Encontre milhões de e-books, audiobooks e muito mais com um período de teste gratuito

Apenas $11.99/mês após o término do seu período de teste gratuito. Cancele a qualquer momento.

Cinema negro brasileiro
Cinema negro brasileiro
Cinema negro brasileiro
E-book495 páginas4 horas

Cinema negro brasileiro

Nota: 0 de 5 estrelas

()

Ler a amostra

Sobre este e-book

Um livro sobre o cinema negro no Brasil de hoje é como se fosse um presente para quem acompanha a história do cinema brasileiro. Embora a mistura cultural do povo deste país tenha como influência poderosa a fonte afro-brasileira, só na primeira metade dos anos 1960, com Ganga Zumba, foi feito o primeiro filme a partir do respeito e da consideração a essa influência étnica. Esperamos que o futuro coloque a cultura afro no centro do desenvolvimento de nosso cinema nacional. (Carlos Diegues, cineasta e membro da Academia Brasileira de Letras)
Os estudantes, pesquisadores e leitores interessados terão aqui um guia para se orientar na compreensão dos cinemas negros. E um ponto de partida para avançar na realização de um cinema alinhado com a nossa população e cultura. (Jeferson De, cineasta, em trecho extraído da Apresentação)
IdiomaPortuguês
Data de lançamento20 de set. de 2022
ISBN9786556501383
Cinema negro brasileiro

Relacionado a Cinema negro brasileiro

Ebooks relacionados

Artes Cênicas para você

Visualizar mais

Artigos relacionados

Avaliações de Cinema negro brasileiro

Nota: 0 de 5 estrelas
0 notas

0 avaliação0 avaliação

O que você achou?

Toque para dar uma nota

A avaliação deve ter pelo menos 10 palavras

    Pré-visualização do livro

    Cinema negro brasileiro - Noel dos Santos Carvalho (org.)

    1

    GRANDE OTELO: ATOR, AUTOR – PISTAS PARA UM CINEMA NEGRO NO BRASIL

    Luis Felipe Kojima Hirano

    Em 2018, a Ancine divulgou uma pesquisa sobre a classificação racial e o gênero dos diretores de 142 longas-metragens brasileiros lançados comercialmente em salas de exibição em 2016. O resultado não é surpresa alguma para pessoas atentas às desigualdades raciais no Brasil: 75,4% dos longas foram assinados por homens brancos. As mulheres brancas dirigiram 19,7% dos filmes, ao passo que apenas 2,1% dos filmes foram dirigidos por homens negros. Nenhum filme foi dirigido ou roteirizado por uma mulher negra naquele ano (Ancine 2018).

    Tal realidade, fruto do racismo estrutural, estende-se por toda a história do cinema brasileiro, dentro da lógica do próprio campo cinematográfico, em que identificamos poucos diretores negros, caso de Cajado Filho, Antônio Pitanga, Zózimo Bulbul, Joel Zito Araújo, Jefferson De e Lilian Sola Santiago, entre outros (Stam 2008; Carvalho 2003 e 2006; Hirano 2013; Silva 2016; Silva e Souza 2017). É por essa razão, entre outras, que a proposta de traçar uma imagem da formação de um cinema negro no Brasil me impele a repensar a produção fílmica para além das mãos de seus diretores, produtores, montadores e roteiristas, detendo-me justamente nos exíguos espaços onde atores/atrizes afrodescendentes e expressões de matriz afro-brasileira ganharam proeminência temática e formal.

    Como nos ensina Noel dos Santos Carvalho, a trajetória de Grande Otelo permite avalizar a representação do negro ao longo da história do cinema brasileiro (Carvalho 2006). Grande Otelo participou dos principais projetos de cinema no Brasil, nos filmes da Cinédia, em policiais da Atlântida, nos fragmentos de It’s all true (Orson Welles, 1942) e no comentário pós-Cinema Novo de Nem tudo é verdade (Rogério Sganzerla, 1985), passando por Rio, Zona Norte (Nelson Pereira dos Santos, 1957), marco do realismo independente, e por Macunaíma (Joaquim Pedro de Andrade, 1969), filme em que o cinemanovista Joaquim Pedro de Andrade se aventura na literatura modernista e na chanchada. De forma singular, ele conseguiu ultrapassar as barreiras dos gêneros e dos movimentos cinematográficos, indo da comédia ao drama, das chanchadas ao realismo carioca, do Cinema Novo ao Cinema Marginal (Hirano 2013a; 2013b e 2019). Mais do que isso, na inconstante formação do cinema no Brasil, Grande Otelo é figura permanente durante o século XX, sendo o ator central para refletir de que maneira concepções sobre o negro marcaram diferentes projetos de cinema.

    Tendo isso em mente, a proposta deste capítulo é refletir de que maneira Grande Otelo pode ser pensado não apenas como um ator negro, mas também como autor negro, no sentido de que imprimiu, nos filmes em que atuou, uma mise-en-scène própria, de traços recorrentes, o que é verificável em toda a sua trajetória cinematográfica.

    Tal definição de autoria se baseia na ampliação da política de autores formulada por críticos dos Cahiers du Cinéma, especialmente por André Bazin. Como sintetiza Ismail Xavier (2003, pp. 17-18), os termos política dos autores, cineasta-autor e cinema de autor se referem a diretores que, "mesmo trabalhando na indústria hollywoodiana, são exemplos de um percurso de criação pessoal que a análise do estilo permite evidenciar, desde que se verifiquem seus traços recorrentes, fidelidade a um certo tema, unidade da obra que não exclui ‘fases’ distintas, bem como uma mise-en-scène própria".

    Ainda que tal concepção, em sua origem, se restrinja aos diretores de cinema, há uma série de indícios que possibilitam extrapolá-la para outras dimensões da produção fílmica, a depender do grau de autonomia que se conquista dentro do campo cinematográfico.

    Mesmo para atores e atrizes que até recente data receberam pouca atenção dentro da teoria do cinema, por conta da suposição de uma margem exígua de autonomia em relação ao diretor e produtor, é possível encontrar lastro autoral na indústria hollywoodiana. Por exemplo, Fred Astaire tinha tal poder na estrutura cinematográfica, que escolhia os enquadramentos e editava suas cenas de dança. Com isso, é reconhecido por ter criado um estilo intimista de musical, diferentemente dos musicais caleidoscópicos de Busby Berkeley. Se, mesmo em Hollywood, espaço cinematográfico que se notabilizou por um sistema de produção, distribuição e exibição verticalizado e extremamente hierarquizado, é possível encontrar raras exceções em seus atores, no Brasil, campo acanhado, incapaz de se industrializar de forma autônoma, há vários indícios de colaboração entre produtores, diretores, atores/atrizes, entre outras funções dentro da confecção de um filme.

    A título de exemplo, nos estúdios da Atlântida, os atores e as atrizes levavam seu vestuário pessoal para as filmagens e não havia empresas que fornecessem ou alugassem as roupas dos personagens. No que tange à propaganda, a divulgação dos cartazes era feita por toda a equipe do filme. Assim, os atores/atrizes tinham certa margem de agência para compor a própria vestimenta e decidir onde e como divulgar os filmes. De modo similar, torna-se possível encontrar contribuições de Grande Otelo, Zé Ketti, Agnaldo Camargo, entre outros intérpretes negros, em filmes importantes da cinematografia brasileira.

    A informalidade no modo de produção não significa necessariamente uma maior autonomia dos atores. Há exemplos contundentes que revelam de que forma Grande Otelo adquiriu o poder de sugerir cenas, composições de autoria própria e ideias para roteiros. Ao mesmo tempo, tal espaço conquistado, como veremos, é dependente da capacidade de assegurar uma rede de relações pessoais, sujeitas a mudanças conforme o sabor da cordialidade. Se Grande Otelo tinha autonomia quando a Atlântida era dirigida pelos irmãos Burle, com a mudança de direção do estúdio para Severiano Jr., o ator perde boa parte do espaço angariado.

    Tal autonomia ultrapassa o âmbito do processo de filmagem, inscrevendo-se na própria performance do ator na tela de cinema. Para seguir essa hipótese, precisamos lembrar que as teorias sobre a sétima arte do início do século XX até a década de 1940 desconsideravam o papel do ator e da atriz no cinema. Exemplos disso são os experimentos de Lev Kuleshov (1974) e os escritos de Rudolf Arnheim (1957) e Walter Benjamin (1987), que argumentavam sobre a alienação do ator em relação a sua imagem e à possibilidade de que cenas filmadas em contextos totalmente diferentes pudessem ser editadas como se fizessem parte de um mesmo contexto narrativo. Em suma, no cinema, o ator representava sempre a si mesmo, diferentemente do teatro, em que era exigida dele uma versatilidade para atuar em diferentes papéis.

    Em uma discussão mais contemporânea, como define Barry King (1985), no cinema há um processo de personificação entre o ator e seu papel, ao passo que, no

    teatro, o processo é de despersonificação. O primeiro diz respeito ao uso de características corporais e gestuais do ator para constituir um mesmo tipo idiossincrático ao viver diferentes personagens. Em contraposição, despersonificar se refere ao mecanismo em que o intérprete se despoja de suas características mais marcantes para adentrar diversos papéis, a ponto de não o reconhecermos por trás deles.

    Por fim, a edição privilegiaria o jogo de olhares entre espectador e personagem, ao passo que, no teatro, a impostação da voz, capaz de ser ouvida do palco pela plateia, seria mais importante do que a troca de olhares. Essas diferenciações, ainda que fundamentais em uma época em que se perguntava sobre a singularidade da sétima arte em relação às outras, são um tanto quanto estanques e mostram uma distinção que deve ser vista mais como gradual do que hermética. De todo modo, a perspectiva de análise que se privilegiava para os filmes, além da trama, olhava para o modo como a narrativa era contada nas opções de edição. Tal ponto de vista tratava a atuação de atores/atrizes em segundo plano, desconsiderando o papel fundamental que poderiam ter para um filme.

    Fellini afirmava que (...) um rosto (...) pode me ajudar a enriquecer o roteiro e revolucionar completamente o filme (1983, p. 32). O cineasta italiano, nessa frase, eleva o status do rosto do ator dentro da produção cinematográfica, dota-o de agência capaz de transformar completamente um filme; para ele, não há, portanto, uma preeminência do roteiro sobre as ações do ator. Pelo contrário, o ator, valendo-se de seu rosto, pode transformar-se na base da criação de um roteiro. Mais do que isso, como analisa Ismail Xavier, a análise da fisionomia no cinema expõe uma força expressiva, uma potência de nos dar acesso ao que esclarece o sentido de certas relações – que têm ancoragem histórica – através do que se cristaliza e ‘faz figura’ no rosto de um personagem (2007, p. 213). O corpo e o rosto do intérprete, como uma produção que também é social, talhados por suas relações e experiências, têm uma força expressiva dentro e fora da tela, são ao mesmo tempo diegéticos e extradiegéticos, compondo característica determinante na mimese cinematográfica. Em outras palavras, ainda que o personagem de um filme seja produto de muitas mãos, o corpo e o rosto do intérprete são fruto de sua experiência social e também de sua construção individual. Além disso, a composição de um personagem requer um trabalho de interpretação de um papel. Se a fisionomia de um personagem, performada por um ator, tem a capacidade de revelar determinadas relações dotadas de ancoragem histórica, em que medida ele também não é um intérprete dessas mesmas relações e do chão histórico, assim como o roteirista e o diretor? Seria o papel do ator próximo ao de um crítico literário (ou artístico, ou teatral) que, por meio das palavras, pontua uma certa leitura de uma obra, transforma gestos em palavras, em certa medida? De forma diferente daquela empreendida pelo crítico, o ator transforma ideias (e palavras) em gestos.

    Para analisar a transformação de palavras em gesto, sigo a metodologia de Baron e Carnicke (2008), que argumentam que a verossimilhança de uma interpretação se constitui no uso da musculatura corporal e da voz em ritmo, frequência, fluxo e força que dão materialidade precisa aos conflitos do enredo dentro dos limites do aparato cinematográfico. Nesse sentido, há que atentar para: 1) o uso do espaço do ator no enquadramento da cena; 2) o tempo, a velocidade e o ritmo dos gestos numa sequência fílmica; e 3) o peso e a força no uso do corpo, na contração e no relaxamento da musculatura. Tais procedimentos corporais de uso do espaço e do tempo sinalizam o modo como o ator incorpora o enredo, revelando, nas minúcias dos gestos, os conflitos pessoais do personagem no filme.

    Para respaldar essas reflexões, analiso situações na produção de quatro filmes que talvez permitam analisar como Grande Otelo marca uma interpretação autoral e possam dar pistas para um Cinema Negro no Brasil: penso no documentário inacabado de Orson Welles, intitulado It’s all true, em Moleque Tião, filme inaugural da Atlântida, em Também somos irmãos, realizado em parceria com o Teatro Experimental do Negro (TEM), e em Macunaíma, adaptação cinematográfica da obra de Mário de Andrade, feita por Joaquim Pedro de Andrade.

    Grande Otelo, coautor de It’s all true

    It’s all true foi um documentário encomendado em 1942, sob os auspícios da política de boa vizinhança firmada entre Brasil e Estados Unidos, durante a Segunda Guerra Mundial, para reforçar os laços entre os países aliados. Feita inicialmente a Orson Welles, a encomenda se circunscrevia à realização de um documentário sobre o carnaval carioca oficial, mas Welles adicionou outros episódios, como a manifestação dos jangadeiros que fizeram uma viagem de Fortaleza ao Rio de Janeiro em suas embarcações para reivindicar direitos trabalhistas. Neste capítulo, circunscrevo-me ao episódio Carnaval, em que Grande Otelo desempenha papel fundamental, sendo possível atribuir-lhe o papel de coautor (Benamou 2007; Hirano 2016 e 2019). Tal hipótese se confirma ao observarmos o cronograma de filmagens de Orson Welles. Inicialmente, ele buscou captar o carnaval na avenida Rio Branco e nos clubes da elite carioca, com apoio do Estado Novo, para depois transformar tal projeto, a fim de retratar o carnaval antigo da praça Onze (espaço de terreiros e celeiro do samba), que seria demolida para a construção da avenida Getúlio Vargas. Quem apresentou a praça Onze a Orson Welles foram Grande Otelo e Herivelto Martins, que, indignados com as reformas urbanas desse período, haviam composto para o carnaval daquele ano o samba Adeus, Praça Onze.

    Grande Otelo e Herivelto, que conheceram Orson Welles no cassino da Urca, tornaram-se verdadeiros interlocutores do diretor, fornecendo dados da vida social e do carnaval carioca, tanto quanto intelectuais brasileiros e brasilianistas que escreveram relatórios que também serviram de base para o cineasta americano e sua equipe produzirem It’s all true. A importância de Grande Otelo para o roteiro se mede pelo papel central que ele e a canção Adeus, Praça Onze têm na trama, articulando todas as cenas, em uma espécie de personalização do carnaval. Como diz Orson Welles, "da sua [do filme] introdução aqui até o final de Carnaval, Otelo irá aparecer em vários episódios. Através dele é possível a personalização e o manejo de vários aspectos de Carnaval, pensamos em termos de um entretenimento explosivo".[8] A cena final descrita em um dos roteiros é emblemática.

    No centro da praça, Otelo está dando seu próprio adeus para o bem amado lugar do carnaval. A música ainda é ouvida, mas cada vez mais remota – um som entristecedor, manso e amoroso. Os olhos de Otelo estão marejados e vemos neles cor e excitação, os risos e a diversão e a música que preenchiam a praça apenas algumas horas antes... Embaixo de uma lâmpada de rua, Otelo para para jogar seu tamborim quebrado no chão – um gesto de partida, inconscientemente eloquente. Adeus, praça Onze, adeus! Adeus! Adeus para o último grande carnaval de rua! O céu se acinzenta. Os passos de Otelo ecoam no silêncio, por um momento, após ele deixar a cena.

    Em diálogo com Grande Otelo, com quem aprendeu que o carnaval vinha do morro, Welles vislumbrava unificar o samba com o jazz em um roteiro que conectava Brasil e Estados Unidos por sua tradição negra:

    Aprendemos que o Samba surgiu nos morros, então nosso filme precisou ser direcionado para os morros. O nosso filme sobre o Carnaval começa nos morros, nesse grande conservatório do samba. Outra parte da América vem à minha mente, e o parentesco entre o Rio e a velha Nova Orleans é pontuado. Essa analogia é desdobrada e chegamos à conclusão de que essas cidades são mais próximas do que vemos no mapa, que entre o jazz americano e o samba há muito em comum.[9]

    Esses dados revelam que a contribuição de Grande Otelo ao episódio Carnaval de It’s all true foi fundamental ao fornecer o argumento central do projeto, o fio condutor, a canção tema e a interpretação precisa do ator e das atrizes na representação dos foliões. Nas poucas cenas existentes, Grande Otelo rebola, mexe os braços para cima e para baixo, requebra para os lados, num movimento catártico. O ator uniria em si os aspectos tragicômicos presentes no carnaval.

    Perseguido pela RKO, pelo DIP e por parte da imprensa brasileira, por fugir do roteiro inicial e conter demasiadas cenas de negros e pardos, o filme não veio a lume. A RKO é explícita em seu memorando, em maiúsculas: É MELHOR MANTER-SE NUMA ZONA SEGURA E SEMPRE EVITAR QUALQUER REFERÊNCIA À MISCIGENAÇÃO E ATÉ OMITIR SEQUÊNCIAS DO FILME EM QUE MULATOS OU MESTIÇOS APAREÇAM DE MANEIRA BEM VISÍVEL. De parte da imprensa brasileira, houve comentários como: "Em vez de lhe mostrarem nossas possibilidades, deixam-no filmar, para seu prazer, cenas de mestiços imprestáveis (...) danças de negros cobertos com penas de maracatu, reminiscentes dos templos da selva africana" (Angorá 1942). A falta de apoio desses órgãos, a partir do momento em que Welles voltava suas câmeras às favelas e aos negros, faria tal projeto perder o apoio necessário para sua concretização.

    A reação contrária a It’s all true, tanto da RKO quanto do DIP, expressa bem as impossibilidades da realização de um filme sobre um espaço eminentemente negro como a praça Onze, cujos principais intérpretes eram afrodescendentes. Diante desses fatos, penso que é possível rastrear um projeto de cinema negro pelas mãos de Grande Otelo, no qual o carnaval, o samba, os morros cariocas e uma interpretação tragicômica seriam as bases para tal cinema.

    Moleque Tião e a experiência na Atlântida

    Moleque Tião, primeiro longa-metragem da Atlântida, lançado em 1943, baseia-se na biografia de Grande Otelo. Como narra Alinor Azevedo, o roteiro foi fundamentado na primeira entrevista que o ator deu na vida adulta para o Semanário Diretrizes. A vida no orfanato, após a fuga da família de teatro Gonçalves e o sucesso no cassino da Urca, forneceu argumento para o filme. O ponto alto da entrevista, sobre a possibilidade de atuar em papéis dramáticos, também é incorporado em Moleque Tião. Schultz e Azevedo dialogaram bastante com Otelo para compor as cenas do filme.

    Tal como em It’s all true, é possível atribuir a Grande Otelo a coautoria do filme pela interpretação de sua própria história na entrevista ao Semanário Diretrizes e pelos dados fornecidos ao roteirista. A cópia de Moleque Tião desapareceu, resta-nos o resumo da trama por José Carlos Burle e as críticas da época, que possibilitam tecer algumas interpretações sobre seu ponto de vista:

    (...) o enredo consiste na história de um negrinho do interior fascinado pela ideia de ser artista e que, tendo visto no jornal a notícia de que uma Companhia Negra de Revistas vinha obtendo sucesso no Rio, para lá se dirige, pegando carona nos mais variados meios de transporte. Vai ao teatro, onde o informam que aquela noite a companhia encerra sua temporada, dissolvendo-se a seguir. Trava conhecimento com o maestro (Custódio Mesquita) para quem exibe seus dotes artísticos, e o leva para uma pensão cuja dona (Sara Nobre) o emprega como entregador de marmitas. Dias depois, faz amizade com Zé Laranja, filho de um português que vende laranjas. O emprego é duro, mas tem certeza de que seu dia chegará. Um dia, fica observando os moleques que jogam baralho num terreno baldio, quando chega a polícia. Os moleques fogem. Ele fica e vai terminar num orfanato, de onde, tempos depois, consegue fugir, e tenta voltar inutilmente ao antigo trabalho. Ao procurar seu amigo Zé Laranja, assiste ao atropelamento do velho laranjeiro, que morre no local. Volta para o orfanato, levando desta vez o amigo, mas terminam fugindo. É quando ele reencontra o maestro, que resolve lhe dar uma chance. Chega a noite de estreia, o êxito é total. E, para sua maior alegria, o diretor do orfanato conseguira trazer sua mãe do interior para abraçá-lo.[10]

    Na narrativa de Burle, há um certo apreço pela ideia de apadrinhamento dos negros pelos brancos, em reconhecimento a uma vulnerabilidade dos primeiros. Isso se reflete também no uso do termo negrinho pelo diretor do filme, mas sobretudo nas ações do personagem Olavo, maestro interpretado pelo ator branco Custódio Mesquita, que leva Tião a um orfanato e o ajuda a se lançar na carreira artística. Essa visão também é compartilhada por Otelo, mas como uma experiência vivida, como relatou na entrevista ao Semanário Diretrizes: Que gente boa aquela! Vinha para ser empregado da cozinha e passava de repente a queridinho da família. Meus novos tutores foram bondosos para comigo(Otelo, Wainer e Silveira 1941).

    Além do argumento, Grande Otelo contribuiu para o linguajar popular do filme, que agradou a crítica. Além das cenas in loco e dos tipos representados na película, os diálogos também são elogiados pelos críticos: um palavreado sintético e expressivo[11] era lembrado por Mário Nunes, crítico que seguira Otelo desde a época da Companhia Negra de Revistas; AB diz ser adequado, de flagrante precisão (AB, pseudônimo, apud Melo 2006, p. 83). Já Hugo Barcelos, de A noite, considera que: "A história nada tem de interessante, mas Moleque Tião faz rir quando emprega as ‘piadas’ e a ‘gíria’, tão a grado do povo" (H.B. 1943, p. 5). Um crítico da Folha da Noite também tece loas às falas dos personagens:

    O principal mérito da história (...) está nos diálogos. Ao contrário do que aconteceu em outros filmes, aqui os intérpretes falam a linguagem que correntemente usamos. E os moleques falam mesmo a língua cheia de gíria que usam os moleques do Rio. Sente-se, pois, uma naturalidade de dicção que não é nada comum nas nossas produções, onde via de regra os galãs e estrelas falam uma coisa que se distancia muito da língua que usamos. (Folha da Noite apud Melo 2006, p. 87)

    Em Moleque Tião, é possível identificar outra possibilidade de pensar uma espécie de Cinema Negro de Grande Otelo, qual seja: sua visão de que a integração e a ascensão do negro na sociedade brasileira viria sem conflitos e pelo apoio de pessoas brancas, assim como o uso de gírias e de um linguajar popular.

    É importante lembrar que tal contribuição de Grande Otelo, no filme inaugural da Atlântida, se dá em um ambiente de produção cinematográfica quase artesanal, de parcos recursos e com uma equipe cujo projeto de cinema brasileiro aderia a uma ideia de identidade nacional mestiça, com base em leituras de Gilberto Freyre e Mário de Andrade, como é o caso de Burle, e na experiência nos morros cariocas de Alinor Azevedo (Melo 2006).

    No musical Tristezas não pagam dívidas, segundo Roberto Moura, Grande Otelo não apenas redigiu a cena como dirigiu a composição dos cenários e as filmagens:

    Otelo abria a cena com um espaguete (spacato) malabarístico (...) e enquanto conduzia a narrativa com humor ia revelando o ambiente, como um cômico mestre-sala com o célebre livrinho de regras de salão na mão, duplamente narrador. Ele mostra a gafieira ao casal de fora enquanto o cantor Blecaute se apresenta frente à orquestra, numa cena entremeada de gags: recebendo uma facada de um sujeito; emprestando dinheiro com um ar contrafeito; dando uma lição de moral num casal de bailarinos; olhando contrafeito um sujeito dançando sozinho e consultando o livrinho que nada diz a respeito, para depois perceber que ele está com uma minúscula parceira. (Moura 1996, p. 49)

    A cena foi inspirada na gafieira Elite, na Lapa (RJ), lugar dileto de Grande Otelo, espaço frequentado majoritariamente por negros. Na sequência, observamos tanto a violência da malandragem quanto dimensões do humor encarnado por Otelo como fiscal dessa casa noturna. Tristezas não pagam dívidas foi a primeira chanchada da Atlântida, feita a contragosto para pagar os débitos de É proibido sonhar. Ainda que José Carlos Burle e Alinor Azevedo não fossem afeitos às chanchadas, percebe-se o esforço em compor cenas musicais realistas, distantes dos palcos dos teatros de revista e musicais à la Broadway. Nesse aspecto, a vivência de Grande Otelo nas noites cariocas, em espaços frequentados por negros, dá outra voltagem aos musicais carnavalescos da época, raros nesse gênero no Brasil. Observa-se, assim, uma visão de cinema negro de Grande Otelo, que incluía espaços tradicionais da sociabilidade negra carioca.

    Também somos irmãos e a revolta à luz de Grande Otelo

    Também somos irmãos pode ser qualificado como um dos últimos projetos de um cinema negro na Atlântida. Além da colaboração de Grande Otelo, o filme contou com a presença de Agnaldo Camargo, Ruth de Souza, Neusa Heloísa Paladino e Marina Gonçalves, do TEN.

    O longa dialoga com o neorrealismo italiano, tanto por seu humanismo e sua crítica social quanto pelas escolhas de locações externas. Conforme Noel dos Santos Carvalho (2006), o enredo de Também somos irmãos guarda muitas similaridades com as peças encenadas pelo grupo de Abdias do Nascimento. Segundo Burle, em entrevista concedida na semana de estreia, foi perambulando pela cidade que ele teve seu insight:

    Depois de muito andarmos, perdemo-nos num labirinto de ruas estreitas. O lugar não me era familiar. Casebres de todos os lados. Gente de cor indo e vindo continuamente por aqueles caminhos sinuosos. Mulheres de lata d’água na cabeça. Crianças correndo daqui para ali na algazarra própria da idade. Homens de físico reforçado gingando o corpo no andar típico dos malandros de classe. Alinor olhou-me significativamente. Ele também estava empolgado com o espetáculo imprevisto. Aquilo ali era uma autêntica favela, mas uma favela diferente, um tanto organizada, com armazéns de boa aparência, algumas casas de tijolos, uma escola acolhedora. Uma cidade dentro da cidade. Conheço quase todas as favelas do Rio, mas aquela era completamente estranha. Devia ter surgido há pouco tempo naquele vasto terreno que ia ter às fraldas de um morro. Aquele mundo estranho de gente humilde, mas cheia de colorido e pitoresco, despertou-me imediatamente a ideia de um filme... um filme que narrasse os dramas daquelas vidas tão cheias de contrastes. (...) Narraríamos a história daqueles nossos irmãos de cor, as suas esperanças, os seus sofrimentos, os seus erros (...). O filme seria realista, mostrando a vida como ela é, narrando um aspecto ignorado da Cidade maravilhosa. (Burle 1949)

    Em seu relato, Burle, ao mesmo tempo em que pensou em abordar o drama de nossos irmãos de cor, via a favela como um espetáculo, colorido e pitoresco. Além de narrar suas esperanças, os seus sofrimentos, abordaria também os seus erros. Como é possível ver em seu comentário sobre o filme, um seguiria o caminho do crime. Seria o famoso Moleque Miro. Outro procuraria dignificar a raça conquistando um diploma na faculdade de direito. Logo, o diretor começou a pensar nos intérpretes:

    Nem havia dúvida, aquele era filme para Grande Otelo. Ele seria Moleque Miro. Um papel com passagens dramáticas como o magnífico ator sempre desejara desde Moleque Tião. E o outro? O irmão bacharel? Outro nome nos veio logo à mente: Agnaldo Camargo, o esplêndido artista do Teatro Experimental do Negro. (...) imaginamos o que seria esse duelo artístico. Dois grandes artistas num só filme. (Ibid.)

    Nota-se que em nenhum momento Burle menciona o preconceito racial, o que fornece indícios de que o argumento do filme ganharia novos contornos quando eles chamassem Agnaldo Camargo para o papel de Renato, o bacharel. O drama dos negros seria tratado com uma profundidade que não se encontrava nos artigos de Burle para o Jornal do Brasil, tampouco nas ideias de Alinor Azevedo (Melo 2006; Hirano 2013b e 2019). Além de Agnaldo Camargo, como mencionado, Ruth de Souza, Neusa Heloísa Paladino e Marina Gonçalves fariam papéis menores: a primeira seria a namorada de Moleque Miro; a segunda, uma lavadeira de roupas que tinha uma queda por Renato; e a terceira, uma baiana que ficava na porta do bar frequentado pelo moleque. Possivelmente, elas também deram sugestões para o argumento original do filme. Grande Otelo, além de ser ator principal, contribui com o samba A vida não vale nada, de sua autoria. Não há fontes que indiquem uma colaboração mais contundente do ator no enredo, mas o filme interessa, pois Otelo adiciona outra dimensão a sua atuação, ganhando uma dramaticidade rara em personagens negros da época.

    O longa narra a história de quatro irmãos de criação: Miro (Grande Otelo) e Renato (Agnaldo Camargo), negros; Marta (Vera Nunes) e Hélio (Agnaldo Raiol), brancos. Os quatro foram criados por um casal muito rico, sendo que o pai de criação, Requião, é recordado por Miro e Renato por suas maldades de cunho racista, em contraposição à mãe adotiva, da qual Renato guarda boas lembranças.

    O filme transcorre já na vida adulta dos irmãos, com exceção de Hélio, que ainda é criança. Requião, viúvo, mora com Marta e o caçula numa mansão. Miro vive perambulando nas favelas, sustentando-se por meio do crime e sem residência fixa desde os 12 anos, quando fugiu de casa. Já Renato, que sempre foi estudioso, cursa a faculdade de Direito e vive num barraco simples. O bacharel é expulso da casa dos pais adotivos quando Requião descobre seu amor por Marta. O conflito central gira em torno das recordações das maldades preconceituosas de Requião, que não são esquecidas por Miro e Renato na vida adulta. Cada qual lida com as lembranças a seu modo: Miro, revoltado, pretende se vingar de Requião, ao passo que Renato, ainda apaixonado por Marta, sonha em ascender socialmente para, enfim, receber a mão da moça e o respeito do pai de criação.

    Essas diferenças nas atitudes de ambos são a força motriz do enredo. Estão lá, desde as primeiras cenas, quando Miro e Renato são apresentados ao espectador: o primeiro, de camisa desabotoada, foge de policiais entre as ruelas de uma favela; o segundo, com a camisa engomada e fechada até os últimos botões, aparece lendo. Tais distinções também são perceptíveis nos lugares que frequentam: o primeiro vai aos bares; o segundo, fica em casa estudando, na igreja ou no jardim da mansão, ao lado de Marta e Hélio. Ambos são compositores de samba, mas com estilos e sentimentos diversos: Miro prefere o samba de partido-alto, associado à malandragem. Em contraposição, Renato compõe sambas-canção sobre o amor platônico. Apesar de as incompatibilidades gerarem diversas brigas, essas oposições revelam dilemas da integração do negro ao mundo dos brancos: Renato exemplifica as restritas possibilidades de ascensão social; Miro, a via contrária, já que busca afirmar a malandragem como forma de acesso aos bens da sociedade burguesa, sem uma integração propriamente dita, a não ser de modo marginal. Malgrado o conflito entre os dois irmãos, no decorrer da narrativa ambos se ajudam, e Miro não esconde sua admiração por Renato.

    A paixão de Renato pela irmã se justifica: ambos nutrem uma grande amizade e se encontram de quando em quando para trocar livros. Contudo, Marta não parece ver nada além de uma boa amizade nessa relação. Enquanto o desejo de Renato não se consuma, outras pedras aparecem em seu caminho: Miro se alia ao vigarista branco Walter Mendes (Jorge Dória), que tenta vender loteamentos falsos para Requião, mas Walter – sem o conhecimento de Miro – acaba seduzindo Marta.

    Desolado com o novo pretendente de Marta, Renato toma conhecimento de seu mau caráter. Ele tenta, em vão, alertar Requião. O velho o insulta. A gota d’água ocorre quando Miro conta a Renato que ele também faz parte do plano. Arrependido, Miro tenta contornar as circunstâncias, protestando contra o casamento desavisado de Walter. Mas já é tarde: a essas alturas, Walter já se apaixonou por Marta. No dia do noivado, ele confessa para a namorada suas intenções iniciais, pedindo-lhe perdão, e ela aceita. No meio da festa, Renato aparece no jardim, onde encontra Walter. Os dois discutem. Walter saca um revólver e atira, mas erra. Para se proteger, Renato o agarra e consegue mudar a direção do revólver, no momento em que seu oponente aperta o gatilho. Walter dispara em si mesmo e cai morto no chão. Hélio assiste a toda a briga, mas, pressionado por Requião, não tem coragem de relatar o ocorrido à polícia.

    A acusação coloca Miro sob suspeita. Ele confessa o crime, tomando as dores do irmão. Porém, Renato não aceita e se declara à polícia. Solto, Miro se une a Hélio. Ambos imploram a Marta para depor a favor de Renato, já que Hélio é ainda uma criança e não pode fazê-lo. Após muito insistirem, ela consente. Renato é solto e logo vai ao encontro de Marta. Ela o recebe friamente e lhe pede para nunca mais procurá-la.

    Como é possível ver nessa descrição, a diferença entre o irmão que "dignifica a raça e aquele que comete erros" não é tão hermética, como descreve Burle. Ambos têm desacertos e atitudes nobres, bem como procuram a seu modo honrar o grupo. Miro erra ao procurar a delinquência como forma de se vingar de Requião, mas revela sua grandeza ao confessar o crime no lugar do irmão e, posteriormente, ao convencer Marta a defendê-lo. Renato, durante boa parte da trama, mostra sua nobreza como bacharel de Direito e seguidor convicto das leis e da ordem social, advogando em defesa do irmão. Entretanto, se olharmos o filme da perspectiva das peças do TEN, como Sortilégio, de Abdias do Nascimento (1959), e Anjo negro, de Nelson Rodrigues (1948), Renato também comete erros, pois busca se integrar ao mundo dos brancos por meio do casamento com Marta. Nessas peças, o matrimônio interracial é visto como um engodo, sendo a tragédia ao final da trama um castigo para o personagem negro que procura consumá-lo (Moutinho 2003). O infortúnio de Renato segue o mesmo modelo dessas peças, ainda que de forma menos trágica.

    Diferentemente de Moleque Tião, em Também somos irmãos, há uma descrença na relação de tutela branca, por meio do personagem Miro. Logo na primeira sequência do filme, esse tema é discutido:

    Renato: Você teve certo princípio.

    Miro: Aquilo já era o fim! Dois negrinhos irmãos enjeitados ao cuidado dos brancos. Uma família grã-fina, que resolveu criar os moleques para ver em que que dava. Havia de ser interessante. Dois moleques bem educados. A mim é que eles não pegaram! Não dei esse gostinho àquela gente! Minha escola foi outra.

    Renato: Você está sendo ingrato. O velho Requião tinha as suas implicâncias. Não tinha nenhum gosto em substituir nossos pais, mas...

    Miro: Ora, não me fale desse velho asqueroso. Ele sempre um perseguidor, um capitão do mato, tinha muito prazer era de judiar com a gente.

    Renato: Mas sinhá Nina era uma boa criatura. Alma franca, coração aberto.

    Miro: Não era má, mas nunca sentiu esse problema.

    Renato: Se fosse só por ela, nós teríamos tido mais carinho.

    Miro: A verdade é que nós nos sentíamos como animais domésticos. Sinhá Nina era muito carinhosa para seus cães e galinhas de raça e também para os negrinhos, puro sangue, que ela resolveu acabar de criar.

    Renato, em contraposição, após se desiludir com a paixão de Marta por Walter Mendes, revela a Miro seu projeto:

    Miro: Você sempre dá um jeito e acaba defendendo o velho. Não sei como você aguentou tanto tempo aquele monstro.

    Renato: Foi por causa de Marta.

    Miro: E por causa disso você fica defendendo ele o resto da vida.

    Renato: Eu não estou defendendo, reconheço que ele cometeu grandes erros conosco, foi injusto, estabelecia diferenças, humilhava. Isso contribuiu muito para nos prevenir contra a vida. Você se tornou um revoltado, mas sem nenhum sentido, prejuízo de você mesmo. Uma revolta negativa. Eu procurei compreender, vi que o velho era apenas um reflexo, a luta era muito maior. O que se pode esperar de homens iguais a ele, cheios de defeitos e preconceitos? Preferi lutar com outras armas, uma luta de resistência e de honra, que exige um esforço redobrado, que exige muita vontade, mas é a única maneira com que nós podemos nos afirmar, nos elevar.

    Tais diálogos sobre discriminação racial e paternalismo são algo quase inexistente na cinematografia brasileira da época. Também somos irmãos se diferencia de outras produções da época, porque os personagens negros ganham profundidade no decorrer da trama, cujo vetor são suas contradições. Assim, o filme inverte a lógica de construção de personagens: dá mais dimensões aos negros do que aos brancos.

    Esses dados não devem passar despercebidos, pois, ao diversificar a gama de personagens e artistas afro-brasileiros no cinema, a trama procura se distanciar de alguns estereótipos. Embora Renato e Miro sejam modelos de conduta para o seu grupo, um é diferente do outro. Enquanto isso, Ruth de Souza interpreta uma personagem diversa daquelas vividas por Marina Gonçalves e Neusa Paladino. A primeira é namorada de Miro, mas troca-o por um mulato que não toma cachaça. A segunda discorda de Miro, ao dizer que todas as almas têm a mesma cor; já Neusa faz o papel da aplicada lavadeira Rosário, que nutre um amor não correspondido por Renato. Todas são esbeltas e altas. Pelas descrições, nota-se que as três atrizes do TEN interpretam tipos femininos que fogem ao modelo expresso por Pérola Negra e Déo Maia, que faziam o papel da mulata sensual no teatro de revista e no cinema. Ruth vive uma mulher de malandro: frequenta bares e seus trejeitos expressam certa sensualidade – por exemplo, na maneira de tragar o cigarro e colocar a mão na cintura. Entretanto, ela se veste de forma recatada. A personagem de Neusa é dedicada ao trabalho, humilde e reservada, ao passo que a baiana interpretada por Marina Gonçalves não canta,

    Está gostando da amostra?
    Página 1 de 1