no bolso traseiro. Não se esqueceu de colocar no pulso direito o costumeiro relógio analógico antigo. Por último, tateou os bolsos a fim de verificar se tudo estava ali — algo que Daniel fazia com bastante frequência, normalmente depois de se arrumar. Em seguida, saiu de casa, trancou a porta e o portão e foi caminhando até o ponto de ônibus mais próximo.

    No caminho, sofria com antecedência ao pensar que novamente pegaria um ônibus lotado — mal saíra de casa e já estava preocupado. Naquele dia, estava mais cansado da rotina do que o habitual. A condução não demorou a chegar e logo que parou, outras pessoas se apressaram para entrar. Mas não Daniel, que continuava perdido em seus pensamentos: Não sei por que tanta pressa pra ficar apertado como gado. O ônibus já está cheio mesmo… E entrou por último. Ao olhar para o motorista, percebeu-o estressado. Não houve cumprimento entre eles, mesmo sendo algo habitual apesar de não se conhecerem de verdade.

    Motorista de ônibus, que profissão mais estressante, hein? Deveriam ganhar mais para isso. Afinal de contas, não transportam objetos, mas sim pessoas, a carga mais preciosa que existe. Infelizmente o dinheiro que eu transporto vale mais que uma vida… pelo menos para alguns. Daniel se solidarizava com o motorista, pois ele próprio trabalhava no segmento de transportes. A única coisa que mudava entre os seus empregos era o tipo de carga que levavam. Para ganhar a vida, Daniel transportava dinheiro, e achava que recebia pouco para o risco que corria diariamente. Porém, poderia apostar que ganhava mais que aquele motorista, mesmo com o incrível aumento da criminalidade e dos roubos a ônibus nos últimos meses.

    Daniel pagou a passagem e permaneceu em pé no meio do veículo lotado. As pessoas dentro do ônibus mal se olhavam e, por algum motivo, um jovem de uns vinte anos sempre chamava a atenção de todos. Naquele dia, encontrava-se sentado nas últimas cadeiras do lado esquerdo, ao lado da janela, com uma feição paranoica e as mãos trêmulas. O rapaz sempre pegava esse ônibus, sempre se sentava no mesmo assento e sempre agia do mesmo modo. Hora ou outra, o garoto colocava as mãos no rosto, tampava os olhos, abaixava a cabeça levemente e permanecia imóvel embora ainda tremendo, em geral com a respiração ofegante e acelerada. Algo no ambiente parecia assustá-lo — e assustava. Depois de certo tempo, ele tirava as mãos do rosto e investigava ao redor. Daniel não tinha certeza se o rapaz notava, mas o jovem Natanael sabia como as pessoas o olhavam — como se ele fosse um louco. As pessoas no ônibus normalmente comentavam sobre ele, algumas diziam: Olha como ele age estranho!. Outras falavam: Se liga só, está assim todo dia, aposto que é usuário, e outras ainda o encaravam e riam baixinho. Essa última reação era a que mais o machucava. Uma das coisas que Daniel aprendeu com seu pai foi que palavras não machucam o corpo, mas podem destroçar sentimentos, o que pode ser deverás pior.

    Havia também quem preferia não falar nada, com medo do jeito como o jovem agia. Daniel observava a cena e se compadecia dele, pois sabia como era estar em uma posição parecida. Toda viagem ocorria da mesma maneira, e Daniel até sentia vontade de falar com Natanael, de ajudar alguém assim, mas nunca se predispôs a fazê-lo e se limitou apenas à curiosidade por trás de tal comportamento.

    Qual será o problema dele?

    No futuro, Daniel terá a oportunidade de interagir com Natanael, mas não da maneira que esperaria — logo, logo tudo se tornará mais imprevisível do que ele jamais imaginara. Porém, agora, Daniel continuou tentando adivinhar o problema do jovem desconhecido enquanto o ônibus enfrentava o transito congestionado. Além do ônibus cheio, havia muitos engarrafamentos nas avenidas principais da cidade, em virtude do grande número de carros. Como o ônibus era obrigado a circular por tais ruas, o estresse de ficar preso em um ônibus lotado numa avenida parada era rotineiro e desgastante. Além do mais, ele morava a uma distância considerável de seu local de trabalho, apesar de ser na mesma cidade. Por causa desse pequeno empecilho diário no trânsito, o tempo de locomoção demorava até três vezes mais.

    Embora devagar, o tempo passou e, ainda distraído com o jovem paranoico, Daniel percebeu que estava quase na parada onde desceria. Ele se moveu ao longo do veículo, pedindo licença e passando até o fundo, puxou a corda e deu o sinal para descer na próxima parada.

    Daniel desembarcou do ônibus numa rua bem movimentada tanto por carros como por gente. Várias pessoas passavam por ali e sequer olhavam para o rosto dos demais, sempre atarefados em excesso — viviam aceleradas, em busca de ganhar mais dinheiro. Algumas achavam que o dinheiro era capaz de tudo, inclusive de trazer felicidade, alegria, paz e amigos. Elas mal sabiam o quanto estavam enganadas e, antes que o dia acabasse, perceberiam que o dinheiro é, de fato, somente um pedaço de papel.

    Sentado no chão, um morador de rua pedia esmola. Daniel aproximou-se do pedinte e lhe entregou duas moedas de um real, o troco da passagem. Sabia que não era muito, mas era o que tinha. Seguindo seu caminho, Daniel virou a esquina com a mente fervilhando de reflexões sobre as pessoas. Normalmente, eram as que tinham pouco que acabavam parando para ajudar moradores de rua; por sua vez, as pessoas que aparentavam ter muito sequer o fitavam, satisfeitas em ignorá-lo tal qual o sistema fazia.

    Não dá quem tem, dá quem quer bem. Lembrou-se de um dos vários ditados e provérbios que guardara na mente graças à sua prima.

    Após andar duas quadras, dobrou outra esquina e se deparou com um muro enorme com cerca elétrica percorrendo todo o seu topo. O muro cercava todo o lote cuja única entrada era um portão automatizado espaçoso e resistente. Ao lado do portão, havia uma guarita blindada, que abrigava dois guardas. Parecia um pequeno castelo. No muro, logo acima do portão, havia uma placa ampla na qual estava escrito GRUPO MARAZUL e, logo abaixo, em letras menores, mas bem legíveis serviços de segurança. Era uma daquelas empresas que levam o nome da própria cidade em que está localizada.

    Ao se aproximar do portão, os dois seguranças na guarita reconheceram Daniel e logo liberaram o seu acesso à propriedade. Ele entrou e rapidamente o portão se fechou atrás de si, revelando um prédio imponente de três andares erguido no centro de um estacionamento, onde haviam parados alguns carros comuns e um carro-forte mais ao canto, perto do lava-jato da empresa. Ele atravessou o pátio, rumo ao edifício, onde entrou e cumprimentou Betânia, a recepcionista do local e uma graciosa senhora de idade. Sem demora, bateu o ponto e se dirigiu até uma sala especial que servia como quarto de descanso e vestiário — usavam os banheiros dela para isso — das equipes de vigilantes. Ali, encontrou seus amigos e companheiros de guerra: Lucas, Roberto e Amanda.

    Companheiros de guerra

    Os três companheiros de guerra de Daniel estavam sentados em uma mesa redonda, de quatro lugares.

    — Bom dia! — saudou Daniel, dirigindo-se aos três.

    — Fala, Senninha, Cinco-Cinco? — disse Roberto.

    — Cinco-cinco dobrado — mentiu Daniel, já que não estava bem de verdade. No entanto, era apenas uma mentira boba e comum. Quem realmente responde o que está sentindo?, divagou ele.

    — Bom dia, Daniel! — cumprimentou Amanda, com voz serena.

    — Bom! — Lucas saudou sem demora e voltou a encarar a tela do celular.

    Daniel sentou na cadeira vazia à mesa, ao lado de Amanda e Lucas, e de frente para Roberto.

    — Dirigindo muito, Senninha? — perguntou Roberto, jocosamente.

    Senninha. Daniel recebera esse apelido do próprio Roberto, e somente ele o chamava assim. Tudo porque Daniel se dizia um bom motorista, e como Roberto era fã de Fórmula 1, resolveu chamá-lo de Senninha. Roberto era um sujeito estranho, apesar de bastante brincalhão. De estatura mediana, pele branca e com uma barriga saliente, ele aparentava ser mais velho do que os trinta e dois anos que de fato tinha.

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