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Lágrimas Insípidas
Lágrimas Insípidas
Lágrimas Insípidas
E-book130 páginas1 hora

Lágrimas Insípidas

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Sobre este e-book

O esperto garotinho da cidade pequena guardava o pomposo sobrenome Salustiano Plutarco em sua certidão de nascimento. Ele não apreciava aquela incomum designação, própria das pessoas mais velhas. Aliás, não gostava de várias outras coisas. Possuía família acolhedora, amigos leais e uma vida sossegada. Os seus pais mostravam-se rigorosos e, por vezes, merecidas repreensões deixavam o sapeca menino aborrecido. Estava no direito deles adotarem postura firme. Mais ainda, era obrigação patriarcal oferecerem bons exemplos ao filho pequeno. Algo, no entanto, o incomodava. Sentia alguma diferença entre ele e os demais indivíduos. Aparentemente não se tratava de desproporção física ou intelectual ̶ ele não sabia ao certo o significado da percepção experimentada. Após o reinício das aulas escolares, no auge dos sete anos de idade, a ocorrência de acontecimentos inusitados trouxe-lhe a dura verdade. A sutil diferença despercebida durante o cotidiano estava diante dos seus próprios olhos.
IdiomaPortuguês
Data de lançamento14 de ago. de 2019
Lágrimas Insípidas

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    Lágrimas Insípidas - Rafeal Ceadric

    Primeira Edição

    Fortaleza/CE

    © Rafeal Ceadric

    Outubro/2019

    Título: Lágrimas Insípidas

    Capa: Olhar Misterioso

    Todos os direitos reservados

    LÁGRIMAS INSÍPIDAS

    Nós exigimos muito dos nossos filhos. Desejamos que eles sejam iguais ou melhores do que a gente, tenham as mesmas virtudes e não apresentem os nossos defeitos.

    SUMÁRIO

    SANGUE INDOMÁVEL 5

    QUINTAL ECOLÓGICO 10

    PÁGINA RASGADA 14

    ALÉM DA PERCEPÇÃO 19

    APITO DERRADEIRO 24

    GENERAL PLUTARCO 29

    SEIS VELAS 34

    ACIDENTE FATAL 41

    PLÁCIDA GIRAFA 55

    BONECA DE PORCELANA 62

    CAMPO DE BATALHA 69

    RECREAÇÃO MADURA 76

    DIÁRIOS ILÍCITOS 81

    CICLISTA NOVATO 88

    SEGREDOS CONJUGADOS 94

    LÁPIDES EMUDECIDAS 102

    ALMAS FRUSTRADAS 108

    QUINTA MARCHA 115

    TERRITÓRIO OCULTO 122

    DIVINA EPIFANIA 129

    TOLERÂNCIA MÁXIMA 136

    SANGUE INDOMÁVEL

    Eu sempre me julguei uma criança diferente. Não porque me considerasse melhor do que os demais meninos, maior ou mais forte. Não, não, longe dessa explícita comparação. Eu não era anormal. A minha estatura beirava a média e os meus traços corpóreos e faciais eram comuns. A fisionomia desinteressante produzia críticas oriundas das meninas exigentes ― os outros me contavam, apressados na evidente propagação da fofoca ― embora mamãe reconhecesse beleza extrema no rebento único. Os filhos sempre são belos aos olhos suspeitos das mães. Verdade crua: desde cedo a perfeição nunca foi o meu propósito. Nem eu me compreendia pior ou inferior a eles. A diferença não era essa. Talvez eu me compreendesse pouco mais inteligente do que alguns deles. Não de todos, pois sempre havia dois ou três garotos cujas notas escolares suplantavam as minhas.

    Eu sempre me julguei uma criança diferente: porventura um simples complexo decorrente da mentalidade  peculiar à pouca idade. Primário, o meu córtex cerebral em evolução fazia o processamento das informações de modo lerdo. Além do mais, somos conduzidos às inevitáveis comparações, ao incremento das exigências sociais e à necessidade de nos mostrarmos competitivos numa sociedade altamente rigorosa.

    Houve um dia em que eu me olhei no espelho, apoiando-me num banquinho de madeira defronte à pia, dentro do banheiro, e vi o reflexo de um rosto trivial, composto de um pequeno par de olhos castanhos, acima de um nariz afilado e de uma boca infantil rosada. Os muitos dentes em fase de formação denunciavam tênues cinco anos de vida incompletos. Contei-os um a um, atingindo o somatório de vinte e dois dentes. Um deles, o terceiro inferior da esquerda para a direita, começando a contagem pelo meio, encontrava-se moderadamente amolecido. Logo eu teria vinte e um dentes. O par de braços e as reduzidas mãos mostravam-se harmônicos, tal qual a camiseta na cor de aspargo combinando com a bermuda água-marinha, ambas peças presenteadas pela minha tia em decorrência do meu último aniversário. Um quinteto de dedos em cada mão:  dez falanges no cômputo total. As articulações dividiam-se em três partes móveis e, na extremidade de cada uma delas, havia asseadas unhas. No reverso dessas coberturas situavam-se delgadas linhas no formato de impressões digitais. O desenho revelado por essas papilas integrantes das polpas dos dedos manifestam-se inconfundíveis entre os indivíduos. Todas as digitais transparecem diferentes. Mediante o uso dos dedos da mão direita, levantei a camiseta alva e conferi inocente minha lisa barriga pueril. Imaginei o seu interior contendo estômago, coração, rins e pulmões. Tive náuseas quando pensei nesse amontoado de órgãos, complexos para compreensão de uma criança pequena. Qual a serventia do fígado num garoto daquela insignificante idade?! Finalizado o check-up singular, tudo pareceu evidente. As minhas características físicas e mentais situavam-se nos padrões dos pivetes da mesma idade. Algo em mim, contudo, destoava do conjunto.

    O raquítico banquinho suportava o meu peso equivalente a um garrafão plástico de água mineral. Eu abandonei o espelho, desci do apoio e o conduzi à cozinha, onde o recipiente vazio encontrava-se no chão. Havia uma geladeira branca ao lado do móvel onde as panelas, pratos e demais utensílios domésticos eram armazenados. Acima dela aparecia um pinguim branco e azul-escuro feito de porcelana. Ao seu lado, um calendário confeccionado de papelão mostrava o ano de 2.001. Fervilhavam festas juninas mostradas na televisão. Eu não as conhecia pessoalmente. Nesse calendário, os dias 1 a 15 estavam marcados de caneta com a letra X, facilitando a leitura da data corrente. Estávamos num sábado. Minha mãe possuía o hábito de rabiscar os dias do calendário à medida em que eles pereciam. Eu sonhava fazer o mesmo. Dali a dezenove dias eu completaria mais um ano de idade.

    O rosto corado de dona Persíulla Dotte ainda não acumulava rugas devido à sua visível jovialidade. Os grandes olhos amendoados remetiam às minhas próprias linhas, fazendo-me crer na veracidade da descendência biológica. Única, minha original e exclusiva mamãe. Mulher simples e dedicada, dona-de-casa exemplar responsável pelos diversos afazeres inerentes às suas responsabilidades: roupas da família para lavar e engomar, limpeza da casa, irrigação das plantas, banho e alimentação do Fumaça e do Girassol, preparo das refeições e tantas outras tarefas. Aliás, banho somente do Fumaça ― supus num momento de reflexão ― uma vez que Girassol dispensava essa regalia. Disposição não lhe faltava.

    Dona Persíulla preparava o rotineiro almoço, deslocando-se célere do fogão de quatro bocas à mesa quadrada situada no cômodo vizinho. Eu subi no banquinho de madeira e fiquei estacionado próximo à geladeira, escondido da atenção materna, enquanto ela fazia a comida. O manuseio certeiro do pote de sal, da pimenta do reino, da lata de óleo comestível e dos outros condimentos transformou a cena numa magnífica aula de culinária. Ao final, tínhamos à disposição creme de batata, salada de legumes e carne cozida, produto oriundo de uma embalagem metálica. Uma espiga de milho complementava o cardápio. O aroma agradável infiltrou-se sem permissão  nas minhas narinas. O relógio de parede indicava onze e meia do dia. O meu pai chegaria em breve do trabalho.

    O que faz você encoberto nesse lugar, Adam? Você está aparecendo no monitor. Lave as mãos. O seu papai chegará em dez minutos.

    Não me lembrava das câmeras de vídeo instaladas em vários locais da residência. A brincadeira de esconde-esconde durara pouco. No momento em que eu intencionei descer do banquinho, desequilibrei-me e caí ao lado da porta, batendo o joelho esquerdo contra o solo. O impacto não foi violento a ponto de romper algum osso, porém formou-se uma discreta ferida no local. Mamãe apresentou a característica preocupação materna. Conduziu-me nos braços até a poltrona da sala, dirigiu-se ao quarto e retornou munida da providencial caixinha de primeiros socorros. Foi a primeira vez que eu vi sangue real na vida. Em alguns programas televisivos, o líquido vermelho parecia molho de tomate, noutros o fluido circulatório do sistema vascular assemelhava-se à tinta acerejada. Nestas ocasiões defronte à TV, os meus pais mudavam o canal imediatamente. "Sangue não é coisa para criança", eles diziam. Retornei a vista para o meu joelho e segurei o choro feito um macho adulto. A sempre eficaz dona Persíulla manteve-se calma e limpou a área atingida com um pedaço de algodão, extraindo o excesso de material viscoso do ferimento. Um pingo de sangue caiu sobre o avental usado por ela.  As figuras das vicejantes maçãs continuaram escarlates. Na sequência,  ela utilizou uma porção de antisséptico e selou a região atingida mediante uma espessa tira de gaze. Eu permaneci estático, sentado na poltrona, observando o  trabalho da experiente enfermeira particular. Os longos cabelos escuros recebiam brilho adicional proveniente da claridade externa transpassada pela janela da sala. O par de brincos preferidos na cor turquesa compunha a ponta das orelhas. As sobrancelhas  desenhadas sobressaíam sob os olhos atentos. As delicadas mãos massagearam a lateral do meu joelho enquanto ela finalizou o curativo. Eu me vi como um pedaço daquela aura de perfeição. Ela cumprira a missão a contento. Eu viveria por mais algum tempo.

    A apresentação involuntária ao sangue real teve o mérito de guardar aquelas boas recordações na minha memória em construção. Eu precisaria resgatá-las num futuro próximo.

    QUINTAL ECOLÓGICO

    As hortaliças e legumes consumidos em casa provinham de primoroso cultivo familiar. Pés de alface, repolho, alcachofra e brócolis dividiam-se entre folhas verdes de cenoura e tomate. O valoroso espaço do quintal proporcionava a concretização do sonho da alimentação saudável. Uma cobertura de material envidraçado opaco evitava a incidência excessiva do calor e da luz solar, funcionando como uma perfeita estufa. A bancada suspensa esquerda produzia hortaliças,  enquanto a direita entregava legumes. Entre as duas bancadas retangulares enfileiradas encaixava-se o corredor central, na forma de uma passarela de desfile. A horta orgânica evidenciava um trabalho realizado com afinco produzindo resultados alvissareiros.

    Os vizinhos laterais não possuíam a mesma tenacidade. Pude observar as propriedades alheias quando me aventurei sobre uma escada, a qual encontrava-se apoiada num dos muros. Sete degraus de satisfação ao alcance de uma criança; sete degraus de agudo perigo na percepção de um adulto. Foi a minha primeira e única subida naquela peça metálica, desde a descoberta da travessura pela atenciosa mãe. Recordo-me de uma conversa ocorrida durante o almoço. Ela ressaltara sobre a potencial ameaça dos alimentos transgênicos à saúde humana, após a minha pergunta acerca da diferença entre estes produtos industrializados e os naturalmente produzidos.

    São perigosos, porém é um caminho sem volta, meu filho.

    Um caminho sem volta, dissera ela. A produção caseira dos legumes isentos de agrotóxicos mostrava-se como alternativa ao distanciamento dos males causados pelos excessivos agentes químicos, bem como evitava a proliferação de produtos modificados nos seus aspectos genéticos. O avanço das novas tecnologias alimentares, aliado à necessidade de redução dos custos por parte dos produtores, além do vertiginoso crescimento populacional, teria o poder de transformar aquele projeto familiar numa simples quimera. O consumo desenfreado de alimentos transgênicos consistia num caminho sem retorno.

    Coma o seu milho, Adam Plutarco.

    Papai era um homem de poucas palavras. Eu preferia ser chamado apenas de Adam, dispensando-se o pesado sobrenome Plutarco. Hábito paterno não se discute, converte-se em regra: a forma Adam Plutarco venceu e eu

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