Os Amores De Não Vivi
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Os Amores De Não Vivi - Emilio Figueira
PRIMEIRA PARTE
DÉCADAS ANTES, A CARTOMANTE
Naquela periferia de uma pequena cidade do interior paranaense, os dois meninos de doze anos, Almir e José Renato, param em uma esquina de uma rua de terra. Olham para a casa de madeira construída no barranco a mais de um metro do nível da rua. De tão velha e pintura desbotada pelo tempo, a construção está torta. Em volta árvores secas e matos dando o ar de abandono.
Os dois se olham em silêncio e resolvem bater palmas. Minutos após, uma das folhas da porta de duas abas da varanda se abre e uma senhora velha, malvestida, muito magra pele toda enrugada, principalmente no rosto, lenço desgastado na cabeça, deixando o resto dos cabelos grisalhos e não cuidados descerem pelas costas, sai, questionando-os com cara fechada:
- O que vocês querem? Estou muito ocupada para perder tempo com moleques.
- A senhora é a dona Maria Auxiliadora, a cartomante? – Pergunta José Renato sem jeito.
- Sim, mas eu só atendo por dinheiro. Se vocês tiverem, pode entrar.
Os dois assustados, quase empurrando um ao outro para ir na frente, abrem o portão de ferro já se soltando das dobradiças do muro, sobem os degraus de cimento, passam pela varanda e adentram à casa. Lá dentro, tudo muito rústico. Paredes baixas com pinturas desgastadas, sem forro. Os utensílios, muitas coisas e objetos acumulados por todos os lados.
A cartomante abre uma janela que ilumina apenas a mesa da sala, mantendo o resto do ambiente escuro. Ordena para que os dois se sentem de um lado e ela senta-se a sua frente em uma cadeira que range de fraca pelo tempo. Estende uma toalha cheia de imagens esotéricas, coloca o velho e comum baralho surrado em cima, faz uma reza e começa a embaralhá-lo.
- O que vocês querem saber?
- O nosso futuro, senhora – responde Almir quase gaguejando.
A Maria Auxiliadora pede para que o José Renato corte o baralho, distribui as cartas à mesa e começa a virá-las:
- Você vai ter muita sorte na vida, menino. Um bom casamento, cargo de chefia e criar filhos que se encaminharão em bons destinos pela vida.
Ela volta a reunir as cartas, embaralhá-las, espalhar à mesa. Ordena para Almir virar uma. Passa um tempo virando outras, analisando-as e revela-lhe:
- Há uma menina que morre de amores por você, garoto. Logo ela lhe enviará cartas de amor...
Os dois se olham alegres e sorrindo em silêncio. A cartomante coloca a mão aberta sobre a mesa, ordenando-lhes:
- Agora o meu dinheiro!!!
Almir e José Renato começam a tirar os trocados dos bolsos dos shorts, deixando ali as mesadas do mês.
VIVENDO NO COTIDIANO PAULISTANO
Começo de noite, José Renato chega ao apartamento onde Almir mora perto do centro antigo de São Paulo. Um prédio antigo. Ao entrar, abraça alegre o velho amigo. A mãe de Almir, vem recebê-lo com muita alegria.
- Menino, que bom revê-lo depois de muito tempo. Como vai a sua família?
- Muito bem, dona Ione. Minha mãe lhe mandou um abraço e esta cesta cheia de doces. Minha esposa está bem, meus filhos estão se preparando para o vestibular.
Eliane, irmã do amigo, seu marido e casal de filhos estão morando com eles. À mesa do jantar, ela conta:
- Sabe José Renato, depois que o Alan foi demitido da metalúrgica, as coisas ficaram muito difíceis. O jeito foi vir morar aqui apertados com minha mãe e o Almir.
- Se vocês precisarem algum dia, minha empresa lá na nossa cidade está sempre precisando de profissionais qualificados. É só voltarem que emprego eu garanto.
Após a refeição os amigos de infância sentam-se sozinhos em um canto da sala.
- Quem diria Almir, hoje pouco mais de cinquenta anos de idade estamos os dois aqui em uma noite paulistana.
- E sou muito feliz por você, cara. Fez um bom casamento, teve bons filhos. Herdou a marcenaria de seu pai, fez dela uma fábrica de móveis planejados bem-sucedida. Dá empregos para muita gente, tanto lá na região, como para vendedores e montadores por todo o país.
- Pois é, quem diria. Eu, filho de família negra, morando em um Estado que isso não é muito comum, que as chances são ainda menores.
- Fico feliz em sempre recebê-lo aqui em casa. Pena que no momento não posso hospedá-lo.
- Não esquenta, Almir. Estou na cidade para reuniões com nossos fornecedores de matérias-primas. Digo nossos, porque tenho maior orgulho em ter você aqui como um dos meus principais representantes comerciais. Pena que você não pôde ficar lá em nossa cidade para crescermos juntos.
- Você ainda estava começando na marcenaria. Meu pai faleceu, estava difícil encontrar serviço. Minha irmã queria estudar mais. Então decidimos vir todos para São Paulo em busca de mais oportunidades.
- Eu entendo.
- E você sabe, tive o meu motivo para também deixar nossa cidade.
- Só que seu motivo continua por lá – observa José Renato sorrindo.
* * *
Almir com seu porte mediano, cabelos curtos e bem barbeado, de terno e gravata, pasta debaixo do braço, desce do metrô Moema, região nobre, situado na zona centro sul do município de São Paulo, considerado como a melhor qualidade de vida da cidade, formado pelas classes média alta e alta, limitando bairros de Vila Olímpia, Vila Nova Conceição, Vila Clementino, Jardim Lusitânia, Planalto Paulista, Campo Belo e Brooklin.
Ele caminha pelas ruas, observando pessoas, executivos, moças bem-vestidas, andando apressadamente. Repara também em vários casais, de diferentes idades, andando de mãos dadas.
Chega de frente de um prédio em final de construção, entra e sobe para se encontrar com o cliente que lhe espera para encomendar a mobília do novo apartamento.
Após fechar o contrato de venda, ele desce um andar pelas escadas, reparando outro apartamento com a porta aberta com tudo ainda rústico e pedreiros estão começando a trabalhar nos acabamentos. Resolve entrar, apresentando-se:
- Senhores, meu nome é Almir, sou representante comercial de uma fábrica paranaense de móveis planejados. Por gentileza, gostaria de conversar com o encarregado da obra.
- Ele não está. Mas a proprietária do imóvel está para chegar. O senhor pode esperar alguns minutos.
Almir fica por ali de pé, observando eles trabalharem. No canto, um radinho de pilha, sujo de massa de reboque, toca a música She
do cantor francês Charles Aznavour. Uma voz feminina o surpreende por traz:
- Posso ajudá-lo, senhor? Meu nome é Adriana, sou dona do apartamento.
Ao se virar, ele vê uma moça magra, alta, cabelos lisos, negros e cumpridos, bem maquiada, vestida como uma executiva. Ele se apresenta e lhe entrega um grosso catálogo dos móveis planejados da fábrica de José Renato. Enquanto ela folheia, o representante explica-lhe:
- Nossos móveis sob medida são produzidos exatamente de acordo com as dimensões do seu espaço. Destinam-se a preencher todo e qualquer cantinho, pois são fabricados milimetricamente para o ambiente. Nesse caso, um marceneiro qualificado virá aqui tirar todas as medidas e elaborar o projeto do mobiliário em módulos padrão que se encaixam,