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A Reinvenção Dos Negócios Ferroviários
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A Reinvenção Dos Negócios Ferroviários
E-book377 páginas4 horas

A Reinvenção Dos Negócios Ferroviários

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Sobre este e-book

O objetivo neste trabalho é analisar as principais ações estatais argentinas e brasileiras, aplicadas no setor ferroviário após a Segunda Guerra Mundial: desde as décadas de 1950 – quando se iniciou efetivo rearranjo do modelo de negócios ferroviários fundamentados em estatização do sistema, nestes países - até a década de 1990 (e anos seguintes) quando, por meio de renovadas concessões, as empresas férreas em ambos os países foram devolvidas ao controle da iniciativa privada. Argumenta-se neste trabalho que em ambos os países se consolidaram situações atípicas no setor: as concessões das estradas de ferro, embora públicas, passaram a atender a interesses cada vez mais privados. Embora diversas análises sociológicas e econômicas argumentem que após a Segunda Guerra Mundial ocorrera o “fim da era ferroviária” a hipótese aqui defendida é que estas empresas férreas não foram simplesmente desmanteladas seja por ações estatais antiferroviárias ou por falta de visão nacionalista destes governantes. Na verdade, as ferrovias argentinas e brasileiras – seja por ações dos respectivos Estados, seja por mudanças estruturais do mercado de transportes em que elas operavam, passaram por um longo processo de reinvenção de seus modelos de negócios. A encampação do sistema tratou-se de um daqueles momentos em que o setor ferroviário deixou de ser lucrativo aos investidores privados. Na década de 1990 o cenário era outro: os investidores privados voltaram-se novamente ao setor, numa prova inconteste de que aquelas empresas eram muito mais do que ferros-velhos que haviam entrado em decadência na década de 1940.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento12 de ago. de 2021
A Reinvenção Dos Negócios Ferroviários

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    Pré-visualização do livro

    A Reinvenção Dos Negócios Ferroviários - Ivanil Nunes

    A reinvenção dos negócios ferroviários: Na Argentina e Brasil, 1950-1990

    Ivanil Nunes

    São Paulo

    2021

    Ficha catalográfica

    --------------------------------------------------------------------------------------------------------------

    Agradecimentos

    Agradeço a Profa. Dra. Sandra Lencioni, da Universidade de São Paulo, pela supervisão e apoio que despendeu, desde as primeiras linhas do projeto de pesquisa, para a realização deste trabalho. Agradeço a Profa. Dra. Andrea Gutierrez da Universidad de Buenos Aires (UBA), pelas suas contribuições e supervisão durante a fase da pesquisa realizada em Buenos Aires, sobre o sistema ferroviário argentino.

    Meus agradecimentos às professoras Elena Salerno (Universidad Nacional de Tres de Febrero) e Teresita Gómez (CESPA/FCE/UBA), além da acolhida, pelos seus apoios acadêmicos, pelas indicações das fontes que utilizei nesta pesquisa, bem como pelas discussões sobre o tema.

    Agradeço aos meus colegas e amigos Grupo de Estudos Formações Econômicas de Transportes com os quais venho debatendo este tema há anos.

    Meus sinceros agradecimentos, mais uma vez, à Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo que apoiou esta investigação: tanto a pesquisa realizada no Brasil quanto à realizada na Argentina.

    Agradeço especialmente ao Centro de Documentación e Información - CDI (del Ministerio de Economía y Finanzas Públicas de la Nación Argentina) pelo apoio e disponibilização de fontes documentais que foram imprescindíveis para a realização desta pesquisa.

    Agradeço, por fim, a Neusa, minha companheira, por seu apoio que me foi fundamental para a realização desta longa tarefa.

    A todas, meus sinceros agradecimentos.

    Apresentação

    O livro que o leitor tem em mãos é certamente um marco na historiografia ferroviarista do Brasil. Nesta obra, como o título antecipa, Ivanil Nunes enuncia a tese de que, no período de 1950 a 1990, houve uma reinvenção dos negócios ferroviários fundamentada na estatização do setor. Tal fenômeno, segundo o autor, observável tanto na Argentina como no Brasil, teria encontrado o seu fim nos processos de desestatização, com o retorno do capital privado, como concessionários de serviços públicos. A referida tese geral contrapõe-se, de certa forma, à literatura que identificava o fim da era ferroviária no suposto declínio que os sistemas ferroviários brasileiro e argentino teriam enfrentado a partir da década de 1940.

    Resultante de uma pesquisa de pós-doutorado conduzida no Brasil (USP) e na Argentina (UBA), este livro é, em realidade, como informa o autor, um segundo livro, em complemento ao que foi lançado em Buenos Aires no ano de 2014, intitulado "Los ferrocarriles que supieron conseguir. Em ambos, o objetivo maior foi o de analisar as principais ações dos Estados brasileiro e argentino ante a chamada crise ferroviária, durante o período de 1950 a 1990. Para contemplar tal objetivo, o autor elenca no prefácio e na introdução uma série de questões a que o livro se propõe responder, e que não apenas instigam a problematização do período, mas denotam um verdadeiro programa de pesquisa sobre o tema. Ivanil Nunes se pergunta pelas causas do processo de reinvenção, os seus impactos, e, por fim, sobre a relação estabelecida entre o capital privado e as ferrovias reinventadas. A primeira diretriz de investigação aponta, então, para a necessidade de refutação ou reformulação do argumento do fim da era ferroviária", no intuito de elaborar outra fundamentação que possibilite entender como os negócios ferroviários argentinos e brasileiros, tão deficitários na década de 1950, voltaram a atrair interessados privados a este sistema.

    À primeira vista, poder-se-ia cogitar que o trabalho de Ivanil Nunes foi escrito para debater com essa historiografia ferroviarista que prenunciou o fim das ferrovias. Porém, entendo que o livro transcende essa suposta obviedade e dispõe-se à pergunta: contra quem escreve Ivanil? É certo que toda pesquisa de rigor se posiciona diante de um paradigma científico, para contestá-lo ou complementá-lo e, assim, fazer o saber avançar – num certo ideal Moderno. Mas há algo a mais. O escrito sobre a História disputa um espaço de narrativa que é político e que implica aquele que escreve. É neste sentido que pergunto contra quem escreve Ivanil, não para identificar os seus hipotéticos adversários intelectuais, mas para tentar apontar alguns dos possíveis caminhos de leitura que a obra permite.

    O livro está dividido em quatro capítulos que seguem, em alguma medida, uma ordem cronológica dos temas, sendo ainda amparado por uma introdução, considerações finais e a sua conclusão.

    O primeiro capítulo tem por objeto a análise das características dos Estados brasileiro e argentino e a sua relação com as ferrovias. Esta primeira parte cumpre uma importante função no livro, que é delimitar a perspectiva de economia política que sustenta a investigação. Aqui, de certo modo, o autor exibe as lentes através das quais lê a formação do capitalismo no Brasil e na Argentina. São mobilizadas, por uma perspectiva crítica, categorias como Estado Nacional, centro-periferia, subdesenvolvimento e dependência, classes sociais (dominantes), tomadas sempre na complexidade do seu contexto histórico, sem que configurem per si relações imediatas de causalidade ou abstrações tautológicas. Nunes conduz, assim, uma abordagem histórica dos Estados, brasileiro e argentino, e da implantação e expansão das ferrovias nesses países, desde o século XIX até as primeiras décadas do século XX, marco temporal que precede a tese mais original do autor.

    O segundo capítulo é o ponto em que o autor começa a analisar a dinâmica dos movimentos de estatização e desestatização do setor ferroviário. O texto passa a trabalhar com os conceitos de Estado Regulador e Estado Empresário, que comporiam um movimento histórico pendular em benefício da reprodução ampliada do capital internacional. O pressuposto é o de que o Estado é um agente fundamental para o funcionamento das ferrovias, tanto por sua ação quanto por sua inação. O movimento pendular (ou cíclico) ocorreria, desta forma, entre as funções de regulador e empresário que o Estado assumiria em determinado momento histórico.

    Ivanil Nunes localiza o início desse movimento desde o século XIX, quando o Estado, à medida que encampava ferrovias, passava progressivamente da função de promotor-regulador à função de empresário. A peculiaridade é que tal passagem ocorria especialmente por meio daquelas ferrovias que não despertavam mais interesse do setor privado, geralmente por serem deficitárias, o que faz o autor afirmar que os Estados, brasileiro e argentino, atuavam de modo a subsidiar o setor ferroviário privado. A primeira parte do movimento se completa, entre as décadas de 1940 e 1950, com a criação da Empresa Nacional de Transporte (E.N.T. - Argentina) e a Rede Ferroviária Federal S.A. (RFFSA - Brasil).[1]

    Neste ponto, o livro passa a analisar uma série de dados quantitativos que demonstram, neste período de transição, uma tendência de aumento do transporte de passageiros, aumento na quantidade de empregados, redução do transporte de carga e, por consequência, aumento do déficit. Essa tendência, embora não fosse a única causa, teria contribuído de modo relevante para o quadro de déficits estruturais das ferrovias argentinas e brasileiras da metade do século XX. A resposta estatal frente a essa crise ocorreu com o que o autor nomeia como reinvenção dos negócios ferroviários, entre os anos de 1950 a 1990, principalmente através de: i) redução de linhas férreas por meio da extinção de ramais considerados antieconômicos; ii) redução e eliminação de serviços deficitários (como transporte de animais, bagagens e encomendas, e também de passageiros); e iii) redução do número de empregados das ferrovias. A descrição quantitativa e qualitativa desses processos é propriamente a espinha dorsal da tese do livro. A reinvenção dos negócios ferroviários teria atingido o seu ponto culminante com a adoção da condição chamada de ferrovia-mínima, em que as ferrovias, após aproximadamente quarenta anos de saneamento de seus déficits, encontravam-se, então, reduzidas ao mínimo conveniente. Essa etapa final teria se consumado, tanto no Brasil quanto na Argentina, com a desestatização durante a década de 1990, quando novamente o capital privado reingressa no setor ferroviário – fechando o movimento do pêndulo, retornando o Estado à função de regulador.[2]

    O terceiro capítulo aprofunda a descrição quantitativa e qualitativa do processo de reinvenção dos negócios ferroviários, direcionando a análise ao papel empresarial desempenhado pelos Estados, argentino e brasileiro, e os resultados obtidos que despertaram, novamente, o interesse de investidores privados. Neste ponto a crítica de Ivanil Nunes é categórica ao afirmar que aos operadores privados da década de 1990 interessavam uma ferrovia cargueira e, por isso, a privatização era parte de uma estratégia política, na qual se articularam questões técnicas sobre as modalidades de gestão com opções ideológicas relativas ao papel do Estado. A sutileza da tese de Ivanil está em apontar que tal modelo de negócios – de ferrovias-mínimas – não fora inventado durante as privatizações ou pelos concessionários privados, mas, sim, entre as décadas de 1950 a 1990, através das empresas estatais. O autor demonstra, então, que com as malhas estatais transportando um número reduzido de produtos, havia um número igualmente reduzido de clientes. Foram justamente esses clientes (especialmente os grandes, como as mineradoras), que se tornaram os maiores interessados na desestatização, uma vez que isso afetava diretamente o seu próprio negócio.

    No quarto capítulo, Ivanil Nunes debruça-se sobre o período pós-desestatização, analisando como os novos concessionários deram continuidade às ações implementadas no período estatal, aumentando, de modo geral, a produtividade, principalmente através da especialização das cargas, desativação de ramais e redução do número de trabalhadores. Para sustentar tal afirmação, o autor analisa, em detalhe, a composição dos produtos transportados por cada uma das diferentes ferrovias concedidas, tanto na Argentina quanto no Brasil. O resultado aponta para uma imbricação entre a carga transportada e os concessionários das ferrovias-mínimas, o que reflete o que o autor chama de concessão pública e uso particular.

    Ainda no quarto capítulo, Nunes faz uma anotação importante, lançando uma dúvida sobre a sustentabilidade econômica do modelo privado de ferrovias-mínimas, que parece estar perdendo produtividade, a despeito de todo o enxugamento feito. O alerta vai no sentido de que a descapitalização das ferrovias seria, assim como no passado, um dos fatores para o crescimento de déficits que impulsionaram a estatização do setor. Vislumbrando a possibilidade iminente de um retorno do Estado, o autor faz a provocação de que períodos de privatização e estatização seriam faces de uma mesma moeda; partes de ciclos econômicos que o setor ferroviário já enfrentou.

    Ao final do livro, Ivanil Nunes ainda busca fazer uma interpretação do presente a partir do argumento de que os ciclos econômicos no setor ferroviário denotariam um movimento pendular do Estado. Especificamente sobre o caso brasileiro, o autor entende que o Estado já teria iniciado o seu retorno ao setor nas últimas décadas. Na sua projeção mais audaciosa, porém, Nunes sugere que ainda está por vir uma estatização parcial, em que o Estado assumirá a parte antieconômica do setor, enquanto as ferrovias lucrativas seguirão com o capital privado.

    Apresentado um panorama do livro, permito-me tecer alguns comentários sobre a obra. O primeiro é o de que a tese que Ivanil Nunes propõe – da reinvenção do negócio ferroviário durante o período estatal, criando o modelo de ferrovia-mínima – é absolutamente iluminadora frente à história do último meio século do setor ferroviário. É certo que tal argumento não é fruto apenas deste livro, tendo sido maturado e fortalecido ao longo de pesquisas e publicações anteriores do autor. No entanto, num certo senso comum – teórico ou vulgar – ainda paira essa dúvida se as ferrovias das empresas estatais eram ou não ferros-velhos. Certamente essa ausência de clareza faz parte da estratégia do projeto político que sustentou as privatizações da década de 1990. Neste sentido, este livro – assim como a pesquisa já consolidada de Ivanil Nunes –, a partir da reunião e análise de dados sobre os sistemas ferroviários estatais brasileiro e argentino, traz uma brilhante contribuição para a história das ferrovias latino-americanas.

    Tenho dúvidas, no entanto, se o recurso à imagem de um movimento pendular ajuda a riqueza da tese do autor. Isso porque, conforme o próprio livro afirma, se o Estado possui uma atuação que se assemelha a um movimento pendular, o que fica pressuposto é que em algum momento o pêndulo irá voltar para a posição da estatização – ainda que não seja possível dizer exatamente quando. Neste aspecto, a tese de Ivanil tem a seu favor as diversas tendências que se observam mundo afora, como na Argentina e na Inglaterra, que desfizeram as privatizações e renacionalizaram as ferrovias. Mas, no caso do Brasil, será que tal movimento irá ocorrer? Ou ainda, será que esse movimento realmente já começou a ocorrer – como sugere o autor? Sob essa perspectiva, como deveríamos ler as discussões sobre renovações antecipadas das concessões ferroviárias? E mais, ainda a título de exemplo: como poderíamos ler uma moção política como a presente no Projeto de Lei do Senado nº 261 de 2018, que prevê a exploração de ferrovias mediante autorização, em regime de direito privado, adicionando um regime jurídico diverso daquele das concessões – e que parece contradizer frontalmente o suposto retorno do Estado como empresário. Essas são apenas ilustrações de quão incerta pode ser a vereda das projeções para o futuro. Vejo, porém, que o maior problema de tal argumento se coloca quando se busca utilizá-lo para ler o passado.

    Parece que uma das consequências desse argumento pode ser vista no uso que o autor faz de expressões como Estado Regulador e Estado Empresário, e que, por vezes, podem induzir o leitor a interpretá-las quase como tipos ideais, em sentido oposto à materialidade atravessada pelo trabalho. Quando o texto segue por esse caminho, parece que os projetos políticos em disputa, em cada um dos movimentos do Estado, ficam em segundo plano. Tal efeito nocivo pode ser visto mais claramente, na minha opinião, na análise feita sobre o caso brasileiro da década de 1950.

    Para tal período, entendo que cabe uma matização a respeito do projeto político que impulsionou a reestruturação que a estatização promoveu, para além de uma reação ante aos déficits estruturais. É dizer, cabe se perguntar, a partir daquele contexto histórico, a qual projeto político e econômico essas mudanças estavam ligadas? Ou ainda, de outro modo e mais especificamente, se poderia perguntar: por que foi criada a necessidade de alterar a organização jurídico-administrativa, passando de autarquias (como o Departamento Nacional de Estradas de Ferro e a Administración General de los Ferrocarriles del Estado) para empresas estatais (como a RFFSA e a Ferrocarriles Argentinos)? Na minha humilde visão, o leitor que, de forma desatenta, não se fizer tais perguntas, corre o risco de incorrer em um erro de retroprojeção, supondo que a criação da RFFSA pelo Estado brasileiro poderia ser, no limite, entendida desde o início como apenas mais uma etapa da reinvenção negocial e que posteriormente devolveria as ferrovias ao capital privado – como se isso estivesse desde a gênese da estatal, o que certamente é uma leitura equivocada (e a que esse livro não se presta).

    Mas veja-se, ainda, que a utilização de tal argumento – do movimento pendular – transmite efeitos na interpretação da década de 1950 sobre a década de 1990. Pois, se por um lado, a crítica de Ivanil Nunes ao processo de desestatização é certeira, e revela as entranhas que tentaram ser ocultadas. Por outro lado, sob o pretexto de qualificar como ações estatais imbricadas em ideologias politicamente vitoriosas, o livro deixa ofuscado, primeiro, o conflito político existente durante as privatizações (e, portanto, a abertura à contingência daquele determinado momento histórico), e segundo, a carga teórica construída em concomitância com as teorias do subdesenvolvimento, que forneceram elementos para a estatização em 1950, e que, por isso, foi um dos alvos das privatizações da década de 1990.

    Em outras palavras, a ausência de distinção dos sentidos que embasaram a criação da RFFSA é mais que uma minúcia historiográfica, pois repercute na interpretação do processo de desestatização. Entendo que o projeto político que deu sustentação para as privatizações é mais profundo que uma ideologia de ocasião porque buscou enterrar justamente o pensamento sobre o subdesenvolvimento do Brasil. É, também, neste sentido que me parece muito mais que um mero movimento pendular, cíclico, e que poderia levar à ilusão de que o que havia antes, no passado, poderá a qualquer momento retornar.

    Para além desses apontamentos, convém retomar a pergunta contra quem esse livro se dirige. A esta altura deve estar mais que evidente que o argumento do fim da era ferroviária, hoje, explica pouco do que efetivamente ocorreu após a estatização da década de 1950 – o que nos permite afirmar que o presente livro alcança amplo êxito na refutação e reformulação desta interpretação.

    Há ainda outro diálogo, menos explícito, e que se dá com as interpretações gerais da historiografia econômica brasileira sobre os períodos que se convencionou chamar de nacional-desenvolvimentismo (identificado, grosso modo, às décadas de 1930 a 1964 ou a 1980) e neoliberalismo (de 1980 ou 1990 ao tempo presente). Como já mencionado, em geral, para essas interpretações panorâmicas da economia brasileira, é comum que se lance mão de um senso comum de que as rodovias teriam paulatinamente substituído as ferrovias, sendo essas relegadas ao abandono e ao sucateamento em mais uma estatal destinada ao fracasso. A tese de Ivanil Nunes se contrapõe a essas generalizações imprecisas e demonstra que, em realidade, houve uma forte intervenção estatal para remodelar o setor ferroviário, dotando-o de um expressivo aumento de produtividade – razão pela qual a iniciativa privada teria novamente se interessado em reingressar no setor durante a década de 1990, recepcionando tal modelo, batizado pelo autor como ferrovias-mínimas.

    Há, ainda, um terceiro possível diálogo e que se trava com o discurso de exaltação do setor privado e das privatizações – em geral, uma literatura especializada, encontrada principalmente em alguns ramos da Economia e do Direito, e que, de certa forma, apresentam-se como impermeáveis às pesquisas historiográficas, mas com grande penetração no debate público contemporâneo. Não raro, esses especialistas do tempo presente, cronistas dos ditos problemas práticos, ocupam um espaço de destaque frente ao grande público para culpar o Estado pelos problemas enfrentados pela iniciativa privada – e não deveria surpreender se, em alguns anos, atribuam a responsabilidade ao Estado por uma possível devolução, sem investimentos, de ferrovias concedidas na década de 1990. Essa vertente de autores constitui, talvez, o vetor de força mais importante em prol do esquecimento. E Ivanil Nunes escreve contra o esquecimento.

    Como um convite final ao leitor, registro, novamente, que o presente livro traz uma contribuição ímpar para a compreensão das ferrovias no Brasil e na Argentina. O mérito de Ivanil Nunes e o rigor científico de sua pesquisa, especialmente em lidar com tantas fontes primárias e secundárias, tão extenso marco temporal (desde o século XIX ao presente), em países com situações tão diferentes, e, ao fim, com tamanho volume de informações, faz deste livro uma referência sólida sobre o tema. Com as suas teses, a obra do autor tornou-se incontornável para os estudos da historiografia ferroviarista. Sinto-me profundamente honrado em escrever esta apresentação, com a esperança de despertar no leitor o desejo de conhecer por si os detalhes deste valioso livro.

    Rio Grande, 02 de agosto de 2021.

    Prefácio

    Este trabalho é o resultado de minha pesquisa de Pós-Doutorado realizado entre 2013 e 2014, desenvolvido por meio de um convênio entre a USP e a UBA (Universidad de Buenos Aires). No Brasil, contei com a supervisão da profa. Dra. Sandra Lencioni, do Departamento de Geografia, USP/SP e em Buenos Aires com a supervisão da Prof. Dra. Sandra Gutierrez, Coordenadora do Programa Transporte y Territorio do Instituto de geografía, da Facultad de Filosofía y Letras, da Universidad de Buenos Aires.

    O trabalho foi financiado pela FAPESP por meio de duas Bolsas de estudo: uma, de Fluxo contínuo e outra de Estágio de Pesquisa no Exterior (BEPE).

    O livro, que ora apresento ao público é, portanto, produto direto desta pesquisa; na verdade é um segundo livro, pois o primeiro, intitulado "Los ferrocarriles que supieron conseguir", que trata apenas das ferrovias argentinas, foi lançado em Buenos Aires, em meados de 2014; e, relançado (em segunda edição) pelo Clube de Autores.

    Os dois livros se completam já que ambos são orientados para objetivos similares: o de analisar as principais ações estatais argentinas e brasileiras, respectivamente, frente à denominada crise ferroviária; desde as décadas de 1950 – quando se iniciou efetivo rearranjo do modelo de negócios ferroviários que teve por premissa inicial a total estatização do sistema, nestes dois países - até a década de 1990, quando ocorreram as desestatizações dos serviços ferroviários na Argentina e no Brasil – momento em que vários grupos privados retomaram os controles das empresas férreas, em ambos os países.

    As questões centrais, que se pretende responder são basicamente: Quais teriam sido as principais causas (estruturais) que conduziram às crises nos sistemas ferroviários argentinos e brasileiros, a ponto de a totalidade das empresas férreas passar para o controle do Estado?

    Por que, nestes países, o caminho trilhado fora a estatização e, posteriormente, desestatização?

    Quais são os fatores que impulsionaram estes dois Estados, distintos entre si, a produzirem políticas públicas tão semelhantes? e a agirem como se seguissem a um roteiro previamente combinado entre ambos: encampação (anos 1940-50), readequação das empresas férreas (até início da década de 1990), e devolução destas empresas aos investidores privados por meio da desestatização, na década de 1990?

    Quais

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