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A Bondade Em Meio A Barbárie
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A Bondade Em Meio A Barbárie
E-book446 páginas5 horas

A Bondade Em Meio A Barbárie

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Sobre este e-book

Caros leitores e leitoras, os ensaios que vocês têm em mãos são frutos de pesquisas que realizei acerca da bondade a partir do testemunho do Holocausto, isto é, de diários, cartas, autobiografias e outros textos escritos por pessoas vítimas dos regimes político nazista e comunista durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). As pesquisas envolveram outras temáticas afins como memória, trauma, dialogicidade e fascismo. Alguns destas foram publicadas em revistas científicas e eventos acadêmico-científicos, outras circularam apenas entre amigos e amigas com os quais compartilho amores, paixões e esperanças. Todos os ensaios sofreram alterações para a presente publicação.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento22 de jun. de 2020
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    Pré-visualização do livro

    A Bondade Em Meio A Barbárie - Marcio Bruno Barra Valente

    Muito mais que lembrar

    Elizabeth Samuel Levy

    Mestra em Psicologia pela Universidade Federal do Pará

    Lembrar para não esquecer é o grande mote deste livro? Não! Vai para além disso, vai para uma série de significantes que tem a ver com barbárie e com bondade, com o estranho e com o familiar que habita em nós. Falar para simbolizar a dor, ouvir para suportar a dor do outro... Ah quanta coisa para dizer da vivência do sentimento de desamparo e do desamparo da sobrevivência.

    Em cada ensaio se entrelaçam os testemunhos de sobreviventes do holocausto, em seus dramas no real do corpo, nas suas marcas psíquicas indeléveis e nas ressonâncias que perduram de um tempo que nunca vai passar? Tempo de não esquecer mesmo, tempo que (de)marca a história. Mas, e a bondade? Sim! ela é quem sustenta não somente o interessante e inédito destes ensaios, mas o autor em si. Ele trabalha com o coração na ponta da caneta e a empatia no olhar, como se pegasse emprestado um pouco da experiencia de cada testemunho e apostasse na imortalidade das memórias.

    Márcio Bruno Barra Valente carrega consigo dois sobrenomes que dizem o que acho dele. Barra parece honrar uma força que ao mesmo tempo teme e resiste, Valente me remete a coragem, em especial neste momento, de escrever sobre uma temática tão dolorida e ao mesmo tempo tão necessária ontem, hoje e sempre. Mas, introduzir a palavra bondade, diz deste autor que transita em seu pensamento de crer no ser humano e ao mesmo tempo saber da desumanidade deste mesmo ser... A sensibilidade que sustenta sua obra nos atravessa pela beleza empática de sua escrita e das precisas palavras no lugar certo. Conversa com seus autores referenciais de maneira intima, como se fosse um interlocutor.

    O extermínio de judeus e não judeus na segunda guerra, mas também considerados minorias excluídas, aponta para algo que vemos ainda hoje, a dificuldade nas diferenças, na diversidade.

    Porque incomoda ser diferente, mas diferente em quê? Não adentrarei no conteúdo nazifascista, mas me apoiarei aqui no horror do ódio, da intolerância, da maldade, da perversidade em alto grau que assolava e desolava estes sujeitos sem direitos sequer de (sobre) viver, simplesmente por pensarem ou serem diferentes fisicamente e ou culturalmente. Mas, nem todos pensavam assim. Havia os que eram simplesmente humanos. Os que possuíam em suas essências o sentido da ajuda, da empatia da misericórdia e fundamentalmente da bondade. Não precisamos ir tão longe pra reconhecer que até hoje muita coisa não mudou... Mas, vamos nos deter em como cada testemunho sobreviveu em sua forma de enfrentamento?

    Quais os caminhos possíveis que possam dar vasão às pulsões de vida e de morte acorrentadas em cada suspiro? Como tentar colocar dor em palavras? A arte, os livros, a música a pintura, a fala, a escuta e outras sublimações podem facilitar alguma elaboração do que foi vivido. Como disse Primo Levi escrevi para me livrar daquilo que era tão pesado e por entender o dever moral, civil e político do testemunho. Dar um sentido ao trauma, o faz não menos dolorido, mas possível de ser revisitado.

    Ao visitar o Museu do Holocausto Yad Vashem em Jerusalém em 2019, tive a vivência da emoção a flor da pele e na pele. Uma espécie de embrulho no estomago me tomava em uma emoção visceral ao adentrar nas salas visitadas que projetavam as imagens da barbárie ocorridas nos guetos e campos de concentração nazistas.

    Mas, ao sair, no jardim do museu, senti um súbito apaziguamento em meu coração, além da beleza do lugar, as flores e a paisagem incrível, veio a sensação da bondade eternizada pelas homenagens aqueles que ajudaram na sobrevivência e na revivescência de cada história de vida e de morte durante a segunda guerra. Aqueles que podemos chamar de justos, os homenageados.

    Eram muitos em cada árvore havia um nome, alemães, poloneses, húngaros, russos, brasileiros ou outros povos comuns que ajudaram amigos, vizinhos, colegas de trabalho e desconhecidos, simplesmente por seus gestos de lealdade aos seus próprios desejos de tratar o outro como a si mesmos, poderíamos chamar de bondade? de justiça? de amor ao próximo? de compaixão? Temos que nos lembrar disso!

    Atravessar o tempo e nos humanizarmos, apostar na bondade, na centelha de sensibilidade que existe em cada um de nós, faz com que queiramos ler cada ensaio deste livro e viver junto com o autor e seus autores referenciais a experiencia de escutar os relatos emocionantes dos sobreviventes e a viagem pelos tempos sombrios de muitas guerras em uma só.

    O trabalho da memória talvez seja comparado ao trabalho do luto. Para que se elabore algo de ordem traumática se faz necessário recordar repetidas vezes. Para que a dor seja representada e expressa, serão necessários investimentos internos e externos. Escrever sobre os testemunhos dos sobreviventes, sobre as dores dos que passaram pela barbárie é dar voz eterna para que o trauma tenha um significado e vire memória para não ser esquecida!

    Somos fadados a finitude? Sim! A vida é transitória, a morte está contida nela. A diferença se estabelece entre morrer e ter que morrer...

    Não tenho como não mencionar Freud em seu texto Sobre a Transitoriedade (1915) em que afirma que a Grande Guerra radicalizou a transitoriedade dos objetos, do acervo cultural e dos bens materiais e ideais da cultura. Nesta nova organização mundial, Freud se questiona sobre os limites e possibilidades do trabalho de luto, posto que a guerra destrói não apenas as belezas da natureza e as obras de arte, mas, igualmente e de forma jamais vista, as mais nobres aquisições da cultura, deixando nua nossa vida pulsional do sujeito (...) [ela] desacorrentou nossos maus espíritos, que acreditávamos permanentemente domados por décadas de educação por parte de nobres predecessores (FREUD, 1915)

    Cada capítulo deste livro é um ensaio de grande relevância sócio-histórica e o autor nos convoca a pensar com ele sobre a vida que num contexto de miséria e ódio pode haver solidariedade e bondade. Veremos aqui histórias que envolvem sofrimento, morte, preconceito, intolerância, injustiça e tantos outros adjetivos para a barbárie. Porém, Márcio Valente nos faz olhar para o lado e enxergar o que chama de bondade, mesmo frente ao desamparo humano e atravessado pelo mal estar, o leitor pode sentir um certo acolhimento. Fundamentalmente porque o autor tem a bondade de nos levar a sentir empaticamente o que é estranho e familiar em nós, de nos identificarmos com algo que nos escapa, mas nos invade o coração e nos posiciona a refletir sobre nossa existência, sobre quem sabe, se colocar um pouco que seja, no lugar do outro.

    16.05.2020

    Prefácio

    Fernando César Costa Xavier

    Professor Associado da

    Universidade Federal de Roraima

    Foi Theodor Adorno quem afirmou que a educação, no pós-guerra, e para sempre, deveria ter como tarefa primordial evitar que Auschwitz se repetisse. Ele falava isso pela rádio, a quem quisesse ouvi-lo, ali por abril de 1965. Falava com a temperança que o permitia a relativa distância cronológica do fim da guerra e do ocaso do regime nazista, e com a serenidade de quem se aproximava do fim – ele morreria dali a quatro anos e pouco, em agosto de 1969.

    A mensagem de Adorno – que ele colocava como uma exigência fundamental – era tão direta quanto possível: somente com a educação e com o esclarecimento seria possível impedir que surgissem aquelas pessoas de existência trivial que aceitam, mesmo contra os seus próprios interesses imediatos, servir como a ferramenta e a mão daqueles que dos seus gabinetes planejam e defendem a barbárie. Estes sempre existiram, acreditavam Adorno e Walter Benjamin. Mas aqueles outros, os que banalizam o mal, sem qualquer convicção, esses poderiam ser chamados à razão e convencidas a serem dignas de si mesmas. Movia-o a esperança de tal sorte resoluta, que referia como um alguém recuperável pela educação Oswald Kaduks, que foi chamado de Satanás de Auschwitz pelos prisioneiros do campo.

    Pois bem, se é verdade que a educação e o esclarecimento são essas armas poderosas capazes de impedir que a humanidade afunde novamente nas trevas e no horror, movida tanto pela ignorância quanto pela indiferença moral, então este livro que agora chega às mãos do leitor, A BONDADE EM MEIO À BARBÁRIE nos testemunhos de sobreviventes do Holocausto e outros ensaios, é uma preciosa compilação que dá corpo ao projeto adorniano.

    Há muitas formas de educar com vistas a impedir novos holocaustos – ou, mais propriamente, a impedir que pessoas comuns se engajem involuntariamente neles. O filme de 2016 Negação (Denial) traz novamente à tona o fantasma do negacionismo e do revisionismo histórico, o qual, aliás, não pode ser subestimado em tempos de recrudescimento de conservadorismos extremados.

    Neste livre, o psicólogo e professor Márcio Bruno Barra Valente também lida com fantasmas. Não aqueles que ameaçam a democracia e os direitos humanos sob a forma de visões e ações extremistas interessadas em reabilitar o horror do passado. Os fantasmas com que lida são aqueles com que tiverem de lidar os sobreviventes desse episódio absurdamente terrível de história da humanidade.

    O livro escolhe falar sobre a bondade, sobre a bondade como sendo a única linguagem capaz de dar sentido ao absurdo do holocausto. Ele assim concilia a tarefa primordial da educação de Adorno, de evitar a repetição do absurdo, com o hino fundamental defendido por Paul Ricoeur, a saber, aclamar a bondade como uma resposta ao mal e ao sem-sentido.

    O pano de fundo não é a história, nem a história geral, nem as histórias pessoais de cada sobrevivente. O livro está interessado em mostrar como os sobreviventes, de Anne Frank a Primo Levi, ao construir relatos cheios de dor sobre suas experiências traumáticas, estavam interessados, acima de tudo, em construir uma narrativa que tanto os lembrasse de quem eram, quanto indagasse aos fortuitos leitores quem eles foram. Uma memória e um diálogo, enfim.

    Com estilo envolvente, rigor acadêmico e escrita de fina sensibilidade, os vários eloquentes relatos de sobreviventes são reunidos e examinados nos detalhes que cada um deles entrega. A riqueza desses relatos é tão grande quanto a dificuldade de linguagem de transformar traumas em palavras. Mas não há dúvidas de que a tarefa de levar adiante esses testemunhos é gloriosa. Hanna Arendt lamentou demasiadamente pelos judeus austríacos que sucumbiram ao desespero em 1938, suicidando-se em massa sem deixar qualquer explicação ou acusação.

    Este livro agradará a todos e a todas que têm esperança na humanidade, apesar de tudo. As lições dos testemunhos são preciosas e fundamentais, tanto mais para lembrarmos que a bondade é a melhor resposta para o absurdo; não é, todavia, capaz de impedi-lo, senão o esclarecimento e o cultivo coletivo da memória.

    Boa Vista. 04.03.2020.

    Apresentação

    A bondade não é somente a resposta ao mal, mas é também a resposta ao sem-sentido. [...] E penso que aclamar a bondade é o hino fundamental.

    Paul Ricoeur

    Caros leitores e leitoras, os ensaios que vocês têm em mãos são frutos de pesquisas que realizei acerca da bondade a partir do testemunho do Holocausto, isto é, de diários, cartas, autobiografias e outros textos escritos por pessoas vítimas dos regimes político nazista e comunista durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945). As pesquisas envolveram outras temáticas afins como memória, trauma, dialogicidade e fascismo. Alguns destas foram publicadas em revistas científicas e eventos acadêmico-científicos, outras circularam apenas entre amigos e amigas com os quais compartilho amores, paixões e esperanças. Todos os ensaios sofreram alterações para a presente publicação.

    Dos primeiros escritos até a versão final transcorreram oito anos. Tudo começou em 2013, quando comecei a trabalhar na Faculdade de Ciências Humanas ESUDA (PE-Recife) e tive a oportunidade de me aproximar do Grupo ESUDA de Interlocução Acadêmica (GEIA). Um grupo formado por docentes, mestres e doutores, que tinha como objetivo coordenar as atividades de Iniciação Científica e de Monitoria estudantil, assim como de suscitar e acolher a paixão pelo ensino e a pesquisa acadêmica entre os discentes.

    Minha estrada efetiva no GEIA aconteceu um ano depois, quando assumi uma vaga na linha de Pesquisa Saúde e Sociedade com o projeto Crise de sentido e diálogo: a educação de caráter de Martin Buber. Naquele momento, as dúvidas, aflições e questionamentos que me animavam giravam em torno do tema do sentido da vida, sendo encaradas a partir das questões: em que condições pessoais e históricas sofremos de falta de sentido e como a enfrentamos?

    Durante os estudos e pesquisas sobre a crise de sentido que começaram meus primeiros contatos com autores como Tzvetan Todorov, Vassili Grossman e Primo Levi. Respectivamente, um filósofo búlgaro, um proeminente escritor e jornalista russo e judeu – perseguido pelo regime comunista –, e um escritor e químico judeu sobrevivente do Holocausto. A leitura de suas obras reaqueceu em mim a paixão pelo desconhecido e pelo reaprender a pensar de maneira distinta do que costumava pensar. Essa experiência me impelia à possibilidade de perceber o mundo diferentemente, o que, sem dúvida, é necessário para que se continue a ver, escutar e refletir sobre a vida. Dito isso, sentia mais e mais a necessidade de modificar os rumos do projeto que começara.

    Porém, o ponto de decisão foi quando estudei a pesquisa de Agnes Grunwald-Spier, historiadora, cientista política e sobrevivente do Holocausto, na qual investiga as motivações de indivíduos não judeus que arriscaram suas vidas e de seus familiares para salvar judeus durante a Segunda Guerra Mundial. O que motivaria uma pessoa a se ocupar com outra pessoa em sofrimento, sendo essa estranha e não familiar? Senso de dever. Altruísmo. Heroísmo. Consciência Humanitária. Glória. Princípios religiosos. Dinheiro. E o que significaria, para a pessoa de fato, ter sido salva por outra? Milagre. Dádiva. Dívida impagável. Constrangimento. Fraqueza. Absurdo. Redenção. O testemunho da ajuda pelos sobreviventes me inquietava substancialmente, sendo ele percebido e refletido por Todorov e Grossman, mas sob o nome de bondade.

    Deste modo, cresceu meu interesse pelos testemunhos do Holocausto. Por exemplo, os Diários de Anne Frank, Mary Berg, Helga Weiss; as autobiografias de Thomas Buergenthal, Eva Schloss, Aleksander Henryk Laks; os livros de memórias de Nonna Bannister, Ruth Klüger, Jorge Semprun; assim como os escritos de Chil Rajchman, Mietk Pemper, Robert Antelme, Elie Wiesel, Levi e outros. Embora identificasse sentimentos contraditórios à leitura de cada testemunho, percebia também fascinação quanto ao fato daqueles escritos nascerem não de habilidades literárias ou pretensões artísticas, mas da necessidade de narrar para o outro sobre o que foi vivido, de ser reconhecido a partir disso e ser confirmado quanto às necessidades decorrentes do que se viu, escutou, sentiu e se perdeu, enfim, dos sofrimentos e danos decorridos.

    Dito isso, não havia mais tempo a perder. Planejei a mudança no meu projeto e a encaminhei para a coordenação do GEIA. Isso coincidiu com a chegada de dois bolsistas de Iniciação Científica, os quais já tomaram ciência da alteração do foco de pesquisa. Permaneci na mesma linha de pesquisa, sendo o novo projeto Intermitências do humano: um estudo sobre o testemunho da bondade a partir da literatura do Holocausto. Agora, estávamos voltados a investigar o sentido da ajuda recebida pelos sobreviventes, a partir de seus diários, livros de memória, autobiografias e outros, a fim de problematizarmos as relações entre a ética dialógica, a violência e o estado de exceção.

    Nossa hipótese era de que, mesmo em situações extremas, no caso, impostas pelo conflito armado, ainda seria possível o estabelecimento de relações de ajuda. Entretanto, mais do que possibilitar uma sobrevivência, por vezes, a ajuda recebida foi sentida como restituidora da experiência de sentir-se humano ou mesmo de acreditar na humanidade. Por isso, optamos por utilizar a expressão bondade tanto para nos referirmos a ajuda em si mesma quanto à experiência redentora descrita pelos sobreviventes.

    Ao longo dos anos que se seguiram, pudemos nos dedicar à investigação sensível e reflexiva acerca dela e do que ela passou a envolver. Por exemplo, nos últimos anos, a questão do fascismo se tornou mais emblemática enquanto no início a ênfase era a experiência da bondade. Ademais, ressaltamos que todos os escritos são de natureza ensaística e exploratória quanto às questões do testemunho, dos sobreviventes, da relação de solidariedade em um contexto de miséria, ódio e conflito armado, dentre outras.

    Espero que vocês, leitores e leitoras, possam aproveitar o presente escrito apesar de alguns temas difíceis, sobretudo para pessoas pouco acostumadas ao contato com histórias de sofrimento e morte. Mas não fiquemos inquietos, pois é sempre desafiador estar diante do sofrimento alheio. Por fim, que a leitura se torne uma porta de entrada à experiência dos sobreviventes do Holocausto e da lição que cada um deles pode oferecer para que não nos esqueçamos do testemunho da bondade diante da fragilidade humana.

    Aproveito para agradecer as pessoas especiais que a vida me trouxe e, acredito, soube conviver da melhor maneira possível.

    Agradeço à minha família nuclear, meu pai, Jose Olinto Vasconcelos Valente, min há mãe, Maria das Graças Barra Valente (em memória), meu irmão, José Alexandre Barra Valente, e minha irmã, Ana Flávia Valente Miranda, por tanto, tudo e pelo que ainda não pude perceber, amo vocês;

    Agradeço à Agnnes Caroline Alves de Souza, pelo amor, compreensão e apoio durante os anos em que estivemos juntos;

    Agradeço ainda ao Mario de Oliveira Gouvea, amigo querido que se disponibilizou a ler a primeira versão deste livro, sendo cuidadoso e delicado com suas observações;

    Agradeço a Hemerson de Moura Silva, amigo de conversas sobre os dilemas da existência e seus convites. Pela irmandade nas horas boas e ruins... nossos diálogos reverberaram neste livro;

    Agradeço também a Alexandre Simão de Freitas (professor doutor da Universidade Federal de Pernambuco), professor e querido educador, cujas aulas foram encontros poderosos que me fizeram lembrar que a vida não está destinada a se repetir. Ademais, fostes o primeiro profissional acadêmico a validar meu manuscrito, tendo o feito de maneira delicada e viva, cuidadosa, e isso foi importante para que eu continuasse;

    Agradeço a Katia Marly Leite Mendonça (professora doutora da Universidade Federal do Pará), professora que me escutou quando a procurei com as ideias que se tornaram este trabalho. Naquele dia, mais uma vez, professora, você me apresentou mais do que referências bibliográficas, uma perspectiva diante do mundo e do outro.

    Agradeço igualmente à Elizabete Samuel Levy (professora mestre do Círculo Psicanalítico do Pará), psicanalista, judia e amiga querida: nossas conversas sobre a memória dos sobreviventes e os mistérios da existência foram alimento para que eu persistisse escrevendo;

    Agradeço à José Guilherme de Oliveira Castro (Professor doutor da Universidade da Amazônia), pelo cuidado e carinho que tivestes com este trabalho quando lhe pedi que o lesse;

    Agradeço a Fernando César Costa Xavier (Professor Associado da Universidade Federal de Roraima), amigo de longa dada que aceitou escrever o prefácio desta obra, tendo escolhido palavras que me tocaram de modo intenso e pelas quais sou grato;

    Agradeço a Alessandro Melo Bacchini (Professor doutor da Universidade da Amazônia), pelas palavras que trocamos pelos corredores da universidade que me faziam pensar de modo afetuoso, pois assim contigo aprendo a ser, meu amigo querido;

    Agradeço a Bárbara Araújo Sordi (Professora mestra da Universidade da Amazônia), com quem eu compartilho inquietações e potências para acolher a existência sem perder a ternura;

    Agradeço a Cintia Lavratti Brandão (Professora mestra do Centro de Capacitação em Gestalt Terapia), amiga que sempre esteve disponível para conversar sobre a existência, exercitando sua capacidade bela de mesclar a realidade com a leveza de um sorriso;

    Agradeço à Josélia Quintas Silva de Souza, psicóloga, psicoterapeuta e mestra em psicologia clínica (Universidade Católica de Pernambuco – Recife), pois você me convida a compreender o que se passava comigo; as relações que vivenciou e me são importantes, exortando meu potencial para existir.

    Agradeço à Ana Valéria Salza de Vasconcelos (Universidade Federal da Paraíba – João Pessoa), psicóloga e antropóloga do absurdo que corrigiu os ensaios que compõem a presente obra e, mais do que isso, compartilhou seus sentimentos a cada leitura, assim me ajudando a pensar melhor.

    Agradeço ainda a Ítalo Batista da Gama e Isabela de França Meira, meus bolsistas do GEIA, atualmente, profissionais da psicologia – acredito, felizes com o que fazem, pois desde o tempo de ESUDA se mostravam especiais: vocês foram os primeiros interlocutores do que nestas páginas apresento. Assim como ao Heldice Araújo Machado, Gleice Camila Gaia Barbosa, Leandro Reis da Silva, Bianca de Oliveira Sousa, Danilo Dias Barbosa e Eduardo Pimenta Cunha: juntos mantivemos o grupo de estudo Psicologia, Narrativa e Crise da UNAMA (Belém-PA) e, confesso, tenho saudades daqueles dias, nos quais pudemos contribuir uns com os outros enquanto profissionais e pessoas.

    Agradeço, por fim, à Editora Todas as Musas, em especial, a Flavio Botton, que de modo cuidadoso aceitou o manuscrito deste livro de ensaios.

    Márcio Barra Valente.

    06.04.2020

    Quando o impossível acontece

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    Retrato com sapatas de Auschwitz. Foto de @claudia. https://br.depositphotos.com/home.html

    Neste ensaio, procuramos circunscrever elementos para uma aproximação com a temática do Holocausto menos conceitual e mais como dramática, que afetou milhares de homens e mulheres reais que foram obrigados a suportar o sofrimento e perseveraram no desejo de continuarem existindo, apesar do que perderam, viram e sentiram durante o período da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).

    Algumas, entre elas, decidiram relatar o que vivenciaram. Seus testemunhos alimentam este ensaio, pois acreditamos que possuem uma sabedoria que nada tem a ver com erudição nem senso comum, mas de que alguém passou por inúmeras experiências – alegres, tristes, de dores ou de júbilo – e que encarna um saber a respeito da existência humana (SAFRA, 2005, p. 07). Cada parte deste livro é uma tentativa de acessar tais saberes e, a partir deles, elaborar compreensões que possam ser importantes para nossa geração e as que virão. Todas as partes juntas compõem a pesquisa Intermitências do humano: a bondade entre a barbárie nos testemunhos de sobreviventes do Holocausto, desenvolvida entre 2014 e 2017. Na parte seguinte, falaremos da pesquisa; por hora, imaginemos a cena:

    Você ouve dizer que pessoas como você estão sendo perseguidas pelas forças policiais e milicianas. Inúmeras histórias de desaparecimento, de tortura e até mesmo assassinato. Não obstante, sem ceder ao descontrole emocional, pergunta-se se elas não seriam exageradas. Quem conta um conto aumenta um ponto, recorda o dito popular, e, pensa consigo, que as histórias não devem ser verdadeiras. Deste modo, apesar do clima, os dias se repetem sem surpresas nem novidades. O medo vai perdendo força e o clima, outrora incômodo, torna-se quase familiar.

    Todavia, em um dia qualquer, sua caminhada é interrompida por algo impensado. Uma pessoa comum, que igualmente andava pela rua, é abordada aos socos e pontapés por um grupo, o qual se assemelha ao dos milicianos das histórias. Eles não se contentam em agredir violentamente o transeunte já que, enquanto o atacam, gritam palavras de ódio e ressentimento. Vociferam! Em choque, dá-se conta que o medo não existe mais, cedeu lugar ao pavor.

    Assim, você descobre que não havia exagero algum nas histórias que ouvia. Mas nada disso importa mais e, mesmo se sentindo culpado, exige-se calma e controle das emoções. É preciso calma para decidir o que fazer. Mas a resposta é simples: fugir. Mas para onde você poderia fugir? Boa parte de seus amigos e amigas já fugiram quando as primeiras histórias foram contadas. Infelizmente, alguns, entre amigos e amigas, foram justamente as personagens delas. Entretanto, você foi de muitos amigos, sempre disponível e fiel para com eles. Alguns estão em suas casas e não se recusariam em ajudá-lo.

    Após horas de pavor, escondido, a noite chega e você parte em busca da ajuda. Espreita pelas ruas, cuidadosamente. As quadras parecem maiores do que antes quando as diferenças entre as pessoas não tinham se tornado convicções que justificassem segregação e ódio gratuito. Você entrevê a silhueta da casa e bate na porta: Sou eu, estou aqui. Você reconhece o rosto de seu amigo fiel. Ele abre a porta. Minutos depois, conta-lhe histórias do que viu e ouviu. Por instantes, recorda de que já havia vivido a mesma situação, mas de outro lugar. Você era o amigo que abria a porta e escutava as histórias alheias com ouvidos tão cheios de si mesmo, opiniões, interesses e certezas. A lembrança lhe desperta incômodo. Não será assim, pensa.

    Realmente não foi como você esperava. A resposta foi pior: Eu também sei o que está acontecendo. Mas não posso ajudá-lo, é perigoso. Posso prejudicar minha família se descobrem que te ajudei. Você não podia acreditar naquilo. A resposta se repetiu pelo menos duas vezes. Nenhuma palavra de conforto foi usada, nem de piedade. Apenas recusa. Seu amigo lhe pede que vá embora e não retorne mais. Você vai embora. Porém, ainda havia forças em você e a noite estava apenas começando. De porta em porta, a cada encontro face a face, você procurava ajuda entre desconhecidos.

    Quando amanhecia o dia não havia mais desespero algum em sua alma, mas sim o rancor provocado pela rejeição, o qual o consumia mais intensamente do que o medo pela aproximação da ronda matinal miliciana. Você não se importava. A ajuda negada parecia impressa não apenas no corpo, simplesmente, mas lhe manchava a alma. Não havia resignação nem esperança, apenas uma decepção com a humanidade, e o sentimento de ter sido eleito para sofrer com os pecados. Ele se pergunta: Por que eu? Por que comigo? Por que agora? Por que não fugi? Por que ninguém me ouve?

    O relato ficcional descreve parcialmente a experiência vivenciada por pessoas – judeus e outras minorias sociais, durante o período da guerra –, perseguidas pelos regimes totalitários nazista e comunista. O que se quer dizer com parcialmente? O termo é usado porque existiram pessoas que, ao bateram nas portas das casas, de amigos ou de desconhecidos, apesar da própria guerra, foram atendidas em seus apelos (NIssim, 2004; Lewin, 2011; AFONSO, 2011; GRUNWALD-SPIER, 2011; Mieszkowska, 2013; Pérez, 2014; Koifman, 2002; TAMMEUS & CUKIERKORN, 2014; VALENTE 2015a, 2015b, 2015c, 2015d, 2016a, 2016b). Entretanto, provavelmente foram poucas se imaginarmos as milhões que morreram durante o período do confronto.

    Sabemos que o número de mortos durante a guerra chegou à cifra de 70 milhões de pessoas sendo 6 milhões apenas de judeus, embora também saibamos que a quantidade exata de mortes talvez nunca seja conhecida por motivos que vão desde a perda e destruição de evidências ou simplesmente porque é impossível representar os impactos e as consequências da guerra e do Holocausto no continente europeu (WOOD, 2013; DAVIES, 2009, Bauman, 1998; CARNEIRO, 1998; DWOK & RELT, 2004; Marrus, 2003; RESS, 2018; ROUDINESCO, 2008; Agamben, 2008; GROSSMAN & Ehrenburg, 2011). Norman Davies (2006) argumenta que o número de refugiados desse período da guerra também é contado em dezenas de milhões, por exemplo: somente em 1939, primeiro ano dela, aproximadamente 300 milhões de refugiados poloneses deslocaram-se para os domínios da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS), fugindo dos nazistas. Porém eles, e precisamente os polacos judeus, não encontraram a liberdade que almejavam, e muitos deles também foram perseguidos e mortos pelos comunistas.

    Embora distintos ideológica e administrativamente, o parentesco entre nazismo e comunismo é incontestável, justificando não somente comparações, como ainda a inclusão deles no seio de um gênero comum: o totalitarismo. Não objetivamos explicitar as diferenças nem semelhanças, de modo exaustivo, mas apontar que ambos os regimes possuem um projeto político e civilizacional cujo objetivo foi instaurar uma nova ordem a qual, desde seu princípio, esteve ancorada no assassinato massivo de pessoas, a fim de estabelecer e garantir a harmonia política final ou a supremacia do regime sobre os povos.

    No comunismo, os alvos foram identificados como classes inimigas, então, traidoras do regime, burguesas e opositoras ocidentais. No nazismo, por sua vez, como raças inferiores, a saber, os judeus, romanis (ciganos) e outros não alemães. Todavia, a privação da vida de certos grupos sociais ou étnicos também se impôs não como objetivo original, e sim como necessário acidente de percurso na consolidação dos regimes; ou seja, na URSS, o assassinato em massa de camponeses e cúlaques e na Alemanha, de testemunhas de Jeová, deficientes, homossexuais, pretos e comunistas, entre outros.

    Embora o número de vítimas entre nazismo e comunismo possa ser comparável, apenas no primeiro o assassinato se tornou um fim em si mesmo, sendo isso algo a se considerar. Apesar da existência do arquipélago Gulag da União Soviética – sistema de campos de concentração e de trabalho onde milhares morreram –, não existiu no comunismo algo como Treblinka, Sobibor, Belzec, Chełmno, isto é, campos exclusivamente planejados e construídos para o extermínio de pessoas indesejadas e inadequadas ao regime nazista. Verdadeiras fábricas onde a morte foi produzida em escala industrial (TODOROV, 2002; LEVI, 2016; PEssETTI, 2010; GROSSMAN, 2015; Marrus, 2003; WOOD, 2013; GROSSMAN & Ehrenburg, 2011; STEINER, 1975; Soljenítsin, 2017; rhodes, 2003).

    Ouvimos recorrentemente informações sobre o número de homens e mulheres assassinados durante a guerra, quais as etnias que mais foram atingidas proporcionalmente pelo Holocausto, de que maneira o genocídio poderia ter sido evitado pelos países envolvidos no conflito ou ainda sobre a ascensão do nazismo, suas origens e ancestralidades. Não importando se as ouvimos por meio de filmes, séries, documentários, programas, livros, peças de teatro, obras de arte, exposições, museus, dentre outros, não duvidamos que é importante conhecer as circunstâncias históricas (materiais, técnicas, jurídicas, políticas e etc.) nas quais as perseguições e os assassinatos de judeus e outras minorias ocorrerem. Mas, para quê tantas informações?

    Em linhas gerais, acreditamos que através da produção delas, evitamos o esquecimento do Holocausto e, assim, poderemos evitar que ele se repita. Essa ideia é repetida como um mantra não apenas entre os sobreviventes, mas também entre estudiosos e mesmo pelo senso comum. Infelizmente, o acúmulo de informações não

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