Antes de agora
De Vários
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Antes de agora - Vários
Este livro só veio à luz graças à colaboração de Paulliny Tort, Cidinha da Silva, Tino Freitas, Suryara Bernardi, Paulo Verano, Laura Del Rey, Lilia Góes, Larissa Mundim, Carol Schmid e Bia Menezes.
Sumário
Prefácio
Enquanto você crescia
Literatura
Primeiro voo
mailer-daemon
À sombra do abacateiro
Pode me chamar de tia
Asfixia
Danças de um corpo escrito
Novos caminhos
Duas freiras e uma mãe solteira
Desvio de conduta
Sacrifício
Lua em Escorpião
Ronda noturna
O Apocalipse
As crianças do Bosque dos Buritis
Sobre autoras e autores
Prefácio
um livro assim é sobre generosidade, delicadeza, respeito, embora seja improvável alcançar tais notas apenas na leitura dos contos e das crônicas aqui publicados.
Antes de agora não seria possível escrever um texto como este, para cumprir a função técnica de apresentação do conteúdo e com habilidade para expressar sutilmente o que houve entre nós.
O programa da Residência Literária da Livraria O Jardim foi composto em eixos, com o desejo de estruturar envolvimentos possíveis entre aquelas/aqueles capazes de escrever e aquelas/aqueles capazes de materializar o livro, como objeto.
Com recursos financeiros da Lei Aldir Blanc, a virtualidade permitiu à negalilu editora engajar uma equipe surpreendente de instrutores e viabilizar a participação remota de 18 residentes bolsistas, geograficamente espalhados, mas conectados a Goiás.
Duas encruzilhadas foram planejadas para promover a relação entre residentes: 12 lives com 24 publicadores independentes de todo o Brasil¹ e quatro rodas de leitura comentada. Tudo gratuito e aberto para profissionais e pessoas apaixonadas pelo Livro. No entanto, o almejado encontro entre eixos se deu com força a partir da palavra escrita. E por meio de sua apreciação.
Esta entidade, a palavra escrita, desafiou, amansou, expandiu. Em seguida, deu-se ao gozo, com confiança, mergulhando os pés numa bacia devidamente benzida por Santa Dica transbordando de água escaldante, temperada com sal, ervas e rosas.
Quem tem a sapiência de ouvir, testemunhou também com os olhos − durante e depois − o que falo neste momento. Pode não parecer, mas estou apresentando Antes de agora, o livro que é fruto desta inesquecível Residência Literária. Ainda que este não seja o prefácio mais objetivo já escrito para alertar nossas leitoras e nossos leitores sobre os conteúdos sensíveis, alertas de gatilho, que podem ser encontrados nas páginas seguintes.
Não minto; e não minto ao dizer que a generosidade, a delicadeza, o respeito têm lastro nesta obra literária, que encontrou meios de vir à superfície mais pela exposição da miséria humana do que pela capacidade que todas/todes/todos temos de vivenciar a epifania.
Larissa Mundim, escritora, editora e livreira, coordenadora editorial da Residência Literária da Livraria O Jardim
Enquanto você crescia
Gabriela Domiciano
Você já foi um mundo, Maristela.
Enorme, pairava à altura dos meus olhos. Tinha um meridiano para nos guiar, do umbigo da Mãe até embaixo, na divisa com os elásticos das calças largas que ela passou a usar. Na fronteira com os pelos quando tomávamos banho juntas. Minhas mãos percorriam sua circunferência ensaboada, iam e voltavam, de novo e de novo. Você também já foi uma bolha de sabão, uma que eu podia tocar e, ao se mexer, cismava se estava prestes a estourar e se desmanchar. Porém, você não começou desse tamanho.
O princípio foi imperceptível. Soube depois, por causa dos soluços da Mãe trancada no banheiro. De tanto bater e chamá-la, ela gritou que eu teria um irmão. Iluminei-me. Sentei no chão e esperei. Quando abriu, queria saber onde você estava e por que ela chorava. Disse-me que era uma surpresa e precisaríamos de paciência, você crescia dentro da barriga dela. Como a semente que plantei no algodão. Levaria semanas colocando água até que a casca amolecesse e houvesse força interna para rompê-la, mesmo as folhinhas sendo pequenas e verdes, quase transparentes. Criariam raízes e buscariam a luz. Um dia seriam maiores e verde-escuras e, com sorte, haveria uma flor.
Assenti. Mas era difícil compreender o motivo pelo qual algumas coisas necessitam crescer e outras não. A Mãe disse que as coisas vivas crescem. Eu não a via crescer. Ela envelhecia, respondeu, era o que sucedia ao se crescer o bastante. E que eu parasse de caraminholas. Logo, não lhe contei que caraminholava porque somente uma coisa viva pode caraminholar sobre as demais coisas vivas.
Vigiava você a todo momento. Mãe, levanta a blusa!
Nada mudava. Duvidei. Você era uma mentira. Abandonei você. Às vezes, esquecíamos o quintal, semanas, meses sem ir lá, sol e chuva rolavam, o mato tomava. Você apontou. Uma colina suave e gramada que eu subia e descia correndo, sem cansaço. Eu sentia, você vivia, de verdade. Tanto que deveria ser vestida. A Vó trouxe o pagãozinho do batizado. Estendeu-o sobre o sofá e o rodeamos, contemplamos cada ponto do tricô, a agulha atravessando o túnel de laços, repetidas vezes, tramando você, materializando-a como uma bruma suave e atalcada. A lã tinha uma certa aspereza contra a pele em contraste com o liso das pérolas pregadas. Ele foi colocado nas alturas do meu guarda-roupa, junto aos agasalhos e cobertas de inverno, em um saco plástico para protegê-lo da poeira, e do meu alcance.
Algo se esgueirou rasteiro, lançou sua rama, me fez de suporte, enroscou, enrolou-se em arcos de mola, subiu.
Bebê, neném, assim nos referíamos a você, que não era menino nem menina, ou ambos misturados e irreconhecíveis. A definição veio numa tarde em que a Mãe chegou com fotos suas. Tiradas por uma máquina que enxergava através da transparência da bolha de sabão. Em imagens preto e branco, como há mais de cem anos, seu esboço pairava sereno no invólucro. Cabeça, duas pernas, dois braços, perfeita, disseram. Nomeada a estrela que flutuava numa bolha no fundo do mar, Maristela. Menina, igual a mim. Você existia cada vez melhor.
Uma Tia presenteou sua primeira boneca. De cabelos cor de sol e olhos verdejantes, se assemelhava à pintura que conheci na escola. Nela, as rosas não cresciam nem murchavam, congelavam no ar. Rosas eram também as bochechas e os peitos de Vênus. Acabara de nascer, numa concha, nas águas, e vinham cobri-la. Bela, não cresceu, apareceu perfeita, a professora falou. A Tia alimentava a esperança de que, pelo menos, você viesse bonita. Menina, entretanto, diferente.
Dois homens chegaram carregando um berço e o levaram até meu quarto. Projetaram um eixo longitudinal, arrastaram minha cama para um lado. Colorido de rosa pastel, alguns arranhões revelavam a madeira abaixo da tinta, um dossel de margaridas e voal, o berço do outro lado. Queria abrir as cortinas para verificar o que se poderia encontrar lá dentro. A Mãe não permitiu, o tecido poderia